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4. O passado como metáfora: mutantes e homossexuais

4.1 Algumas anotações sobre a historiografia dos grupos “marginais”

De que forma analisar diferentes fenômenos midiáticos como histórias em quadrinhos e filmes? Seria possível interpretar ambos com ferramentas teóricas e metodológicas semelhantes? Acredito que sim, porquanto os dois são construções discursivas da cultura da mídia. Nesse sentido, meu interesse está na forma como as narrativas foram construídas, ou seja, no discurso das obras. Para isso, utilizo o conceito de cultura da mídia do professor Douglas Kellner. Segundo esse autor:

A cultura da mídia pode constituir um entrave para a democracia quando reproduz discursos reacionários, promovendo o racismo, o preconceito de sexo, idade, classe e outros, mas também pode propiciar o avanço dos interesses dos grupos oprimidos quando ataca coisas como as formas de segregação racial ou sexual, ou quando, pelo menos, as enfraquece com representações mais positivas de raça e sexo (KELLNER, 2001, p. 13).

Igualmente, utilizo o conceito de practical past de Hayden White, já mencionado anteriormente. White defende que a historiografia deve possuir sempre um aspecto prático e ser politicamente engajada em prol de melhorias na sociedade.Nessa esteira, entendo as obras, aqui analisadas, como construções políticas, assim como a historiografia profissional, a qual deve se mostrar uma ferramenta prática para a promoção de uma sociedade mais humana e justa, principalmente, em tempos sombrios com avanços conservadores, como o atual.

Com o objetivo de explicar as novas tendências da historiografia norte-americana relacionada à identidade e à cidadania, Barbara Weinstein regressa ao auge da chamada “nova história social”, desenvolvida nos anos 1970 e início dos anos 1980. De acordo com a autora, as abordagens mais recentes do campo da história, influenciadas pelo

movimento pós-moderno, pela nova história cultural e pela virada linguística, possuem inspirações na crítica dos conceitos da nova história social (WEINSTEIN, 1998, p. 01).

Segundo a autora:

[...] a grande missão da historiografia da nova história social foi a recuperação da categoria de classe, e uma ênfase na atuação/resistência dos grupos oprimidos aos processos de assimilação e repressão. Foi uma reação contra a narrativa da época progressista que apresentava os programas educacionais e assistenciais daquele período como uma grande força que transformaria a massa de imigrantes ou migrantes de origens diversas em uma população de cidadãos relativamente homogêneos, bem-comportados e respeitáveis

(WEINSTEIN, 1998, p. 02).

Essa reflexão foi responsável pela crítica da ideia de cidadão como conceito homogêneo. De acordo com a autora, nas décadas de 1970 e 1980, estudos voltados a grupos como mulheres, negros, índios e homossexuais estavam marginalizados. Todavia, aos poucos, passaram a ser inseridos nas pautas historiográficas. As discussões sobre raça e gênero ainda não faziam participavam da maior parte dos debates. Nessa lógica, o foco dos historiadores estava centrado nos homens brancos da classe trabalhadora, na linha de produção.

Weinstein afirma que, nos últimos quinze anos, o desdobramento das políticas de identidade e dos programas destinados ao estudo das mulheres, dos afro-americanos e de diversos grupos étnicos levou a uma revisão da narrativa-mestre da nova história social. Não menos importante, as pesquisas que, anteriormente, tinham como foco as fábricas, passaram a abordar temas do cotidiano como: a casa, a família, o bairro, as redes de amizade, entre outros (WEINSTEIN, 1998).

Somado a isso, é possível salientar dois pontos relevantes da chamada nova história cultural: 1. Os objetos de pesquisa passaram a abranger elementos da cultura popular – literatura, música, filmes, histórias em quadrinhos etc; 2. O foco passou a ser a representação e a construção discursiva de identidades, elemento esse que evidencia a influência da virada linguística.

