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Alguns comentários críticos sobre a ironia de Brait

2.3. Beth Brait: ironia como forma particular de interdiscurso

2.3.1. Alguns comentários críticos sobre a ironia de Brait

O que o livro de Hutcheon (2000) tem de confuso na articulação de teorias, o de Brait (2008) tem de clareza. Brait busca perseguir uma formulação sobre a natureza discursiva/interdiscursiva do fenômeno irônico, e por isso a pertinência em analisar as teorias

116 que tratam da intertextualidade e da interdiscursividade voltada à compreensão da ironia como proposta na sua pesquisa. Assim, a autora afirma que se assumir a perspectiva discursiva na análise do fenômeno irônico, poderá flagrar sua manifestação como elemento articulador da interdiscursividade.

Isso explica as referências teóricas que a pesquisadora lança mão na sua fundamentação teórica, já que não problematiza nenhuma delas, mas sim as entende pelo projeto de compreender a ironia como uma forma particular de interdiscurso. A única concepção do fenômeno irônico que é claramente rechaçada é aquela que analisa a ironia no nível frástico, de uma contradição ou ambiguidade lógica presente estritamente na organização semântica do enunciado. Assim como Hutcheon, Brait trabalha a ironia no plano interdiscursivo, diferentemente de Berrendonner.

Como a pesquisadora afirma logo na introdução do livro, ela trabalhará sua perspectiva de ironia sob uma “categoria ampla denominada humor” (2008, p. 13), o que a faz inclusive compreender o conceito de Bergson de interferência de séries pela perspectiva interdiscursiva. Para este trabalho que apresento, não partilharei dessa relação, uma vez que a hipótese que construí sobre a presença da ironia no gênero jornalístico informativo não trabalha exclusivamente com esse entendimento. Desse modo, compartilho mais da postura de Hutcheon que avisa que as ironias que ela analisa em seu livro não são “particularmente engraçadas” (HUTCHEON, 2000, p. 20).

Porém, não se pode negar que é frequente a relação entre ironia e humor, e, mais, que esse humor resultante tem ainda papel importante na constituição da ironia como uma argumentação indireta. Tentei já esboçar o funcionamento dessa relação entre o humor e a argumentação indireta da ironia em Vianna (2007). Mas essa perspectiva, a de entender a ironia sob uma categoria ampla denominada humor, não faz parte da proposta da pesquisa que apresento aqui, o que não significa que ela não exista. Vale ressaltar que mesmo Brait não afirma que obrigatoriamente a ironia há de estar calcada em aspectos cômicos ou humorísticos, mas sim que ela optou por essa perspectiva na pesquisa desenvolvida:

Escolhida a perspectiva geral e delimitado o corpus a textos literários e jornalísticos, este trabalho estará circunscrito aos mecanismos discursivos produtores de efeitos de sentido considerados „humorísticos‟, procurando focalizar exclusivamente as articulações configuradas pela ironia como confluência de discursos, como cruzamento de vozes. (BRAIT, 2008, p. 16).

117 Outro aspecto que merece um comentário é a relação entre a anterioridade da ironia, já que produzida por um ironista, e seu posterior entendimento por um destinatário perspicaz que Brait estabelece. Como já mencionado durante a exposição do livro desta autora, ela afirma que a ironia, pela sua realização, “denuncia um ponto de vista, uma argumentação indireta, que conta com a perspicácia do destinatário para concretizar-se como significação” (2008, p.17).

Para discorrer sobre isso, peguemos a citação abaixo de Brait:

A dupla leitura mobilizada por um enunciado irônico envolve formas de interação entre os sujeitos, bem como a relação com o objeto da ironia e com as estratégias linguístico-discursivas que põem em movimento o processo.

