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Quando o homem aprender a respeitar até o menor ser da criação, seja animal ou vege- tal, ninguém precisará ensiná-lo a amar seu semelhante.

alberT schweiTzer

Teólogo, músico, filósofo e médico alsaciano

Como vimos, o problema da carência de profissionais de educação científica é multifatorial, envolvendo questões sociais, econômicas e psicológicas, sendo o resultado de um processo que tende a se perpetuar. Basicamente, as ações governamen- tais e de organizações privadas preocupadas com o problema são relativamente ineficazes porque não há recursos suficientes para as soluções sociais e econômicas, e porque não podem abranger a questão psicológica, que se refere diretamente ao estágio de desenvolvimento da consciência dos seres humanos, e justamente aí reside a nossa possibilidade de ação, enquanto educadores das ciências.

Na verdade, existem duas alternativas: ou agimos no senti- do de resolver essa questão premente, ou ela será naturalmente resolvida pelas próximas gerações de professores de educação científica, ainda que escassas. Se cruzarmos os braços agora, existirão pouquíssimos professores num futuro relativamente breve de uma ou duas gerações, e as necessidades científicas e tecnológicas da sociedade não poderão ser satisfeitas, obri- gando os administradores a investir maciçamente na formação para as ciências. Simultaneamente, os professores existentes então, nossos filhos e netos, pertencerão a um grupo de pes- soas com um nível de evolução da consciência compatível com a reformulação da ação educativa que propomos, no sentido

da transdisciplinaridade. Essa evolução tem sido detectada e afirmada insistentemente por pesquisadores da mente ao redor do mundo, mas pode ser apontada por qualquer professor que tenha ensinado algumas gerações e esteja ainda ativo. Excluí- das as barbáries causadas pela disseminação da miséria – um problema estrutural que D’Ambrósio (1997, p. 67) afirma ser “o problema central” – as modificações favoráveis no padrão ético dos jovens se tornam evidentes, e permitem a construção de uma imagem otimista para o futuro.

Mas se resolvermos agir agora, evitando uma postura de complacência com o ritmo lento das transformações que se fa- zem imperativas, então um caminho é a transdisciplinaridade. Por meio dela poderemos superar nossas próprias limitações, preconceitos e complexos, instituindo uma educação científica útil, muito diferente da que vem sendo realizada hoje. Isso sig- nifica estritamente abandonar o individualismo para o qual fo- mos treinados, adotando uma atitude ao mesmo tempo humil- de perante os muitos saberes, e participativa e integradora em relação a nossa ação pedagógica. É necessário trabalhar pela eliminação da fragmentação do conhecimento, que dá poder a pessoas que não sabem como manejá-lo adequadamente justa- mente porque não têm a consciência da totalidade. Em síntese a transdisciplinaridade “Repousa sobre uma atitude aberta, de respeito mútuo e humildade em relação a mitos, religiões, sis- temas de explicações e conhecimento, rejeitando qualquer tipo de arrogância ou prepotência” (D’AMBRÓSIO, 1997, p. 9), e co- meça sempre por uma mudança pessoal envolvendo a integra- ção dos aspectos ocultos com os aspectos manifestos de nosso próprio ser. Embora isso possa representar um desafio quase intransponível para ocidentais formados em áreas científicas, há muitos caminhos para esse primeiro passo, desde processos psicanalíticos até a busca de sendas espirituais, passando por meditação e formas de expressão artística e corporal. Cada um deve encontrar-se com seus outros pequeninos eus escondidos, reconhecê-los, amá-los, e perceber-se neles sem julgamentos, integrando-os à psique consciente, pois somente assim será possível observar suas manifestações, evitando ações automá-

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ticas, como as do complexo de especialização e tantas outras que atuam em nossa mente.

Evidentemente, é preciso que estejamos convictos de que a transdisciplinaridade é o caminho a seguir, pois se apresenta como alternativa epistemológica à compartimentalização do sa- ber, representando atitudes diferentes em níveis diferentes da realidade. Para isso é útil que compreendamos também a mul- tidisciplinaridade (ou pluridisciplinaridade) e a interdiscipli- naridade, ações sutilmente diferentes que vêm sendo tentadas de forma sistemática há alguns anos. A multidisciplinaridade representa a focalização da atenção de várias disciplinas sobre um objeto de uma única disciplina, simultaneamente, enquanto a interdisciplinaridade consiste na transferência de métodos de uma para outra disciplina. Já a transdisciplinaridade envolve os elos de ligação entre as disciplinas, os espaços de conheci- mento que consubstanciam esses elos, ultrapassando-as com o objetivo de construir um conhecimento integral, unificado e sig- nificativo. Um detalhamento bastante aprofundado e completo sobre essas diferenças pode ser obtido no livro de Sommerman (2006), referido na bibliografia.

