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4. Percepção e fantasia nas modalidades da alucinação

4.1 Alucinação negativa

Tivemos a oportunidade de abordar a conceituação da alucinação negativa levada a cabo por Green (2010b), no capítulo 3 desta tese. O seu trabalho expandiu “consideravelmente o sentido da alucinação negativa. Ela já não se confina ao registro mais ou menos regressivo das manifestações da denegação, da psicopatologia da vida cotidiana na confusão alucinatória” (Green, 2010b, p. 226). Uma vez que já trabalhamos com esse sentido ampliado, pretendemos nos voltar para as suas manifestações cotidianas, ou seja, para as primeiras apreensões do fenômeno e avaliar as possíveis relações com a fantasia inconsciente.

Antes, visto tratar-se de um fenômeno intrigante, achamos válido partir de uma descrição apropriada. Encontramos uma que, a nosso ver, traz clareza para a discussão que segue. Num artigo dedicado à alucinação negativa, Brakel (1989) elaborou o seguinte recorte para o fenômeno:

A alucinação negativa se refere apenas a fenômenos em que um evento externo importante, tendo ocorrido com duração, intensidade e centralidade suficientes para ter sido percebido conscientemente e julgado como uma percepção de vigília, no entanto, não foi experienciado como tal (p. 438). O fenômeno da alucinação negativa não fugiu à atenção de Freud. Vimos acima que ele o abordou a respeito da hipnose, em especial, o efeito pós-hipnótico de deixar de perceber certa pessoa do ambiente, em virtude de uma ordem dada durante o transe hipnótico. Veremos, agora, a descrição da alucinação negativa tomada como um mecanismo psíquico de defesa, por meio de sua equiparação a um ato falho.

No livro “Sobre a psicopatologia da vida cotidiana” (1901), Freud voltou a abordar a alucinação e os seus exemplos contemplaram as alucinações positiva e negativa. Sobre a positiva, ele apenas relatou que em Paris ouviu algumas vezes uma voz chamando seu nome. Sobre a alucinação negativa, ele citou exemplos ligados aos lapsos de leitura e expôs uma

situação pessoal em que não viu um casal passando por ele. O uso feito por Freud desse fenômeno negativo merece, a nosso ver, ser retomado, pois notamos que, à época, Freud parecia bem seguro de sua ocorrência e se serviu dele evocando como causa a evitação de um conflito psíquico que levaria a um estado de angústia. É sobre este último aspecto que vamos nos ocupar agora.

No capítulo 3, vimos o caso em que Freud deixou de ver um casal que passava por ele. Essa experiência perceptiva poderia ser denominada de sintoma transitório63. Freud tratou o ocorrido como um sintoma em cuja raiz ele descobriu uma fantasia infantil de vingança. O afastamento da percepção do casal, a alucinação negativa dele, poderia ser compreendido como resultado de um mecanismo de defesa. A sua função teria sido a de evitar o contato entre a percepção do casal e uma representação inconsciente ligada à fantasia de vingança evocada por Freud. Haveria aqui um conflito entre o atual, que evocaria/animaria fantasias inconscientes, levando a um sinal de angústia, e as defesas do Eu que seriam colocadas em ação como resposta.

Outro exemplo de uma alucinação negativa está relacionado com um lapso de leitura, entretanto, não com o mecanismo do lapso em si – a troca do termo ‘Zu Fuss’ (a pé) pelo termo ‘Im Fass’ (num barril)64 –, mas com a autoanálise levada a cabo. O fenômeno ocorreu quando

Freud procurava num livro de história da arte uma sentença que havia lhe ocorrido entre as primeiras associações. Apesar de ter lido “repetidamente partes da mesma página”, não encontrou “a frase pertinente” (Freud, 1901/2006, p. 117). A alucinação negativa da frase que Freud procurava teve como função despistá-lo, pois buscou evitar o encontro entre uma percepção e uma fantasia inconsciente. Freud somente encontrou a frase que buscava após ter desvelado uma fantasia de competição ligada a seu irmão mais novo.

