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Alterações semânticas: fatores cognitivos e pragmáticos

No documento GLAUCIA ANDRIOLI CHIARELLI (páginas 41-44)

CAPÍTULO I: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2. Gramaticalização

2.3. Alterações semânticas: fatores cognitivos e pragmáticos

Fatores cognitivos e pragmáticos geralmente interagem para o desenvolvimento de formas gramaticais e Heine (2003) enfatiza que esses dois fatores captam propriedades complementares do processo de gramaticalização. Segundo o autor, para a descrição do processo por meio do qual formas que codificam experiências humanas mais concretas adquirem funções menos concretas, há duas linhas principais: o modelo da transferência e o modelo de contexto.

O modelo da transferência, fundamentado na cognição, pressupõe que há padrões de transferência conceitual que partem de domínios mais concretos da experiência humana (objetos, movimento físicos, espaço) para domínios mais abstratos como, por exemplo, tempo, causa, concessão, entre outros. Nesse modelo, temos a atuação da metáfora, conceituada por Hopper e Traugott (2003) como um processo pelo qual há transferência de um significado básico, mais concreto, para um mais abstrato, envolvendo uma projeção de domínios, geralmente referidos como “saltos associativos”. A motivação estaria nas relações

icônicas e analógicas. Heine (2003) estabelece o seguinte cline que reproduz um padrão de transferência metafórica:

PESSOA > OBJETO > ATIVIDADE > ESPAÇO > TEMPO > QUALIDADE

De acordo com o autor, qualidade é uma categoria genérica que engloba várias relações lógico-semânticas que atuam no domínio textual, tais como causa, condição, conclusão, concessão, finalidade, entre outras. Considerando as três últimas categorias, Heine et al. (1991) propõem um percurso de gramaticalização para os conectores textuais que evidenciam sua origem espaço-temporal, conforme o esquema:

ESPAÇO > (TEMPO) > TEXTO

Um item que codifica uma relação espacial pode passar, metaforicamente, a veicular uma relação temporal, até chegar a assumir funções relacionadas à organização textual, como relações de causa, consequência, concessão, entre outras. Esse cline é compatível com o esquema de Kortmann (1997), apresentado anteriormente. O que Heine et al. chamam de “texto” pode ser correspondente ao que Kortmann denomina relações “CCC”, provenientes de relações espaciais e, principalmente, temporais.

A projeção metafórica, portanto, prediz a possível direção de mudança de um item, entretanto não é capaz de recuperar os estágios intermediários da mudança, já que ela é lenta e gradual.

A fim de recuperar esses estágios, Heine (2003) chama a atenção para o modelo de contexto, que capta exatamente a gradualidade da mudança gramatical. O modelo do contexto, fundamentado na pragmática, pressupõe que a gramaticalização requer contextos

apropriados para ocorrer, o que leva ao aumento do número de contextos em que o item é usado; e, consequentemente, leva ao aumento da frequência de uso do item. São noções chave desse modelo reinterpretação induzida pelo contexto, inferência pragmática, implicatura conversacional e metonímia.

Em particular, Heine (2002) mostrou que o desenvolvimento diacrônico de itens gramaticais pode ser descrito por meio de um roteiro de estágios sucessivos, associados a diferentes tipos de contexto, conforme resumido no quadro abaixo:

Estágio Contexto Significado resultante

I Estágio Inicial Não restrito Significado fonte II Contexto Bridging Há um contexto específico que dá origem a

uma inferência em favor de um novo significado.

Significado alvo em primeiro plano.

III Contexto Switch Há um novo contexto que é incompatível com o significado fonte, mas, para esse significado ser sustentado, ele precisa do contexto que lhe deu origem.

Significado fonte em segundo plano.

IV Convencionalização O significado alvo não precisa ser sustentado pelo contexto que lhe deu origem; ele pode ser usado em novos contextos.

Apenas significado alvo.

Quadro 4: o modelo do contexto (HEINE, 2002)

Conforme Heine (2002), contexto bridging é a ponte para a mudança, pois processos inferenciais sugerem uma nova interpretação para o item. Heine explica que, embora o significado alvo seja o mais favorável a ser inferido, ele ainda é cancelável, pois a interpretação é baseada na relevância e na informatividade e o significado alvo ainda não faz parte do item.

Já o contexto switch é incompatível com alguma propriedade do significado fonte, o que leva a uma interpretação somente do significado alvo, ficando, assim, este em primeiro plano e aquele, em segundo plano. Esse aspecto pode ser explicado a partir de Heine (2003) quando ele afirma que, no processo de gramaticalização de uma forma linguística, algumas

propriedades (morfossintáticas, semânticas, pragmáticas) são perdidas, enquanto outras são adquiridas, além de o elemento preservar traços da forma fonte. Com isso, ao chegar ao estágio do contexto switch, há algumas incompatibilidades dado o fato de que o item já perdeu várias das propriedades da forma fonte e ganhou algumas características do novo domínio. Heine (2002) dá expressiva importância ao contexto switch, afirmando que ele é o responsável pelo processo de mudança, na medida em que a leitura mais abstrata não é apenas uma inferência, mas começa a fazer parte do item. Entretanto, diferentemente de significados convencionalizados, o significado que aparece no contexto switch ainda precisa ser sustentado por correlatos formais específicos, já que, além de perdas e ganhos, há preservação de traços da forma fonte.

De acordo com Heine, a maioria das inferências contextuais é confinada ao contexto bridging, isto é, são descritas como “significados contextuais” ou “significados pragmáticos”,

advindos de uma inferência, como explicitado acima. Algumas delas, porém, passam a ser cada vez mais frequentes até não mais precisar de elementos do contexto para ser sustentadas. Quando isso ocorre, há convencionalização, em que o significado alvo passa a fazer parte do item, ou seja, faz parte da polissemia da palavra. Essa característica faz com que o elemento possa ser usado em novos contextos, inclusive podendo co-ocorrer com o significado fonte na mesma cláusula.

No documento GLAUCIA ANDRIOLI CHIARELLI (páginas 41-44)

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