2. A DISPOSIÇÃO DOS DOCUMENTOS DE SÍMACO
2.1. Alguns Discursos de Símaco
Com relação aos Discursos I e II de Quinto Aurélio Símaco Eusébio, textos sobre
os quais nos debruçaremos com mais ênfase, eles nos dão notícias sobre a vida e os feitos
de Valentiniano I ausentes em outros autores da época, como sua formação junto a seu pai
em África, sem contar as meticulosas descrições das obras defensivas levadas a cabo pelo
imperador
157. Conforme mencionado anteriormente, os títulos destes documentos de cunho
panegirístico já evidenciavam o louvor ali prestado aos feitos imperiais: “Primeiro elogio a
Valentiniano Augusto, o Maior”, pronunciado no ano de 369; e “Segundo elogio a
Valentiniano Augusto, o Maior”, em 370. A expressão “elogio” (laudatio) somente foi
utilizada nos títulos dos Discursos de Símaco para fazer referência ao imperador
Valentiniano I e seu filho Graciano, proclamado Augusto por seu pai em 367. Os outros
cinco documentos desta natureza exibiam apenas o termo “por”(pro), seguido pelo nome
da pessoa sobre a qual se falava e/ou pela qual se pedia algo
158.
Como a natureza da própria fonte sugeria, o discurso laudatório e legitimador
produzido nestes escritos era muito mais forte do que em qualquer outro documento
deixado por Símaco. Na mesma linha dos argumentos de Conte, sabemos que o orador
profissional desenvolvia um panegírico com o intuito de persuadir o ouvinte/leitor. Seus
escritos integravam uma espécie de “campanha de persuasão”.
159Diante da natureza
apologética destes documentos, para nos auxiliar a compreender as mensagens ali
edificadas, lançamos mão de princípios da Filologia, mais especificamente da Linguística
Histórica, com o intuito de entender o trabalho de elaboração destas obras do senador
tardo-antigo. Procuramos abranger a carga semântica das palavras, os significados dos
termos escolhidos e utilizados pelo autor.
157
VALDÉS GALLEGO, Jose Antonio. Introducción. In:SÍMACO. Informes – Discursos…, p. 155.
158
Pro Patre, Pro Trygetio, Pro Flavio Severo, Pro Synesio, Pro Valerio Fortunato.
159
CONTE, Gian Biagio. Latin Literature: a History. Translated by Joseph B. Solodow. Revised by Don
Ressaltamos, todavia, que caminhamos pela alameda da Filologia como
historiadores, convidados por Marc Bloch a nos integrar a interdisciplinaridade mantendo,
sobretudo, o olhar próprio do historiador
160. Neste ínterim, abriremos mão de compreender
determinadas questões referentes à como e por que a língua latina se modificou; seus
dialetos e variedades. Preocupamo-nos com o estudo material e crítico dos textos; a
utilização da linguagem; e a organização textual. Ao estilo da linguística histórica tida por
Silva como lato sensu, aplicada a teorias do texto e do discurso de dados datados e
localizados
161. Elementos que, no caso de nossa pesquisa, esclareceram a perspectiva
contextual e histórica em que Quinto Aurélio Símaco estava envolto.
A primeira notificação é concernente à natureza dos documentos tratados. O cunho
laudatório pode ser observado em todas as palavras selecionadas detalhadamente pelo
autor. Os cabeçalhos dos textos esclarecem que ali se oferecem “elogios” ao imperador. A
palavra laudatio é a primeira a se apresentar em cada um dos títulos
162. Laudatio é um
substantivo feminino que significa elogio, louvor. Conforme Massaud Moisés, na língua
latina o vocábulo grego apología (apologia), “assumiu a conotação de elogio e, neste caso,
constitui sinônimo de panegírico”
163, apesar de também encontrarmos a palavra apologia
no idioma latino. Neste ínterim, verificamos que ao eleger a palavra laudatio para intitular
suas obras, Símaco vinculou-se a chamada literatura panegirística.
