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Algumas considerações finais sobre a autonomia do “right of

2 SISTEMA DO “COMMON LAW” E O “RIGHT OF CONFRONTATION”

2.2.3 Comparação entre o direito ao confronto e a lei contra admissão da “hearsay”

2.2.3.3 Algumas considerações finais sobre a autonomia do “right of

Como vimos no capítulo sobre os fundamentos da “hearsay rule”, as normas constantes das leis contra admissão da “hearsay” tem como objetivo primordial, para grande parte da doutrina, assegurar a melhor prova a ser utilizada no procedimento criminal. O critério, portanto, principal é a averiguação da confiabilidade de um elemento de prova, a fim de atender a exatidão, a correção (“accuracy”) do julgamento na busca da

verdade. É mais uma preocupação epistemológica.190

Reconhecemos que o direito ao confronto também possui essa dimensão relacionada à prova (dimensão probatória), mas inegável a existência de outras

dimensões, caracterizadas pela doutrina como dimensão processual e dimensão social.191

188 Crawford v. Washington, 124 S.Ct. 1354 (2004), p. 1369. 189 Crawford v. Washington, 124 S.Ct. 1354 (2004), p. 1370.

190 O artigo 102, da FRE nos orienta nesse sentido. Art. 102. “These rules should be construed so as to administer every proceeding fairly, eliminate unjustifiable expense and delay, and promote the development of evidence law, to the end of ascertaining the truth and securing a just determination.” (sem grifo no original). Cf. FORTY-FOURTH ANNUAL REVIEW OF CRIMINAL PROCEDURE. The

Georgetown Law Journal, vol. 103, 2015, p. 738 e nota 2010 que elenca alguns casos julgados nesse

sentido.

191 SCALLEN, Eileen A. Constitutional dimensions of hearsay reform: toward a three-dimensional confrontation clause. Minnesota Law Review, vol. 76, 1992, p. 624. REDMAYNE, Mike. Confronting

A dimensão probatória é bem semelhante ao que já abordamos sobre a “hersay rule” e visa garantir a melhor qualidade da prova, a prova mais confiável, a fim de assegurar um julgamento correto. E a melhor forma de atingir tal propósito é através do

“cross-examination”,192 que não se confunde com o direito fundamental ao confronto em

si, mas é a técnica pela qual o direito ao confronto se materializa no caso concreto, principalmente pelo seu corolário do direito do acusado à inquirição das testemunhas de forma contemporânea às declarações testemunhais.

Porém, o direito ao confronto não é apenas o direito ao “cross-examination” diante

da linguagem e estrutura estabelecida na Sexta emenda.193 Sua dimensão processual

indica que o direito ao confronto tem como um dos seus objetivos impedir o uso abusivo dos poderes governamentais na produção de declarações anteriores para sua utilização no

julgamento do acusado.194

Ainda sob a ótica processual, o direito ao confronto cria um ônus de produção (“confrontation´s burden of production”) aos órgãos acusatórios de produzir a testemunha

no julgamento de todos os casos criminais,195 o que permitirá que o acusado fique diante

da testemunha e a interrogue perante o julgador da causa.

confrontation. In ROBERTS, Paul; HUNTER, Jill (ed.). Criminal Evidence and human rights: reimagining common law procedural traditions. Oxford and Portland: Hart Publishing, 2012, pp. 289-290, afirmando que os fundamentos do direito ao confronto são tanto de natueza epistêmica como não- epistêmica. O autor entende que tem um peso maior para fundamentar tal direito razões de natureza epistêmica (Idem, pp. 299-301).

192 Cf. ROBERTS, Paul; ZUCKERMAN, Adrian. Criminal evidence. New York: Oxford University Press, 2004, p. 254, que afirmam que a força probatória do depoimento associa-se com quatro fatores independentes, quais sejam, (i) a confiabilidade da percepção inicial da testemunha quanto ao evento que está depondo; (ii) sua memória; (iii) a veracidade de suas alegações e (iv) a extensão na qual seu depoimento está corretamente sendo entendido. O “cross-examination” carrega junto de si estes quatro fatores, mas particularmente está ligado de forma mais intensa à possibilidade de testar a veracidade da testemunha (“truthfulness or veracity”).

193 SCALLEN, Eileen A. Constitutional dimensions of hearsay reform: toward a three-dimensional confrontation clause. Minnesota Law Review, vol. 76, 1992, p. 630.

194 Idem, ibidem,, p. 632-635. BERGER, Margaret A. The Deconstitutionalization of the confrontation clause: a proposal for a prosecutorial restraint model. Minnesota Law Review, vol. 76, 1992, pp. 560. JONAKAIT, Randolph. The right to confrontation: not a mere restraint on government. Minnesota Law

Review, vol. 76, 1992, p. 617 também concorda com outras dimensões do direito ao confronto, além da

probatória, mas diverge de BERGER, por entender que não se trata apenas de limitar abusos do governo. Com relação à dimensão processual, cf. também KIRST, Roger. The procedural dimension of confrontation doctrine. Nebrasca Law Review, vol. 66, 1987, pp. 485-531.

