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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES POSSÍVEIS

No documento 2017LisianeLigiaMella (páginas 130-133)

Direcionar o olhar para as políticas de amparo ao adolescente autor de ato infracional requer atentar-se para uma gama de fatores que estão implicados à temática, correspondendo a desafios. De fato, desde a época colonial, crianças e adolescentes não tinham seus direitos reconhecidos, principalmente se tratando daquelas e daqueles que pertenciam à população pobre e marginalizada da sociedade brasileira, sendo, ao longo do tempo, controlados pelo Estado e reconhecidos como “perigosos”, legitimando relações de exploração e violência.

Este é um legado que ainda hoje ecoa nas instituições sociais, no imaginário da população e nas relações que permeiam o interior da sociedade brasileira. Apesar de processos significativos que ganharam força principalmente na década de oitenta com o advento da Constituição Federal de 1988 e o posterior Estatuto da Criança e do Adolescente, os reconhecendo enquanto sujeitos de direitos e garantindo legalmente estes direitos, a desigualdade e injustiça social ainda não os permitem sentirem-se pertencentes à esfera social, contribuindo para distanciarem-se ainda mais das possibilidades de obter a senha do reconhecimento por vias “lícitas”.

Contudo, o investimento e os esforços para efetivar o paradigma da proteção integral e modificar a “cultura tradicional” remetente ao paradigma do antigo Código de Menores de 1979 são discutidos e pautados pela atual política socioeducativa que, através de documentos de referência e de relatórios avaliativos, evidencia a realidade dos órgãos e equipamentos responsáveis pelo atendimento aos adolescentes autores de ato infracional. Foi por meio das constatações das realidades encontradas nos relatórios, cujo panorama demonstrava condições precárias e até mesmo desumanas em algumas localidades do país, que em 2006 o SINASE foi instituído e em 2012 ganhou força de lei. A partir da lei, portanto, uma série de procedimentos técnico-administrativos e metodologias foram implementadas, visando à regulamentação do atendimento aos adolescentes.

Através da investigação realizada, no entanto, foi possível constatar a existência de uma distância entre os parâmetros preconizados na legislação e sua implementação na unidade socioeducativa. Os trabalhadores entrevistados enfatizaram em suas falas a presença de muitos dilemas durante este processo, que se mantêm ainda hoje, principalmente quanta à falta de um diálogo comum entre todos os trabalhadores a respeito da lei, seus objetivos e especificidades. Além disso, a partir daí, também foi possível perceber a falta de uma

“unidade” no trabalho desenvolvido com o adolescente atendido, deixando lacunas sobre a compreensão integral do significado da lei e de seu próprio trabalho.

Somam-se a isso os processos pedagógicos que passaram a envolver o trabalho com os adolescentes a partir da chegada da lei, identificados, na investigação realizada, por duas ações pedagógicas distintas. Através de experiências e narrativas dos trabalhadores ao longo dos anos de trabalho na unidade socioeducativa, estas ações pedagógicas compreendem, principalmente, duas visões acerca da socioeducação e da nova lei. Uma primeira que compreende a necessidade de trabalhar com regras e normas fixas, percebendo a chegada da lei do SINASE como um atrapalho no trabalho que vinha sendo desenvolvido, gerando desamparo aos trabalhadores por não depreenderem com clareza os significados da legislação e, ao mesmo tempo, um estranhamento para com a nova ferramenta de trabalho, já que esta retirou a segurança que outrora era garantida.

Por outro lado, outra ação pedagógica foi evidenciada a partir da pesquisa, destacando o trabalho desenvolvido com o adolescente a partir da escuta e da conversa, percebendo a chegada da lei como uma possibilidade para a ressignificação do trabalho e das práticas desenvolvidas na rotina dos trabalhadores. Além disso, os trabalhadores que chegaram após a implementação da lei já estavam familiarizados com ela, trabalhando a partir deste ponto de partida, tendo suas concepções subjetivas já enfatizadas legalmente.

Desta forma, a análise deste processo evidenciou-se válida, na medida em que foi possível compreender como os trabalhadores da unidade socioeducativa de internação estudada percebem a sua relação com o adolescente atendido, com o sistema socioeducativo e a condução de seu trabalho. A partir daí, pôde-se desvendar situações e modos de trabalhar que, de certa medida, são conflitantes entre si, abrindo espaço para proposição de alternativas que possam favorecer a ampliação de espaços de discussão e de reflexão, a fim de minimizar os impactos negativos das mudanças que chegam até a unidade, bem como dos processos que já são identificados como nocivos pelos trabalhadores no dia-a-dia de trabalho, remetendo a desafios.

No interior da unidade socioeducativa, os trabalhadores referiram, através de relatos imbuídos de experiências vivenciadas na rotina diária da instituição, alguns processos que enfrentam ao longo de sua rotina de trabalho, tal como: a falta de capacitação para o trabalho; a falta de reconhecimento por parte da FASE; o adoecimento do trabalhador, incluindo sensações de pressão no trabalho e a impotência, causando sofrimento; a falta de compreensão do trabalho socioeducativo como uma unidade; e o déficit de trabalhadores na unidade socioeducativa. Estes são fatores que, de certa forma, contribuem para promover um

sentimento de não reconhecimento pelo trabalho que desenvolvem, bem como um desinvestimento no trabalho, podendo estes fatores refletir no adolescente atendido e em sua medida socioeducativa.

Tais fatores, no entanto, também são provenientes das próprias características da instituição em que os adolescentes são atendidos e em que os trabalhadores estão imersos. Sendo esta uma instituição de caráter total que trabalha cotidianamente por detrás de muros altos que bloqueiam o acesso ao “mundo de fora”. Instrumentos como cadeados, chaves, portões de ferro, algemas, livros de ocorrências para anotações dos acontecimentos fazem parte da rotina diária, contribuindo para o aumento da tensão de forma geral.

Para tanto, a pesquisa como um todo evidenciou as falas dos trabalhadores, que se constituem por relatos densos, carregados de experiências significativas que traduzem como é estar imerso a este cotidiano laboral e como é, a partir desta imersão, compreender o adolescente e o sistema socioeducativo. Neste sentido, atentar-se igualmente para a atenção à saúde integral do trabalhador, bem como na promoção de espaços de escuta a estes sujeitos que permitam construir processos reflexivos da realidade onde trabalham e dos sentimentos com o qual se deparam são estratégias para a promoção do cuidado de quem “cuida” o adolescente.

Por fim, destaco a importância de novas pesquisas e discussões a respeito desta temática, que possam contemplar outras dimensões do campo socioeducativo, incluindo as percepções dos e das adolescentes, além dos demais órgãos e instituições que os atendem, para além da unidade de internação. As medidas de semiliberdade e meio aberto têm sido largamente discutidas como possibilidades de contemplar a municipalização do atendimento e, sendo assim, também ampliar o contato do adolescente com o seu território e suas redes de apoio. Ademais, as inquietações fomentadas por esta pesquisa multiplicam-se ainda mais em mim após este percurso investigativo, abrindo possibilidades para a continuidade e ampliação de redes e diálogos.

No documento 2017LisianeLigiaMella (páginas 130-133)