O ironista, o produtor da ironia, encontra formas de chamar a atenção do enunciatário para o discurso e, por meio desse procedimento, contar com sua adesão. Sem isso a ironia não se realiza. O conteúdo, portanto, está subjetivamente assinalado por valores atribuídos pelo enunciador, mas apresentados de forma a exigir a participação do enunciatário, sua perspicácia para o enunciado e suas sinalizações, por vezes extremamente sutis. Essa participação é que instaura a intersubjetividade, pressupondo não apenas conhecimentos partilhados, mas também pontos de vista, valores pessoais ou cultural e socialmente comungados ou, ainda, constitutivos de um imaginário coletivo. É a organização discursivo-textual que vai permitir esse chamar a atenção sobre o enunciado e, especialmente, sobre o sujeito da enunciação. (2008, pp. 138-139).

O que farei aqui é confrontar as compreensões de Brait e Hutcheon (2000). As duas pesquisadoras comungam da ideia de que a ironia só se realiza quando entendida como tal, pois, se assim não for, não é ironia. Porém, pelo que compreendi pelo que foi exposto em seu livro, Brait acredita que cabe ao ironista bem sucedido ser capaz de fornecer as sinalizações necessárias para que seu enunciado seja interpretado como irônico, levando em conta, como afirma na citação acima, conhecimentos partilhados, pontos de vistas, valores pessoais ou culturais socialmente comungados. Caberia ao enunciatário, portanto, ter a perspicácia de compreender essas sinalizações e, portanto, flagrar a ironia e sua argumentação indireta.

Linda Hutcheon, por sua vez, questiona a noção de ironista, como já demonstrado anteriormente. A participação do enunciatário, portanto, não se restringe em ter a perspicácia de reconhecer as sinalizações do ironista, mas sim a máxima e exclusiva decisão de atribuir ironia a um enunciado, atribuição esta que pode ou não estar de acordo com o sentido planejado pelo produtor da ironia. A concordância ou não com o sentido planejado pelo ironista é irrelevante: se concretizada a ironia pela interpretação do destinatário, essa ironia só se concretizou, só se realizou objetivamente, ou melhor, só ganhou o estatuto de enunciado

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concreto irônico justamente por essa inferência do destinatário. Caso não se concretize pela inferência do destinatário, ela pode ser qualquer coisa, menos ironia.

Não existe uma ironia virtual, virtual no sentido de existir como potência, que poderá

vir a ser/existir, que habita subterraneamente as tecituras do discurso só à espera de ser flagrada, iluminada pelo destinatário, seja pela lanterna da semântica formal, seja pela da análise no plano discursivo ou qualquer outra. Entendê-la dessa forma implica compreender uma certa anterioridade do fenômeno irônico frente à sua manifestação concreta.

Não é o destinatário que reconhece a ironia, muito menos a reconstrói por pistas estrategicamente fornecidas pelo ironista: é o destinatário que constrói o sentido irônico, que o faz, que o cria concretamente em determinada manifestação da linguagem: como ressalta Hutcheon, “a responsabilidade última de decidir se a ironia realmente acontece numa elocução ou não (e qual é o sentido irônico) é apenas do interpretador” (2000, p. 74).

O significado irônico é, portanto, inferido; e a inferência é do interpretador. Menos do que reconhecer possíveis sinais do ironista (sejam eles de ordem linguística, enunciativa ou discursiva), a inferência irônica, baseando-se em sinalizações (que só são sinalizações por decisão do interpretador, independentemente de assim terem sido construídas ou não pelo suposto ironista) enxerga o fenômeno irônico e atribui a ele suas arestas avaliadoras e sua argumentação indireta. Pode parecer ser a mesma coisa, mas não é. Numa citação de Hutcheon, podemos ler:

Ela [a ironia] é inferida porque a ironia não é necessariamente um caso de intenção do ironista (e logo de implicação), embora ela possa ser; ela é sempre, no entanto, um caso de interpretação e atribuição. Eu uso o termo

operativa simplesmente para sinalizar meu interesse em como a ironia „trabalha‟ ou acontece, e com motivação eu quero dizer exatamente uma atitude proposital (embora, aqui, inferida) em direção ao ato de ironizar. Minha premissa de trabalho é simples e tem duas partes: primeiro, que motivações (projetadas, inferidas) diferentes resultam em razões diferentes para atribuir (ou usar) ironia e, segundo, que a falta de distinção entre as múltiplas funções possíveis da ironia é uma das razões para tanta confusão e desacordo sobre sua apropriabilidade e valor, para não falar de seu significado. (2000, p. 74).

