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2. A DIVISÃO DO TRABALHO E O MODO DE CONHECER

2.1. DIVISÃO E ALIENAÇÃO DO TRABALHO

2.1.2. Alienação do trabalho e trabalho alienado

O trabalho é, para Marx, uma característica ontológica do ser social; é a característica que define o ser social enquanto tal. E é por este motivo que o trabalho é uma categoria importante, porque dá ao ser a característica de humano. O resultado do ato de trabalhar manifesta-se no produto do trabalho; e Marx denomina este fato de objetivação. A objetivação é, portanto, “o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisal” (MARX, 2010, 80). Podemos dizer, então, que o ser humano realiza sua objetivação na medida em que realiza trabalho, enquanto intercâmbio direto com a natureza. Podemos ir além e dizer que objetivar-se é tornar-se humano, ou seja, tornar-se produto do ser social.

A alienação do trabalho é apresentada nos Manuscritos Econômico- Filosóficos, como o processo de separação do produto do trabalho (portanto, da objetivação) com relação a quem o produziu. Marx diz “o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor.” (MARX, 2010, p.80). Portanto, quando o produto do trabalho se torna estranho e hostil ao indivíduo que o produziu, constituindo uma força que o domina, ao invés de ser dominada por ele, estamos diante do fenômeno da alienação do trabalho.

Mas porque o produto do trabalho se tornou estranho ao trabalhador? Quem ou o quê separou o produto do trabalho daquele que o produz? Se utilizarmos o conjunto da obra de Marx e, ainda, as contribuições de Engels (sobretudo no texto A origem da família, da propriedade privada e do Estado) podemos dizer, seguramente, que quem operou historicamente a separação entre o trabalhador e o produto do seu trabalho foi o surgimento da propriedade privada. Entretanto, é preciso admitir que isso não está explícito no texto dos Manuscritos. Marx, ao contrário de afirmar que a causa da alienação do trabalho é a propriedade privada, afirma exatamente o inverso:

Herdamos certamente o conceito de trabalho exteriorizado (de vida exteriorizada) da economia nacional como resultado do movimento da propriedade privada. Mas evidencia-se na análise deste conceito que, se a propriedade privada aparece como fundamento, como razão do trabalho exteriorizado, ela é antes uma consequência do mesmo, assim como também os deuses são, originalmente, não a causa, mas o efeito do erro do entendimento humano. Mais tarde esta relação se transforma em ação recíproca. (MARX, 2010, p.87).

De acordo com a passagem acima, a gênese da propriedade privada é explicada a partir do trabalho alienado e não o inverso. Chegamos aqui à mesma pergunta de Frederico (2009, p.134): “se a propriedade privada provém do trabalho estranhado, qual é a origem deste último?” Frederico observa que, no texto dos Manuscritos, Marx chega a esta explicação da gênese da propriedade privada por meio de uma “dedução lógica”, como o próprio Marx afirma: “a propriedade privada resulta portanto, por análise, do conceito de trabalho exteriorizado” (MARX, 2010, p.87). E é esse procedimento “analítico” e não histórico22 que teria conduzido Marx a

um raciocínio circular, em que a origem do trabalho alienado não fica explicada. Para Frederico (2009), o jovem Marx teria incorrido neste raciocínio circular porque estava, ainda, sob influência da filosofia feuerbachiana, onde o trabalho era

22 É possível que àquela época (1844) o único recurso de Marx para explicação da propriedade privada

fosse, de fato, o analítico. Luxemburgo, conta que até o aparecimento, em 1851, do trabalho de Maurer, sobre algumas formas primitivas de propriedade comum, era amplamente aceita a ideia de que a propriedade comum da terra havia surgido no final da Idade Média, ou seja, as informações históricas sobre a propriedade comum que pudessem descartar a universalidade da propriedade privada eram muito escassas. Hobsbawn (2006) também observa que os conhecimentos de Marx sobre a propriedade comunal se aprofundam apenas a partir de 1868, com um estudo sistemático das obras de Hansen, Meitzen e Maurer, e a partir de 1877, com o estudo de Morgan.

tido como “essência subjetiva” da propriedade privada. “O Marx maduro, desligando- se de Feuerbach, voltou a estudar a propriedade (...). Vinculando a propriedade à apropriação, determinando-a, historicizando a sua existência” (FREDERICO, 2009, p.155).

Esta relação, destacada por Frederico, entre propriedade e apropriação pode lançar luz à pergunta colocada acima: qual é a origem do trabalho alienado? O problema todo parece estar no fato de Marx, naquela passagem, ter associado “propriedade” com “propriedade privada”. Hobsbawn explica essa diferença da seguinte maneira:

Retirar algo da natureza, ou determinar um tipo de uso para alguma parte da natureza (inclusive o próprio corpo) pode ser considerado, e é o que acontece na linguagem comum, uma apropriação, que é, pois, originalmente, apenas um aspecto do trabalho. Isso se expressa no conceito de propriedade (que não deve ser, de forma alguma, identificado com a forma histórica específica da propriedade privada). (HOBSBAWN, 2006, p.16).

