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CAPÍTULO II – O PERCURSO DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE TEATRO

3.1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O FIGURINO

A relação figurino e teatro é tão antiga quanto as origens e desenvolvimento dessa arte no mundo inteiro. Herdeiro das vestimentas das cerimônias religiosas primitivas, o figurino exerceu função primordial para o acontecimento cênico/religioso, cumprindo a função de ser fio condutor do contato do ser humano com o sobrenatural, na busca por uma transmutação, por uma incorporação de um outro ser.

Segundo Berthold (2006), o uso de peles de animais e máscaras representava nas cerimônias religiosas primitivas a perda da identidade dos indivíduos e a personificação do espírito invocado nessas ocasiões. Da mesma forma, Wilson (1998 apud GUERRA e LEITE, 2002, p.2) aponta que:

O vestuário no teatro é descendente de um passado remoto, religioso, místico e mágico, relacionando-se com o ritual e com a devoção. Muitas sociedades usaram formas de adorno e vestuário que colocavam o indivíduo em um certo relacionamento com os espíritos ou com as estações do ano, durante a atuação dos ritos de fertilidade ou colheita de alimentos, para guerra ou nas celebrações.

Por outro lado, acredita-se que o disfarce com máscaras e vestes animais também possuía função prática no cotidiano do homem primitivo, funcionando como estratégia para a caça. Em Manual Mínimo do Ator, Dário Fo comenta uma pintura rupestre gravada numa parede de uma gruta em Pirineus que ilustra esta hipótese. Fo descreve a cena como um rebanho de cabras pastando que, à primeira vista, parece um grupo homogêneo, mas observando-o de forma mais atenta pode-se perceber que uma das cabras, ao invés de possuir patas com cascos, apresenta pernas e pés humanos e, nas mãos, arco e flecha em posição de ataque.

Cobrindo o seu rosto, há uma máscara de cabra, dotada inclusive de chifres e barbicha. Desde a linha dos ombros até debaixo da cintura, está coberto com uma pele de cabra. Podemos apostar que o espertalhão até mesmo se empestou com o esterco das cabras para mascarar o seu próprio cheiro. (FO, 2004, p.32).

Conforme Fo, duas são as razões para esse disfarce. Em primeiro lugar, de ordem prática, pois a máscara e a pele do animal serviam para o caçador se aproximar das presas sem ser percebido e, em segundo, de ordem espiritual, para que ele não fosse percebido pelos deuses, uma vez que acreditava que todo animal possuía uma divindade particular.

Assim, podemos inferir que ao manipular a sua aparência com vistas à comunicação com o sobrenatural ou para o disfarce numa caçada, o homem primitivo já demonstrava a sua capacidade imaginativa e criativa e inaugurava a construção de um saber que muito posteriormente se tornaria uma área de conhecimento artístico, o que por sua vez evidencia, como já dito no capítulo 1, a ancestralidade do uso dos elementos cenográficos.

De acordo com Pavis (2005), o figurino sempre acompanhou a evolução estética da encenação, passou do mimetismo naturalista à abstração realista, fez-se presente no simbolismo, na desconstrução surrealista ou absurda e sempre esteve presente nas artes cênicas, como signo do personagem e do disfarce, e contentou-se, por muito tempo, com o papel de vestir o intérprete de acordo com a verossimilhança de uma condição ou de uma situação. Nos espetáculos contemporâneos, o figurino tem cada vez mais papel importante e variado, tornando-se praticamente uma “segunda pele do intérprete”. Hoje, na cena contemporânea, seja ela dramática, épica, performática, entre as tantas possíveis, o figurino conquista um lugar muito mais ambicioso; multiplica suas funções e se integra ao trabalho de conjunto, em cima dos significantes cênicos. Assim, compreendemos o figurino como um importante elemento da linguagem visual e sensível do espetáculo.

Para Guerra e Leite (2002), o figurino é um sistema vestimentar com regras próprias, referente a diversos sistemas vestimentares, os quais estão relacionados com culturas presentes e passadas. Tendo como base os sentidos que operam as estruturas desses sistemas, podem-se extrair os dados para sua representação. Esta concepção nos aponta para a complexidade do processo de criação de um figurino, que exige do profissional figurinista um conhecimento amplo sobre moda, cultura e arte e demonstra a importância da pesquisa para o trabalho criativo.

Para Cortinhas (2010), o figurino impulsiona a criação e materializa o personagem e amplia a expressividade do corpo do ator, para isso, ele precisa ser concebido com um objeto sensível, preparado para a ação da cena, carregado de valor simbólico. O objeto sensível pode ser compreendido como um objeto pronto para significar e transformar, logo, a sua existência é relacional e funcional.

Da mesma forma, Pavis (2005) aponta que o figurino só tem sentido sobre o corpo humano, ele não é apenas, para o ator, um ornamento e uma embalagem exterior, é uma relação com o corpo, ora serve a ele adaptando-se ao gesto, à marcação, à sua postura, ora o enclausura submetendo-o ao peso dos materiais e das formas. Desta maneira, podemos apontar aqui a interdependência entre figurino e o corpo humano, a necessária relação entre o trabalho do figurinista e do ator, uma vez que o ator dá vida a esse objeto inanimado que, por sua vez, comunica a interioridade do personagem criado pelo ator ou do próprio ator.

Ramos (2008) agrupa o figurino na expressão design de aparência de atores para se referir à linguagem que, em realizações artísticas, é trabalhada diretamente sobre o corpo do ator com figurinos, adereços, penteados e maquiagens para construir sua aparência física, a fim de traduzir em matéria plástica e sensível e concreta os traços de caráter ficcionais representados em uma dada obra.

Para este trabalho, compreendemos figurino como elemento fundamental para a linguagem cênica, como um elemento comunicador do espetáculo que ultrapassa o sentido apenas plástico e funcional da roupa para construir significados, possuindo assim uma intrínseca relação com todos os demais elementos da cena.

Assim, partindo de uma concepção ampliada de cenografia, já discutida anteriormente, na qual o figurino é compreendido também como um elemento cenográfico em intrínseca relação com os demais elementos da cena, neste capítulo, concentrar-nos-emos na discussão sobre proposta pedagógica do laboratório, objeto deste estudo no componente curricular CENOTEC II – Figurino. As percepções e reflexões aqui registradas são frutos da observação participante, realizada no semestre de 2015.2, associada às entrevistas com o professor Sávio Araújo e questionários aplicados com estudantes deste período.