195 METZGER, Pamela R. Confrontation as a rule of production. William and Mary Bill of Rights

Journal, vol. 24, 2016, p. 997. Para a autora, esse ônus imposto aos órgãos acusatórios decorre da própria

norma constitucional (VI Emenda), cujo texto encontra-se na voz passiva (“the accused...to be confronted with the witness against him”), o que gera o dever do órgão acusatório de produzir suas testemunhas para provar seu caso (idem, p. 999). Cf. também JACKSON, John D., SUMMERS, Sarah J. The

internationalisation of criminal evidence: beyond the common law and civil law traditions. New York:

Por último, a dimensão social considera a qualidade das interrelações humanas, tanto referente ao acusado e a pessoa que presta as declarações contra aquele (testemunha

de acusação), como entre o acusado e o Estado (órgãos da persecução penal).196 Assim,

colocar face-a-face o acusado com seus acusadores contribui para uma percepção social, quanto ao funcionamento do sistema de justiça criminal, em que prevalece um

procedimento justo (“fair”).197

O exercício do direito ao confronto por parte do acusado contribuirá, portanto, para assegurar tal percepção social, uma vez que, com sua participação no procedimento e na produção da prova oral, influenciará a decisão final que terá efeitos sobre si. E isso transmite a ideia de um procedimento justo à toda sociedade, legitimando as próprias decisões judiciais.

Diante de tais considerações sobre uma visão tridimensional198 do direito ao

confronto, podemos aduzir que seus fundamentos não se relacionam essencialmente com

critérios de confiabilidade do elemento de prova ou busca da verdade.199 Tal autonomia

foi assegurada ao direito ao confronto, principalmente, a partir do julgamento do caso Crawford.

Com efeito, os valores que o direito ao confronto visa assegurar e sua origem histórica demonstram claramente a diferença entre e a “hearsay rule”. Há autores que entendem que a interpretação do direito ao confronto deve ser feita à luz dos fatores que ensejaram a edição da ”Bill of Rights” como um todo, qual seja, restringir e limitar o uso

abusivo dos poderes governamentais.200

196 SCALLEN, Eileen A. Constitutional dimensions of hearsay reform: toward a three-dimensional confrontation clause. Minnesota Law Review, vol. 76, 1992, p. 637.

197 Idem, ibidem, p. 643, citando juiz Scalia no caso Coy v. Iowa, 487 U.S. 1012 (1988). Cf. também CHOO; Andrew (Hearsay and confrontantion in criminal trials. Oxford: Clarendon Press, 1996, p. 39) que, apesar de não se referir diretamente ao direito ao confronto, faz suas assertivas sobre a utilização de “hearsay evidence” nos casos criminais.

198 Expressão utilizada por SCALLEN, Eileen A. Op. cit., pp. 623-654.

199 FRIEDMAN, Richard. Confrontation: the search for basic principles. The Georgetown Law Journal, vol. 86, 1998, p. 1022. Antes do julgamento do caso Crawford, o direito ao confronto e a “hearsay rule” tinham uma ligação muito estreita, posição predominante na Suprema Corte, que entendia que o propósito de ambos era a obtenção dos elementos de prova mais confiáveis para uma exata reconstrução histórica dos fatos e, por conseguinte, a busca por um julgamento mais próximo da verdade. AMAR, Akhil Reed (The

Constitution and criminal procedure: first principles. New Haven and London: Yale University Press,

1997, pp. 125-126) discorda de FRIEDMAN e defende que o direito ao confronto tem o propósito de buscar a verdade - “truth-seeking” (visa uma acurada reconstrução histórica dos fatos). Entendemos que o direito ao confronto também tem uma dimensão relacionada à prova (dimensão probatória), mas também possui outras que não se limitam à questão da busca da verdade.

200 AMAR, Akhil Reed. The Bill of Rights as a constitution. Yale Law Journal, vol. 100, 1991, p. 1132- 1133. JONAKAIT, Randolph. The right to confrontation: not a mere restraint on government. Minnesota

Nesse caminho, o direito à confrontação impõe aos órgãos acusatórios a abstenção da produção da prova testemunhal em segredo, devendo produzir tal prova em julgamento

público201 e na presença do acusado, permitindo sua inquirição perante o julgador. Ainda

que através deste escrutínio, possa se revelar a fragilidade do elemento de prova e assegurar uma decisão correta, o propósito do direito ao confronto é desmotivar condutas

erradas por parte dos agentes da persecução penal na criação/produção da prova.202 Trata-

se, como visto, da dimensão processual do direito ao confronto.203

Desta forma, mais do que excluir alguns elementos de prova (“hearsay”) decorrente de sua aplicação, o “right of confrontation” serve para incentivar os órgãos da persecução penal a produção correta da prova oral. Tais assertivas são baseadas na origem histórica do direito ao confronto e nos valores políticos que a “Bill of Rights” pretendeu encampar com suas provisões que, em suma, tinham a pretensão de evitar que métodos