Partindo desta conceituação de Hobsbawn podemos dizer que a propriedade, no sentido de apropriação (da natureza), é resultado do trabalho. O desenvolvimento histórico desta relação entre trabalho e apropriação (ou propriedade), na medida em que produziu um excedente, engendrou a propriedade privada. E esta, uma vez surgida e acompanhada da divisão do trabalho e da troca, transformou o trabalho em trabalho alienado.

O surgimento da propriedade privada fez com que o trabalho deixasse de ser uma atividade direta de intercâmbio com a natureza, ou seja, uma atividade mediada em primeira ordem (equivale ao que nós já definimos como trabalho originário) e passasse a ser uma atividade mediada em segunda ordem (equivale ao que nós já definimos como trabalho alienado). “Mediação de primeira ordem” é, para Mészáros, “a atividade produtiva como tal – é um fator ontológico absoluto da condição humana.” (2006, p.78). Enquanto a “mediação de segunda ordem” é a “‘mediação da mediação’, isto é, uma mediação historicamente específica da automediação ontologicamente fundamental do homem com a natureza.” (2006, p.78). Segundo Mészáros, “o que Marx combate como alienação não é a mediação em geral, mas uma série de

mediações de segunda ordem (propriedade privada – intercâmbio – divisão do trabalho)” (2006, p.78).

Graças à propriedade privada, o produto do trabalho, a objetivação humana, não pertence mais ao trabalhador. O trabalhador não possui mais aquilo que o define como humano (sua objetivação) e está, portanto, imerso num processo de desumanização. No caso do capitalismo, o que é produzido pertence ao proprietário do capital e ao trabalhador resta apenas uma pequena parte do produto do seu próprio trabalho.

O trabalho humano antes da existência da propriedade privada não era trabalho alienado. O trabalho se torna alienado apenas diante da propriedade privada, que não surgiu no capitalismo, mas muito antes dele. Podemos dizer, então, que foi o surgimento da propriedade privada que produziu o trabalho alienado, entretanto há aí não só uma relação de causalidade, mas, sobretudo de reciprocidade, uma vez que a existência do trabalho alienado garante a manutenção da propriedade privada. Esta condição de reciprocidade se estabelece e se intensifica na medida em que a forma mercadoria se torna disseminada e hegemônica, fazendo o trabalho alienado, no capitalismo, sua forma mais completa e desenvolvida.

A alienação do trabalho, no sentido que Marx lhe confere nos Manuscritos, não é um fenômeno psicológico individual. Ao contrário, a alienação é um fenômeno social, uma vez que ela é resultado da forma como a sociedade organiza o trabalho comum mediando-o pela propriedade privada, pela troca e pela divisão do trabalho.

A alienação afeta a forma como os indivíduos das sociedades mercantis interagem uns com os outros. Para Mészáros (2006, p.14) a alienação pode ser entendida como perda de controle: o produto do trabalho se corporifica “numa força externa que confronta os indivíduos como um poder hostil e potencialmente destrutivo.” Esta perda de controle se manifesta, conforme Marx (2010), em quatro aspectos da alienação do trabalho: 1) a relação do trabalhador com o produto do seu trabalho; 2) a relação do trabalho com ato da produção no interior do trabalho; 3) a

relação do ser humano com seu ser genérico; e 4) a relação entre os seres humanos. Analisemos cada um destes aspectos detalhadamente.

Tendo em vista esta descrição do que é o processo de alienação do trabalho, cabe observar uma diferença na definição do conceito de trabalho alienado, frequentemente utilizado nas discussões sobre o tema da alienação do trabalho, e o conceito de trabalho alienado que definimos no capítulo 1, que está em contraposição ao conceito de trabalho originário. O primeiro refere-se ao trabalho cujo produto foi separado do produtor; o segundo refere-se ao trabalho cuja unidade entre pensar e fazer foi rompida. Vale notar que não se trata de fenômenos diferentes, mas de dois aspectos diferentes do trabalho alienado, cujo segundo aspecto (a cisão entre pensar e fazer) nem sempre é enfatizada nas discussões acerca da alienação do trabalho. Portanto, consideramos que o trabalho nas sociedades onde vigora a propriedade privada, as divisões do trabalho e a troca mercantil é sempre trabalho alienado, isto é, é sempre um trabalho cujo produto não pertence ao produtor e que a unidade entre pensar e fazer está rompida, independentemente do grau deste rompimento.