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Alguns aspectos sobre as Istorie Fiorentini

Em 1512 Maquiavel é afastado do Palazzo Vecchio e em vão havia requerido seu retorno ao “serviço público” no governo da cidade. Como não escondia sua preferência pelas coisas de Estado e pelo trato com aquilo que unicamente lhe importava, é compreensível que dedique seu opúsculo sobre os principados ao jovem Lorenzo de Médici na esperança de alcançar algum cargo ou algum serviço nesse palácio que era, na prática, sua verdadeira casa. Como seu espírito estava completamente imerso nesse universo da política, o meio que encontrou foi escrever os Discursos. Excertos desse material são lidos e apreciados nos jardins de Cosimo Rucellai230.

No entanto, oito anos o separaram de uma ligação formal com o

Pallazo. A mesma família que o mandou prender e torturar, agora lhe

incumbe de escrever um projeto que pensasse a nova disposição do

governo de Florença231, em função da morte do duque de Urbino, último

herdeiro da família. Em 1524 Maquiavel recebe outra incumbência, agora para escrever a história da cidade. Não pensamos que seja um falso dilema Maquiavel se propor a escrever a história de Florença, a pedido de uma família que sempre suspeitou de um regime republicano mais aberto. Com efeito, Maquiavel já havia expressado no Príncipe, 5, que “quem se torna senhor de uma cidade habituada a viver livre, e não a destrói, será destruído por ela, porque ela sempre invocará, na rebelião, o nome de sua liberdade e de sua antiga ordem, as quais nem o

passar do tempo nem os benefícios jamais farão esquecer”232

. Contudo, apenas o nome da liberdade [nome della libertà] já não parece produzir algum efeito prático sobre os florentinos. Em nosso terceiro capítulo, Guicciardini apontava para esse aspecto de superfície recolhido na

230

Período incerto mas que tem probabilidade de ter ocorrido entre os anos de 1515 a 1517.

231

Discursus florentinarum rerum post mortem iunioris Laurentii Medices. Há uma tradução para o português em Maquiavel (2010).

232

Ao que parece essa admoestação não produziu muitos efeitos práticos. Embora a república fosse restaurada novamente no ano da morte de Maquiavel, três anos depois, os Médici a tomam novamente para definitivamente governarem até 1737.

palavra. Em virtude do nome (liberdade), há os que (povo e todos aqueles simpáticos ao governo do Conselho Grande) “se deixam mais facilmente enganar por ele” [si lasciono piú facilmente ingannare da

lui] (GUICCIARDINI, 1997, p. 225 e 277), uma vez que ele produz um

encantamento, em virtude de sua doçura [dolcezza], levando, por isso, os homens a caírem nas armadilhas do engano. Essa característica da liberdade que se nutre apenas da aparência e do nome, também é pensada por Maquiavel como maneira de identificar as instabilidades e oscilações de sua cidade. Contudo, diferente de Guicciardini, essa abrangência do nome engloba tanto o povo como os grandes: “porque apenas o nome liberdade é celebrado pelos arautos da licença, que são os populares, e pelos da servidão, que são os nobres [...]” (História de

Florença IV, 1).

História de Florença é instigadora com relação a certo silêncio

sobre o tema do conflito na obra de Maquiavel, uma vez que essa obra é, seguramente, fonte riquíssima de material referente aos desdobramentos do tema do conflito, agora na perspectiva da cidade natal de Maquiavel. Neste ponto estamos de acordo com Gaille-Nikodimov: “ela [História

de Florença] oferece, com efeito, uma matéria inesgotável para a análise

do conflito civil e de sua relação com a liberdade, que Maquiavel coloca explicitamente no centro de sua narrativa” (2004a, p. 17). É sobre as condições233 pelas quais se dão a teoria do conflito e sua imbricação com questões de ordem socioeconômica que investigamos o presente capítulo.