inquisitoriais fossem utilizados na persecução penal pelo governo.204

Por outro lado, os objetivos da “Bill of Rights” não se referem apenas a uma mera restrição do poder governamental (sentido negativo, de prevenção) – prevenir que agentes estatais utilizem elementos anteriores produzidos em segredo no julgamento (p.ex. através da leitura de declarações escritas) –, mas as normas, incluídas no documento, tem um caráter positivo de garantir direitos às pessoas acusadas de crimes (é uma prestação

positiva por parte do poder público).205

201 BERGER, Margaret A. The Deconstitutionalization of the confrontation clause: a proposal for a prosecutorial restraint model. Minnesota Law Review, vol. 76, 1992, p. 561-562. PALMA, ao comentar sobre o “processo de Kafka”, afirma que umas das condições de um modelo anti-kafkiano é a comunicabilidade no processo e que o Processo Penal deve evitar o segredo de justiça, permitindo o conhecimento por parte da sociedade das decisões e fundamentos dos atos praticados. Nas palavras da autora: “a compreensão exacta do que vai sendo decidido é uma exigência de prevenção geral positiva, pois é necessário que todos possam compreender quais os critérios de decisão” (PALMA, Maria Fernanda. O problema penal do processo penal. In idem (coord.). Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos

Fundamentais. Coimbra: Almedina, 2004, p. 43).

202 TASLITZ, Andrew. What remains of reliability: hearsay and freestandinge process after Crawford v. Washington. Criminal Justice, vol. 20, nº 2, 2005. Disponível em: http://www.americanbar.org/publications/criminal_justice_magazine_home/crimjust_cjmag_20_2_taslitz. html. Acesso em 19 abr 2016.

203 SCALLEN, Eileen A. Constitutional dimensions of hearsay reform: toward a three-dimensional confrontation clause. Minnesota Law Review, vol. 76, 1992, p. 632.

204 BERGER, Margaret A. Op. cit., pp. 578-586. A autora afirma que nos Estados Unidos o contexto histórico de criação e proteção do direito ao confronto se deu quando os ingleses começaram a utilizar métodos inquisitoriais da civil law na produção da prova contra os colonos, com apresentação de declarações anteriores e escritas, dadas na ausência do acusado e julgamento sem o procedimento do Júri. Daí a preocupação de incluir o direito ao confronto na Carta de Direitos em 1791 (Idem, p. 579 e ss). 205 JONAKAIT, Randolph. The right to confrontation: not a mere restraint on government. Minnesota Law

Review, vol. 76, 1992, pp. 616-618. É uma prestação positiva assim como o é o direito do ausado a um

Então, para JONAKAIT, declarações anteriores, independentemente de prestadas perante os agentes estatais, também se encontram no cerne da cláusula do direito ao confronto, eis que perspectiva deve ser do acusado, e não do agente responsável pela

persecução penal ou outro particular.206

Concluímos, portanto, que a natureza, conteúdo, estrutura e fundamentos do direito ao confronto e da “hearsay rule” são diversos e não podem ser confundidos, sob pena de esvaziamento total de um direito fundamental.

Enquanto a lei contra “hearsay” é um regramento probatório, notadamente regras de exclusão que tem como escopo a melhor reconstrução histórica dos fatos e, assim, a busca pela verdade e melhor exatidão no julgamento, o direito ao confronto não é dirigido necessariamente para esta questão epistemológica, sendo um direito de natureza fundamental que visa assegurar a correta produção da prova oral, evitando práticas inquisitivas e garantindo a participação do acusado na formação da prova.

A “hearsay rule” aplica-se tanto em procedimentos criminais, como cíveis, e tanto acusado, como o órgão acusatório, podem requerer a exclusão de elementos com base em suas normas, ao passo que o direito ao confronto é um direito somente do acusado e aplicado apenas nos procedimentos criminais.

Por derradeiro, como vimos ao longo do capítulo, o “right of confrontation”

aplica-se quando a fonte de prova é um ser humano207 que faz uma declaração com

natureza testemunhal (“testimonial”),208 enquanto que a “hearsay rule” tem aplicação

sobre os demais testemunhos indiretos, sejam aqueles provenientes de declarações de fonte pessoal com natureza “nontestimonial”, sejam outras hipóteses de testemunhos indiretos previstos na “Federal Rules of Evidence”.

206 JONAKAIT, Randolph. The right to confrontation: not a mere restraint on government. Minnesota Law

Review, vol. 76, 1992, pp. 618 e ss. Cf. também MOSTELLER, Robert P. Crawford v. Washington:

encouraging and ensuring the confrontation of witnesses. University of Richmond Law Review, vol. 39, 2005, pp. 623-625.

207 MALAN, Diogo. Direito ao confronto no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009, p. 79. FRIEDMAN, Richard. Confrontation: the search for basic principles. The Georgetown Law

Journal, vol. 86, 1998, p. 1026.

208 “hearsay declarants…have acted as witness” (FRIEDMAN. Op. cit., p. 1026). FRIEDMAN, Richard. Face to Face: rediscovering the right to confront prosecution witness”. The International Journal of