Já, pensando em uma historiografia voltada às minorias, a obra De los baños a la

calle. Historia del movimiento lésbico, gay, trans uruguayo (1984-2013), de Diego

Sempol, consiste em um belo exemplo de história social politicamente engajada – o que considero vital. Segundo Sempol, o livro aborda a história dos dissidentes sexuais que

decidiram desafiar as normas, organizar-se e exigir um lugar no mundo (SEMPOL, 2013, p. 10). O trabalho de Sempol pode ser caracterizado como uma mistura de história social com história oral, abrangendo questões de gênero, identidade e sexualidade. A abertura temporal escolhida pelo autor abrange desde os anos 1960 até 2013. Cada capítulo discorre sobre diferentes momentos históricos: a ditadura, o retorno à democracia e debates contemporâneos.

O autor refere que, apenas a partir da década de 1990, as margens – gays, lésbicas, transexuais – começam a conquistar um pouco de espaço público e acadêmico. A obra apresenta a história de três gerações que passaram progressivamente a “sair do armário” (SEMPOL, 2013, p. 09). Outrossim, esse livro busca descontruir visões autocelebratórias de um povo uruguaio tolerante e integrador, ao invés disso, Sempol apresenta um Uruguai homofóbico e violento (SEMPOL, 2013, p. 10).

No primeiro capítulo, intitulado, Algunas claves del Siglo XX, o autor expõe o conceito de um poder normatizador heterossexual, ou seja, tudo que está à margem da relação “normal” entre homens e mulheres é visto de forma negativa, logo os grupos de homossexuais, lésbicas e transexuais são vistos como “los invertidos” (SEMPOL, 2013, p. 21). Sempol aponta para o fato de que a medicina teve um papel fundamental na forma estigmatizada como esses grupos foram vistos durante o século XX. Afinal de contas, durante a maior parte desse período, a medicina vislumbrou esses grupos como doentes, portanto era necessário tratá-los – psiquiatras uruguaios utilizaram terapia de eletrochoque, por exemplo.

No artigo intitulado Homofilia e homossexualidades: recepções culturais e

permanências, Rodrigues apresenta um panorama geral sobre a história da

homossexualidade. Através de referências na área, a autora afirma que com o crescimento do conhecimento científico no século XIX, o interesse de diversos profissionais relacionados ao assunto em questão foi crescente. Entre eles, médicos, juristas, psiquiatras e peritos criminais fizeram parte de um elaborado discurso sobre o diagnóstico, etiologia e capacitação para a “cura” desta condição (RODRIGUES, 2012, p. 366,).

Ademais, a autora argumenta que o escopo era forçar uma readequação dos indivíduos – desviantes – ao padrão hegemônico. Os métodos utilizados eram cruéis e questionáveis:

[...] “sucos de vários órgãos de animais” para combater uma presumida disfunção hormonal; choques elétricos; confinamento psiquiátrico; choques hipoglicêmicos mediante ingestão de insulina; indicações de transplantes de testículos e de ovários; propostas de criação de manicômios exclusivos para ambos os sexos; proposta de lei tipificando as práticas masculinas que provocassem escândalo público como delitos; “camisas-de-força química”; prisão e trabalhos forçados por atos sexuais entre homens, ainda que praticados por agentes maiores e de comum acordo, no âmbito de suas privacidades; prisão por imputações “úteis”, ainda que não provada a materialidade (abuso sexual de crianças, assassinatos, etc.); expropriação de bens; destituição da capacidade civil, possibilitando que famílias mantivessem seus membros indesejáveis confinados, passando a gerir e fruir seus patrimônios (RODRIGUES, 2012, p. 366)

Outrossim, a autora argumenta que, ao longo da história da humanidade, as relações homossexuais não eram vistas como uma fuga à “norma”. Basta observar o passado greco-romano, o qual, segundo estudos, não desqualificava a bi ou a homossexualidade. Ao contrário: a norma paradigmática era a bissexualidade. Os conceitos de heterossexual e homossexual simplesmente não existiam (RODRIGUES, 2012, p. 370).

Rodrigues afirma que a demonização da sodomia entre homens ocorreu juntamente com o desenvolvimento do cristianismo.95 O imperador Justiniano, por exemplo, editou uma codificação que punia com a morte os atos sexuais praticados entre homens (RODRIGUES, 2012, p. 372).