Nessa obra, historiográfica na apresentação geral dos conteúdos, filosófica na abordagem dos mesmos, Maquiavel enfatiza, em certo sentido, o caráter distinto às teses levantadas nos Discursos, ou seja, ele procura evidenciar os desatinos e instabilidades com os quais Florença se depara no transcurso de sua própria história político-institucional. As condições institucionais e a maneira como os ideais políticos são vivenciados em Florença é tal que, a construção de um vivere libero lhe é sempre estranha. Muito atento a esse deslocamento do espírito de

vivere libero cada vez mais para preocupações centradas na ideia de

segurança234 como garante da vida e dos bens, já nos Discursos

Maquiavel adverte que sua própria cidade “foi-se arranjando por

233

As condições da liberdade é o terceiro elemento apontado e aprofundando por GAILLE-NIKODIMOV (2004a, p. 9-14).

234

Como observado ao final do segundo capítulo [2.5 O desejo de segurança como característica redutora do vivere libero].

duzentos anos, intervalo de que se tem segura memória, sem jamais ter possuído um estado pelo qual pudesse realmente ser chamado república” (Discursos I, 49).

Se o diagnóstico é de que Florença jamais poderia ser considerada como uma república, pois como visto acima, o povo não fazia mais do que nascer a licença e os grandes a servidão, então lhe falta como se vê uma identidade em que o nome corresponda à realidade. Como explicar isso? Del Lucchese (2010, p. 118s) observa que para Maquiavel, o conflito e a potência representam o centro mesmo

do discurso político. No Proêmio de História de Florença235, Maquiavel

aponta para um dos aspectos fundamentais que o põe na contramão de seus predecessores humanistas, Leonardo Bruni e Poggio Bracciolini:

[...] depois de ler diligentemente seus escritos, para ver com que ordem e de que modo procediam, a fim de que, imitando-os, nossa história recebesse melhor aprovação dos leitores, percebi que foram muitíssimo diligentes na descrição das guerras travadas pelos florentinos contra príncipes e os povos estrangeiros, mas que, no que se refere às discórdias civis e às inimizades internas236, bem como aos seus efeitos, eles calaram de todo uma parte e descreveram a outra com tanta brevidade que nela os leitores não podem encontrar utilidade nem prazer algum (História de Florença, Proêmio).

Ao mergulhar efetivamente na realidade de sua cidade, Maquiavel marca seu afastamento com uma historiografia na qual as discórdias dos diferentes grupos eram vistas como negação do ideal de unidade política. É preciso reconhecer, no entanto, que os conflitos já não são os mesmos; o contexto histórico mudou; e assim, os operadores conceituais devem dar conta de um novo cenário para explicar aquele

235

Parte desse excerto do proêmio já utilizamos na seção “Unidade e conflito”, no capítulo 3.

236

As ações que incentivam o desafogo dos distintos apetites e desejos devem se circunscrever nos limites internos da república: “[...] pois a execução não é feita com forças privadas e forças estrangeiras, que são as que arruínam a vida livre, mas sim com forças e ordens públicas, dentro de seus próprios termos, não se ultrapassando o limite além do qual se arruína a república” (Discursos I, 7).

padrão teórico presente nos Discursos. Del Lucchese (2010, p. 117) observa que “partindo de uma revisão das categorias fundamentais de

seu discurso político, Maquiavel aprofundou sua reflexão”237

. Essa revisão permite pensar o conflito civil como uma “teoria da crise”238

. Não nos parece que essa chave interpretativa de Del Lucchese seja determinante para compreender a complexidade dos problemas presente na História de Florença, mas ela pressupõe o que para Maquiavel é resultado de uma alteração na forma de compreender a dinâmica dos conflitos, quer seja, pelos efeitos que se originaram entre o modelo romano e o florentino.