Ainda na obra de Freud, podemos retomar o caso do “Homem dos Lobos”, na esteira da articulação teórica de Green (2010b), pois há entre as associações de Sergei65 uma história de sua infância em que ocorreu uma alucinação positiva. O menino estava com sua babá no jardim onde brincava com seu canivete num tronco de árvore quando notou “que havia cortado o dedo mínimo da mão, de forma que ele estava preso somente pela pele” (Freud, 1918[1914]/2010, p. 115). Por que trazer esse caso de alucinação positiva? É neste ponto que as ideias de Green merecem ser apresentadas.

63 Cf. “Sintomas transitórios no decorrer de uma psicanálise” (Ferenczi, 1912). 64 Freud estava lendo uma notícia de jornal quando ocorreu o lapso de leitura.

Não seria natural esperar que de um corte de canivete no dedo saísse sangue? Acontece que na alucinação positiva do dedo cortado não havia sangue. A leitura de Green (2010b) se desdobra na proposição de que “o sangue que acompanharia o corte” (p. 192) não foi visto, ou melhor, foi alucinado negativamente. Segue daí outra proposição que relaciona a alucinação negativa com a positiva, no sentido de a negativa ocorrer antes da positiva, tornando-se condição de possibilidade para a alucinação positiva66. “Em outras palavras, no momento da instalação da alucinação [positiva], a fantasia do sangue é negativada” (p. 192). A fantasia do sangue liga-se à fantasia de castração de modo que encontramos aqui o mesmo tipo de situação dos exemplos acima, ou seja, o aparecimento de um sintoma transitório, uma alucinação temporária, cujo objetivo seria o de evitar o encontro de uma percepção com uma fantasia inconsciente. Em outras palavras, vemos aqui um tipo de saída que o Eu encontra para lidar com os estados de angústia.

A articulação de Green segue pela suposição de que a alucinação negativa precederia a alucinação positiva a partir da negativação de uma percepção, cujo lugar vazio prepararia a projeção alucinatória. O nosso resumo do modelo metapsicológico proposto por Green (2010b) encontra-se no capítulo 367. A exposição metapsicológica do fenômeno feita por Green começa

por subdividi-lo nos seus aspectos interno e externo. Do lado externo, existe uma percepção intolerável e a sua alucinação negativa – a invalidação da percepção. Do lado interno, a fantasia inconsciente busca se tornar consciente, mas se depara com a barreira do sistema P(Cs). A percepção é indesejável, pois sua presença investe, ainda que apenas a meio caminho, uma trama perceptiva68 que em algum nível se liga à fantasia inconsciente69. Essa conexão fornece um reforço ao impulso que força a fantasia a se tornar consciente. Frente a essa pressão – “a conjunção desses dois aspectos autoriza a pensar que poderia haver aí potencialização de afetos” (Green, 2010b, p. 187) –, não é a fantasia inconsciente que se extingue, mas a percepção que é recusada. Green trabalha com a ideia de que a percepção denegada deixa um espaço vazio, cujo lugar vem a ser ocupado pela representação inconsciente, sendo que, nesse movimento, o

66 “[...] a alucinação negativa se negativa a si mesma pelo recobrimento da alucinação positiva [...]” (Green, 2010b, p. 207).

67 Cf. Capítulo 3, pg. 81. 68 Cf. Capítulo 1, p. 31.

69 “Na realidade, as coisas não são simples, pois a ligação entre a representação inconsciente e a percepção não coloca em presença duas formas psíquicas equivalentes. Parece, então, que um trabalho psíquico intenso e extremamente rápido se realiza entre as representações derivadas da fantasia central e o cerne desta, assim como entre a percepção e as lembranças associativas que ela evoca” (Green, 2010b, p. 211).

efeito da denegação se traduz no branqueamento daquilo que se apresenta à mente pela percepção70.

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