Aqui aparece uma possibilidade não abordada por Brait em seu estudo: a depender de diferentes motivações de interpretadores, a inferência por meio de sinais (sejam eles compartilhados ou não) pode produzir efeitos irônicos distintos. Ou, ainda, que diferentes manifestações linguístico discursivas podem ser tomadas como marcas possibilitadoras de inferência irônica distinta por distintos destinatários.

119 Abrindo parentes nos meus comentários sobre a ironia de Brait, digo que como exemplo dessa compreensão, Linda Hutcheon faz a análise de uma exposição realizada no Museu Real de Ontário entre os anos de 1989-1990 que foi a primeira mostra completa da coleção de obras africanas do acervo. Essas obras tinham sido adquiridas por meio de expedições de canadenses a serviço do Império Britânico no período de colonização do continente africano. Não entrarei em detalhes sobre a exposição como consta no livro, mas digo que pesquisadora relata como que muitas das sinalizações irônicas existentes na mostra foram interpretadas por alguns como crítica ao espírito colonial e, por outros, como exaltação desse mesmo espírito. E não se tratava de rejeição de um significado literal expresso em favor de um ou outros significados: tanto a compreensão de crítica quanto de exaltação do espírito colonial eram significações ironicamente inferidas, argumentações indiretas contraditórias entre elas e entre o significado literal expresso. Isso se deveu, para Hutcheon, pela natureza transideológica da ironia, pela fricção entre o dito e o não dito, pelo contexto amplo e pela relação com diferentes comunidades discursivas, assim como pela postura ativa do interpretador da ironia.

Voltando aos comentários críticos da compreensão de Brait, digo que esta última, ao mencionar como o papel ativo do destinatário a perspicácia de reconhecer determinados sinais (linguístico-discursivos) plantados pelo ironista acaba por ignorar essa possibilidade de manifestação do fenômeno irônico, que, no meu entendimento, é muito mais sintomática da sua constituição dialógica do que a pressuposição de conhecimentos compartilhados, pontos de vista, valores pessoais, culturais ou socialmente comungados. O papel ativo do destinatário é, inclusive, o de criar sinais de inferência irônica, não apenas o de reconhecer, e de responder a eles de maneiras distintas.

Por fim, coloco uma questão. Linda Hutcheon afirma em determinado momento que, sobre as análises que fez de fenômenos irônicos, tanto propiciados por experiências individuais quanto por coletivas, ela assume a responsabilidade da sua atribuição de ironia e de explicar o que a levou a tais inferências, o que tomou como sinais possibilitadores de inferência irônica (2000, p. 179). Beth Brait, citando uma parte do romance História do cerco

de Lisboa, do escritor português José Saramago, na qual este narra personagens que recolhiam lenha de árvores plantadas por mouros, que as plantaram sem saber que essa mesma lenha os queimaria, afirmando o narrador ser isso uma ironia do destino, coloca uma questão retórica; a pesquisadora diz: “caberia perguntar de quem é a ironia: do destino ou do narrador que flagra essa especial contradição e deixa para o leitor o prazer de ver mais longe através da

120 marota estratégia linguageira?”49 (BRAIT, 2008, p. 25). Sendo assim, faço agora a minha

pergunta retórica: de quem seria a ironia de Madame Pommery como apresentada no livro

Ironia em perspectiva polifônica: de Toledo Malta/Hilário Tácito ou da extremamente bem fundamentada, por isso convincente e, portanto, apta a ser compartilhada, inferência de Beth Brait?