Além da carga semântica das palavras, também foram levados em conta nesta
pesquisa a estrutura do texto e a natureza dos temas tratados. O panegírico tem sua origem
no mundo grego (panegyrikós; no latim: panegyricus). É relativo ao discurso solene, uma
oração escrita e/ou proferida em louvor de alguém ou de algo
164. Herdeiros da cultura
grega, os latinos acolheram a prática dos textos laudatórios, embora Rodríguez Gervás
notifique que há diferenças entre os panegíricos gregos e os latinos. Entretanto, muitos
160
BLOCH, Marc L. B. op. cit., pp. 53 – 54.
161
SILVA, Rosa Virgínia Mattos e. Ouvir o inaudível. In: Caminhos da Linguística Histórica: “ouvir o
inaudível”. São Paulo, Parábola Editorial, 2008. p. 09. Disponível em:
<http://www.parabolaeditorial.com.br/caminhosok.pdf> Acesso em: 21/03/2011
162
“Laudatio in Valentinianum Seniorem Augustum Prior”. “Laudatio in Valentinianum Seniorem Augustum Altera”.
163
MOISÉS, Massaud. Apologia. In: Dicionário de termos literários. Pp. 33-34. Disponível em:
<http://books.google.com.br/books?id=0Pn4qAZ-QyoC&pg=PA162&lpg=PA162&dq=epital%C3%A2mios +claudiano&source=bl&ots=3qTNzxVJWn&sig=etIi_o-jQOoYQfn1qwUR11J2kFI&hl=ptR&ei=2RyNTcX YK4TEgQevrNixDQ&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=3&ved=0CCQQ6AEwAg#v=onepage&q =paneg%C3%ADrico&f=false> Acesso em: 20/03/2011.
164
aspectos da oratória latina (oratio)já se encontravam nas laudationes funebris dos gregos,
nas quais se recordavam de maneira elogiosa a figura do falecido
165.
Apontado por Cícero como “o ilustre pai da eloquência”
166, Isócrates foi
considerado modelo para a elaboração de panegíricos tanto para gregos como para latinos.
Sabemos que desde o final do século IV a.C. a enunciação de discursos políticos consistia
em uma prática comum. Entre julho e setembro de 380 a.C., Isócrates pronunciou sua
primeira obra com o intuito de promover divulgações políticas, “su título procede de las
fiestas religiosas (panegýria) que se celebraban trás los juegos de Olimpia, y en las que
tales discursos encontraban un auditorio numeroso”
167. O Panegírico de Isócrates avaliava
os corretos princípios gregos em contrapartida aos interesses bárbaros e convidava os
gregos a se unirem contra a ameaça persa
168, um inimigo comum. Simultaneamente a
valoração do imperador promovida por Quinto Aurélio Símaco, em seus Discursos, o
escritor tardo-antigo comparou romanos e bárbaros para requerer a superioridade do
Império Romano. Assim como fizera o orador grego, Símaco seduzia seu público com suas
palavras e solicitava sua união contra os inimigos comuns do poder dos romanos.
Rodríguez Gervás e Galletier apontam várias razões para que um panegírico fosse
pronunciado
169. Entre elas destacamos a ocasião das quinquennalia do imperador
(comemoração ocorrida a cada cinco anos do imperador na liderança dos romanos) e a
gratiarum actio (ação de graça, gratidão) pelo consulado. Observamos que o Discurso I de
Quinto Aurélio Símaco foi escrito para homenagear os primeiros cinco anos de
Valentiniano I como imperador dos romanos: “Já cumpres um lustro no poder.”
170Quanto ao Discurso II, este foi preparado em razão do terceiro consulado de
Valentiniano, como evidenciado pelo autor na seguinte passagem: “Houve uma causa
evidente pela qual foi forçado a assumir pela terceira vez os fasces.”
171Desde a época
clássica, os cônsules eram acompanhados por lictores que carregavam consigo um feixe de
varas com um machado, denominado fasces. Durante a Antiguidade Tardia, normalmente,
165
RODRÍGUEZ GERVÁS, Manuel J. Propaganda política y opinión pública en los panegíricos latinos
del bajo imperio. Salamanca: Ediciones Universidade de Salamanca, 1991. p. 26.