Enquanto a disciplinaridade pode inscrever-se num úni- co nível da realidade, restringindo sobremaneira o campo de possibilidades de ação, a transdisciplinaridade envolve uma atitude vinculada à complexidade, ou seja, à disposição e à capacidade de posicionar-se ativamente perante os diversos níveis da realidade. Por isso mesmo a transdisciplinaridade se sustenta no reconhecimento da existência desses diferentes níveis, onde a lógica da não contradição pode ser superada em favor da complexidade. É interessante e curioso perceber que o reconhecimento da necessidade da superação da disci- plinaridade surge da própria disciplina hiperespecializada, que acaba encontrando-se, em suas fronteiras, com outras tantas disciplinas. Nesse sentido foi a própria necessidade de sobre- vivência que obrigou o surgimento de alternativas de diálogo entre as mesmas.

Na Educação, especialmente, a interdisciplinaridade encon- tra um de seus principais papéis, e se realiza no trabalho coo-

perativo de professores de diferentes disciplinas que decidem integrar suas ações educativas. Essa integração visa, primaria- mente, opor-se à fragmentação do conhecimento, que se traduz num enorme número de especializações que trazem como con- sequência danos evitáveis aos seres e ao planeta, como vimos. O especialista em geral, não porque deseja isso, mas porque é falível e limitado, tende a enxergar o mundo sob o filtro de sua especialidade, e tem grande dificuldade na sua compreensão como um sistema interligado. Assim, suas ações priorizam cer- tos aspectos da realidade em detrimento de outros, causando desequilíbrios que surgem como doenças, tragédias ecológicas e guerras. São ações previsíveis, compreensíveis e corretas, desde a perspectiva fragmentada ilusória que a disciplinarida- de cria e sustenta. Os estudantes e professores compreendem mais facilmente que “A crise de fragmentação começa por uma ilusão, por uma miragem, que é a separação entre sujeito e objeto” (WEIL, 1993, p. 15), uns porque estão em acelerado desenvolvimento psicológico, físico e espiritual, outros porque têm a oportunidade de encontrar no aprimoramento constante sua própria ação vital. Ainda assim a interdisciplinaridade é apenas um pré-requisito da transdisciplinaridade, o segundo passo no caminho, mas não ainda a solução. A participação em ações interdisciplinares se confunde com o que Mello (2002, p. 12) e Galvani (2002, p. 96) chamam de “heteroformação”.

A interdisciplinaridade também deverá ser ultrapassada, pois do ponto de vista global caracteriza-se pelo surgimento de muitas outras novas disciplinas. Por exemplo, entre a Física e a Biologia surge a Biofísica, entre a Biologia e a Química surge a Bioquímica, e assim por diante, e a transdisciplinaridade exige a superação da fase interdisciplinar, ou seja, a eliminação com- pleta das barreiras e hierarquias entre conhecimentos. Embora estejamos ainda muito afastados dela, em quase todos os cam- pos do saber, a transdisciplinaridade já ocorre ocasionalmen- te quando as ligações se dão não entre disciplinas estanques e bem delimitadas, mas por meio de ligações no interior de um sistema total no qual cada pessoa envolvida num processo

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de educação tem conhecimentos profundos associados a uma perspectiva ampla do ser no mundo. De um certo modo:

O que se postula é a abertura do especialista ao todo que o envolve e à dialogicidade com outras formas de conhecimento e de visões do real, visando a complementaridade. Postula-se também a motivação e disponibilidade imprescindível para atuar em equipe, o desafio da convivência com a diversidade (WEIL, 1993, p. 140).

E essa disposição para a convivência se insere na cons- trução de uma cultura transdisciplinar porque objetiva cuidar para que não míngue o ser humano perante a separatividade. Além disso, a transdisciplinaridade é o caminho natural da Educação, pois “[...] repousa sobre o exame, na íntegra, do pro- cesso de geração, organização intelectual, organização social e difusão do conhecimento” (D’AMBRÓSIO, 1997, p. 15). Esse é um processo que consideramos irreversível, pois dele depende a sobrevivência da espécie humana, que parece destinada ao saber desde seu surgimento.