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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

A infância é um dos poucos momentos em que a brincadeira é considerada fundamental à existência. Nesta fase é socialmente permitida, e também estimulada, a experiência com o mundo, seu conhecimento pelo con-tato, pelo manuseio e seu (mais ou menos) livre uso – relação que vai se perdendo, com o início da vida adulta. Nesse sentido, o palhaço é ao mesmo tempo próximo e distante da criança: é um adulto que brinca, e que o faz sempre em situação (declarada ou não) de exposição, de espetáculo.

No brincar da criança e do palhaço, comumente estes dão outros sentidos e usos aos objetos, desfazendo uma harmonia inicial/anterior, o que pode dar aos objetos, de forma mais ou menos fugaz, um aspecto disforme. Nessa confusão, os objetos metaforicamente se abrem, podendo aparentar ser, ao mesmo tempo, duas ou mais coisas em uma só: o anterior, o novo e o que vem. Nas ações diversas, e não só nas brincadeiras explícitas, do palhaço, há muitas rupturas e contrastes que causam o mesmo tipo de estranhamento, de sensação de deformidade que, por sua vez, é mais sugerida do que real, quando então o corpo do espectador é convidado a participar com sua imaginação. O objetivo do palhaço, diferentemente do da criança (que não tem a priori objetivo nenhum), é surpreender, confundir – dois importantes mecanismos disparadores do riso.

Ainda nessa linha, o obsceno (como signo maior do reprimido) e seus desdobramentos, é também um de seus recursos expressivos. Há outros, que se ligam ao medo inconsciente da morte (real ou simbólica), e que foram vistos ao longo do texto: o automatismo, a repetição, a confusão entre vivo e morto, o encantamento das coisas, a semelhança dos gestos do palhaço ao da marionete, entre outros. Quanto ao impulso de fazer-se coisa, ou ainda de um retorno ao inorgânico, esse encontrou um dos seus melhores exemplos na fusão dos instrumentos musicais com o corpo. O movimento do palhaço em direção ao instrumento não é propriamente o do domínio do objeto em sentido estrito, mas o de sua incorporação, mescla, borrando, pelo movimento dentre técnica e mimesis, os limites entre um e outro.

Essa permissão que só o palhaço tem, de expor certos elementos corporais que foram aparentemente excluídos da cultura, lançados para os confins do esquecimento, mas que estão sempre à espreita para retornar, por um lado, é herança dos antepassados do palhaço, que sempre transitaram por lugares limítrofes, como o mundo dos mortos. Trata-se de ambivalência nata que lhe confere algo de ameaçante, mas que está sob certo controle. Sua permissão também está intimamente relacionada à sua forma artística: a aparência de espontaneidade. Em torno dela, compondo-a, está a dramatização de expressões elementares do corpo (susto, espanto e surpresa), quando o artista faz um uso específico de momentos miméticos, incontroláveis na vida cotidiana, subvertendo-os ao torná-los cômicos. Junte-se a isso a exposição, por meio da técnica de triangulação, de tudo que pensa e emociona o palhaço – uma técnica que, quiçá, almeja ser gesto.

Pensar o métier do palhaço como obra de arte permite refletir sobre a ambivalência dela e mesmo da cultura. Ambas são uma combinação de Unheimlich e apaziguamento, nunca completamente logrado, do medo. Ao renunciar à violência, o selvagem é incorporado e participa do processo criativo, ao mesmo tempo em que a técnica oferece o desenlace do processo.

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