166
CÍCERO. Sobre el orador II, 10.
167
GUZMÁN HERMIDA, Juan Manuel. Panegírico (IV). In: ISÓCRATES. Discursos I. Introducción,
traducción y notas de Juan Manuel Guzmán Hermida. Madrid: Editorial Gredos, 1979. p. 199.
168
SANCHO ROCHER, Laura. Las fronteras de la política. La vida política amenazada según Isócrates y
Demóstenes. In: Gerión, vol. 20, n. 1, 2002, p. 234.
169
RODRÍGUEZ GERVÁS, Manuel J. op. cit., p. 26; GALLETIER, Édouard. Panégyriques latins. Tome I
(I – V). Paris: Société D’Edition “Les Belles Lettres”, 1949, p. VIII.
170
SÍMACO. DiscursoI, 16.
171
o número de lictores que escoltavam o governante era doze, porém, Domiciano chegou a
contar com vinte e quatro.
172Os fasces simbolizavam o poder e a autoridade, ao abrirem
passagem para o indivíduo merecedor da magistratura suprema, o cônsul. Conforme a
sentença de Símaco, Valentiniano ostentava pela terceira vez esta insígnia. Portanto, os
motivos que moveram a elaboração de ambos os textos deste autor também respeitaram as
tradições panegirísticas: comemorações da quinquennalia e gratidão pela magistratura
consular.
A coleção conhecida como Panegíricos Latinos proporciona textos emblemáticos
desta natureza. É composta por onze discursos de retóricos galos, mais o Panegírico de
Trajano, escrito por Plínio, o Jovem, no ano 100
173. Estes documentos de autorias variadas,
mas marcadamente galas, e datas diversas, foram frutos de um período no qual a retórica
teve extraordinário destaque. Com os Flávios, especialmente Vespasiano, no século I d.C.,
iniciou-se uma política de mobilidade social que privilegiou demasiadamente gramáticos e
retóricos
174. Plínio, o Jovem, declarou que um número considerável de cátedras
espalhou-se por todo o território romano e que, a partir de então, os professores eram contratados
pelo serviço público
175. A partir da IVª centúria, tal política foi impulsionada por
Constantino e múltiplos editos tornaram-se leis em benefício destas disciplinas
176. Os laços
entre os conhecedores da retórica, as elites locais e os governantes se estreitaram, o que
gerou um ambiente favorável para a elaboração de discursos laudatórios. Enquanto os
líderes reclamavam a valoração de seus poderes, os habilidosos do mundo das letras
empenhavam-se para requerer tal aprovação em favor do governante e, pari passu,
resguardavam seu privilegiado lugar perante aquela sociedade. Lugar, este, no seio do
poder, como a voz daquele que regia.
Voltamos a insistir, embora Símaco não tenha empregado a palavra panegyricus em
seus títulos, o termo laudatio, a estrutura dos documentos e os assuntos apresentados
demarcavam panegíricos. Além disso, a própria coletânea dos Panegíricos Latinos traz três
títulos sem a expressão panegyricus. São eles: Eumenii pro instaurandis scholis oratio;
172
Conforme observações de VALDÉS GALLEGO, Jose Antonio. SÍMACO. Informes – Discursos…, p.
187.
173
Consideramos a data informada nos textos de RODRÍGUEZ GERVÁS, Manuel J. op. cit., p. 11;
GALLETIER, Édouard. op. cit., p. X; HIDALGO DE LA VEGA, María José. op. cit., p. 114.
174
RODRÍGUEZ GERVÁS, Manuel J. op. cit., p. 15.
175
PLÍNIO SEGUNDO. Epístolas IV, 13, 6: “Totum etiam pollicerer, nisi timerem ne hoc munus meum
quandoque ambitu corrumperetur, ut accidere multis in locis video, in quibus praeceptores publice conducuntur.”
176