Susan Sontag, em sua obra A doença como metáfora: Aids e suas metáforas, apresenta uma discussão de caráter prático com objetivo de desmistificar metáforas sobre o câncer e a aids, ou seja, Sontag mostra que, com tratamentos adequados e profissionais especializados, as doenças citadas podem ser tratadas, e os mitos e medos das enfermidades podem levar pacientes a esconder sua doença, deixando de tratá-la.

Além disso, como é sabido, a aids é transmitida pelo ato sexual, logo é vista por parte da sociedade como uma moléstia na qual a vítima é culpada. Para agravar essa situação, determinadas práticas sexuais são vislumbradas como pervertidas e antinaturais. Nesse sentido, são rotulados os ditos “grupos de risco” – homossexuais – e a doença é

95 É quando o Cristianismo se torna a religião oficial do Império Romano. Constantino II sanciona a atitude passiva na relação entre homens, acredita-se, com a castração; Teodósio, entretanto, o amplia de modo a abranger todos os passivos que se prostituíam em bordéis. A pena agora é a fogueira (RODRIGUES, 2012, p. 372).

apontada como uma espécie de castigo de Deus96 contra a promiscuidade (SONTAG, 2012, p. 167).

Ademais, a autora explora como o discurso conservador pode aproveitar-se do medo gerado por essa síndrome:

As afirmações dos que pretendem falar em nome de Deus podem, de modo geral, ser facilmente explicadas como a tradicional retórica do discurso sobre as doenças sexualmente transmissíveis — desde as fulminações de Cotton Mather até as recentes declarações de dois destacados religiosos brasileiros, o cardeal-arcebispo de Brasília, d. José Falcão, para quem a aids é “conseqüência da decadência moral”, e o cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, d. Eugênio Sales, que vê na aids ao mesmo tempo um “castigo de Deus” e “a vingança da natureza”. Mais interessante é o caso dos leigos que vociferam esse tipo de invectiva, pois seus objetivos são mais complexos. As ideologias políticas autoritárias têm interesse em promover o medo, a idéia de que alienígenas estão prestes a assumir o controle — e para elas as doenças são um prato cheio [...] (SONTAG, 2012, p. 215).

Nessa esteira, a introdução de temas ligados às minorias nos debates acadêmicos foi lenta, mas que, a partir da década de 1990, essas preocupações se tornaram pertinentes dentro e fora dos círculos acadêmicos. Sempol expõe, através do caso uruguaio, uma série de injustiças históricas cometidas contra homossexuais, tais como: o preconceito, a visão dos homossexuais como doentes, a repressão e a repulsa por setores da sociedade. Rodrigues apresenta uma breve reflexão sobre aspectos históricos ligados à forma como os homossexuais eram vislumbrados no passado. Por fim, Sontag expõe a forma pela qual a aids é vista: como uma espécie de castigo religioso contra os homossexuais, e procura afastar essa síndrome de suas interpretações e metáforas fatalistas. Tendo essas reflexões em vista, parto para a comparação desses problemas com a construção narrativa dos mutantes no universo dos X-men.

96 “Os fulminadores profissionais não poderiam resistir à oportunidade retórica oferecida por uma doença fatal, sexualmente transmissível. Assim, o fato de, nos países onde ela se manifestou pela primeira vez como epidemia, a aids ser transmitida basicamente por contatos heterossexuais não impediu que guardiães da moral pública, como Jesse Helms e Norman Podhoretz, a apresentassem como um castigo dirigido especialmente (e merecidamente) aos homossexuais do mundo ocidental, enquanto outras celebridades da era Reagan, como Pat Buchanan, fazem pronunciamentos sobre “a aids e a falência moral”, e Jerry Falwell propõe o diagnóstico genérico de que “a aids é a condenação divina de uma sociedade que não vive conforme os mandamentos de Deus”. O que causa espanto não é a epidemia de aids estar sendo explorada desse modo, e sim o fato de que esse tipo de retórica bombástica tem emanado apenas de um grupo tão previsível de fanáticos” (SONTAG, 2012, p. 213).

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