Como então Maquiavel se posiciona diante das alterações dos efeitos dos conflitos entre o modelo romano e o florentino? Continuar recorrendo ao expediente do extraordinário diante de uma condição de aberta fraqueza do “Estado” florentino? Esperar que algum lampejo de

virtù de um “sábio legislador” possa ordenar a condição abjeta de uma

cidade que oscila, como já destacado, entre licença e servidão? Aguardar que a religião, à maneira dos romanos, produza alguma coragem, alguma ousadia, alguma determinação no espírito de uma cidade que parece cada vez mais capitulada por forças que agem contra a liberdade e “extinguem a virtù militar239

? Com essas interrogações, que não são as únicas certamente a serem feitas, pode-se mesmo concluir, como observa Ames (2014, p. 266), de que “teria Maquiavel renunciado à ideia de conflito como fundamento da liberdade republicana e se entregado à utopia de uma ordem homogênea e estável? Levando em conta as consequências das discórdias sobre a vida florentina, seriam todas as divisões no seio da sociedade definitivamente prejudiciais à integridade da vida republicana?”.

237

Sobre a possibilidade de ler o conflito civil em História de Florença como marcando uma “segunda fase” do autor, remetemos para Suchowlansky (2012) e seu Skinner contra Skinner: Civic Discord and Republican Liberty in

Machiavelli’s ‘Mature’ Texts. 238

Del Lucchese (2010, p. 118) sustenta que a crise – para utilizar o esquema hipocrático-galênico – “é o momento decisivo do processo da doença”. Esse aspecto de crise vista por Del Lucchese é bem observada em Ames (2014).

239

No último capítulo de nosso trabalho, analisaremos essa relação entre religião como geradora de virtù militar e a proposta maquiaveliana do “retorno aos princípios”, uma vez que Maquiavel credita a sua cidade a mesma vocação de grandeza e expansionismo oriunda, em grande medida, pela manutenção do conflito civil como propulsor dessa “vocação”.

Partindo dos questionamentos acima, García (2010, p. 59) propõe três estratégias principais para ler História de Florença: “certa ideia de história que implica uma transcendental ruptura com a teoria circular de Políbio, o primeiro esboço de uma categorização moderna de corrupção, e a intenção de construir um exemplo moral desde a noção de antimodelo”. Sobre aspectos da discussão com a teoria do regime misto em Políbio, a tese de Bausi nos parece interessante para pensar o problema em Maquiavel, visto no terceiro capítulo240. Sobre a ideia de antimodelo, a sequência do capítulo mostrará que essa estratégia de leitura nos parece muito razoável, uma vez que chama a atenção, através de um recurso moral, das características negativas atreladas ao conflito florentino241. Sobre a categorização moderna de corrupção, pensamos que da forma como a trabalharemos em História de Florença, consideramos que as condições que levam à corrupção estão antecipadas nos Discursos, devendo a nós ambientá-la para o contexto florentino. Pela análise dos diferentes aspectos que identificam os humores sociais, pode-se estabelecer um liame entre as condições que propiciam a corrupção em Discursos e História de Florença. A análise emprestada às questões socioeconômicas naquela primeira obra é aqui radicalizada. Com isso, as pressões advindas de um contexto socioeconômico jogam um papel ainda mais importante nas condições pelas quais são dados os conflitos. Para por à prova essa hipótese, daremos uma atenção maior para o tumulto dos Ciompi do livro III da História de Florença. Assim, combinando os mecanismos conflituais discutidos nos Discursos com aqueles encontrados em História de Florença, podemos constituí-los como um conflito entre efeitos positivos observados em Roma e efeitos negativos visualizados nas relações dissensuais de Florença242.

240

Remetemos para a página 100.

241

Esse horizonte moral pode ser percebido no Proêmio de História de Florença ao pressupor que sua obra será lida (diferente de Guicciardini que não escrevia para ser lido) e “mais bem entendida em qualquer tempo” (grifo nosso).

242

Sobre essa análise somos igualmente devedores das recentes pesquisas levadas a cabo por Ames (2014) que investiga a transformação dos elementos teóricos do conflito civil nos Discursos em direção aos elementos em História

de Florença. Segundo este intérprete, a análise dos conflitos nos Discursos em

direção a História de Florença, sintetiza-se a um confronto binário no qual o primeiro termo é sempre positivo e o segundo negativo: os onori opostos à

4.2 Distintas nomenclaturas para os grupos sociais nas Istorie

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