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CAPÍTULO 2 Os cenários escolares

3.2. O aluno G

Meu primeiro contato com G aconteceu logo após ser chamado pela coordenadora pedagógica, depois de uma conversa prévia entre eles na qual fora enviada a autorização para a entrevista. Para evitar que o espaço interno do ambiente escolar pudesse trazer influência determinante na entrevista, eu solicitei à coordenadora pedagógica para conversar com os alunos

na área externa da escola, onde havia um espaço amplo, aconchegante e que não trouxesse tão explícitas as características do ambiente-escola. Cogitei que, talvez, isolados, eu conseguisse propiciar um clima mais favorável para a condução da entrevista. Afinal, naquela situação, estávamos no ambiente no qual sua dificuldade escolar foi construída.

G, então, veio com a coordenadora, que me deixou com ele para que nos dirigíssemos ao local. Desci as escadas conversando com ele e lhe explicando o porquê de nossa conversa e que, apesar da autorização de sua avó, a entrevista só aconteceria se ele permitisse. Um menino pardo, alto, cabelos curtos e pretos, magro, com camiseta preta e calça jeans, de poucas palavras, mas de fala firme. Sua vestimenta e adereços indicava que queria se distinguir, ter uma marca própria. Disse não se importar com a conversa, como quem não tem interesse pela proposta, mas também não se opôs, era-lhe indiferente.

Ao chegarmos no local onde pensei em conversar, a quadra, que fica ao lado, estava ocupada. Havia muitos jovens, o que supus que pudesse acanhá-lo na sessão. Chamei-o para procurar outro local na área externa, na parte da frente da escola. No entanto, tinha um portão fechado. O menino, numa postura altiva, vai andando comigo e afirmando: “É pegadinha, né? Só pode ser...”. Percebi o garoto impaciente, fiz que não compreendi e rapidamente improvisei um local para conversarmos, e que me pareceu silencioso, propício dentro daquele conjunto que tanto dificultava o andamento da atividade.

No pátio, no canto esquerdo, há um palco, onde avistei um banco. Foi nesse local que começamos, efetivamente, a conversar. Em seguida, iniciou uma movimentação de alunos, uma menina chegando até o local onde estávamos, suponho que curiosa frente à cena que lhe parecia inusitada. Diante do novo cenário que se mostrava, chamei-o para procurar um novo local, ao que me respondeu: “Não me importo com os judeus, não”. Com isso, deixou explícito que não se incomodava com a movimentação que acontecia e já tentava demarcar sua superioridade. Ainda assim, preferi que nos deslocássemos. Subimos para que eu procurasse novamente a coordenadora e pedi a ela que providenciasse um local privado para que conversássemos. Em um completo despreparo para me receber – mesmo que a data em que eu iria tinha sido combinada após seguir todos os procedimentos burocráticos solicitados pela própria coordenadora –, precisei conversar com ela e explicar-lhe que não havia encontrado um local em que pudesse ser realizada a conversa, pedindo assim seu auxílio nesse sentido. A profissional, então, saiu procurando um local ali mesmo na esfera administrativa para ficarmos, e eu continuei esperando com G, o que

demorou poucos minutos, até que me informou que eu poderia conversar na sala de informática. Entramos e havia dois alunos além da monitora de informática. Supus que, já que a coordenadora tinha me indicado o local, este estaria sem uso. Perguntei se eles continuariam no espaço e a monitora me respondeu que eles estavam realizando pesquisa, que não podiam se retirar. Diante disso, procurei novamente a coordenadora para lhe falar da impossibilidade, até que esta conseguiu nos acomodar na sala de direção. Era um espaço restrito, onde havia uma estante com livros e uma mesa com muitos papéis, além de duas cadeiras. E nesse espaço finalmente seguiu a sessão, evidentemente com um clima já prejudicado pela sucessão de desajustes que a contextualizaram.

Disse a G, como aos outros entrevistados, quais as intenções permeavam pesquisas como essas sobre a realidade da escola pública brasileira e possível solução futura dos problemas. E comecei a lhe perguntar o que por fim estava programado. A sessão foi rápida, em decorrência de sua fala curta, com uma prevalência monossilábica e uma postura pouco aberta ao diálogo. G criou uma imposição de como queria ser reconhecido e buscou não se expor além dessa construção.

G, na ocasião da entrevista, era um menino de 16 anos. Verifica-se que também ele apresenta idade superior ao esperado, como ocorre com o aluno F. Nasceu em Francisco Morato, mas mora na cidade em que estuda desde que nasceu. Atualmente, sua casa localiza-se no mesmo bairro da escola e mora com sua avó, sendo, portanto, duas pessoas no total. Sua mãe faleceu, segundo contou, em 1997, ano de seu nascimento. Tem um irmão mais velho. Não tem nenhuma religião.

Sobre os padrões de consumo de G e de sua família, enquadra-se no esperado para a fração de classe a que pertence: a casa de sua avó é própria, possui cinco cômodos, assim como era na infância, desde quando mora com ela; em sua casa há equipamentos eletroeletrônicos, em alguns itens mais de um: dois rádios, dois DVDs, cinco televisores, computador com internet e duas máquinas de lavar roupas. Sua avó possui um carro; em sua casa não há empregada doméstica. Eles possuem convênio médico particular. G não sabe precisar a renda familiar. Perguntado sobre como classificaria sua classe social, obtenho a resposta que se enquadra pertencente à “classe alta”, o que demonstra um desconhecimento da posição que ocupa no espaço social.

G não soube dar informações precisas sobre os estudos de seus pais. Sobre os hábitos de leitura na família, relatou que seu pai se interessava pelo nazismo e tinha bastante material sobre o assunto, principalmente de leitura, de onde G adquiriu interesse pelo tema.

Acerca dos hábitos culturais de G, em seu tempo livre, vai à casa de amigos. A música se faz presente na rotina de G, ouve frequentemente e é adepto ao rock’nroll. Quase nunca compra CDs, baixa músicas pela internet. Não costuma ouvir rádio. Assiste à TV com frequência, gostando de desenhos de séries, programas de esporte e filmes. Costuma utilizar a internet com frequência. G vai, às vezes, ao cinema com amigos e também a parques. Nunca foi a shows, nunca viajou. Nunca foi ao teatro, afirmou não gostar. Já visitou bibliotecas, sozinho. Frequenta shoppings com amigos; restaurantes, quase nunca e nas poucas vezes que foi, teve a companhia de amigos. Participa de competição de bicicletas e anda de skate.

Verifica-se, por esses dados, que o aluno G apresenta uma vida diferenciada quando comparada à de F, sobretudo no que se refere ao contato com atividades culturais e relacionamento social. Chama atenção o fato da presença a bibliotecas para um aluno que não tem domínio da leitura e da escrita.

G iniciou os estudos em outra escola e na 5ª série veio para a escola 01. Foi retido duas vezes: na 4ª e na 8ª séries – o ano da entrevista era a segunda vez em que cursava a 8ª, como na situação de F. Iniciou seus estudos pela 4ª série, apresentando sua justificativa: “É, meu pai num queria que eu estudasse por causa de briga, eu brigava muito”. Chegou a frequentar a escola na 1ª série e evadiu no mesmo ano. Repito sua fala: “Brigava, aí seu pai tirou você...”. Sorri e completa: “É, eu arrumava confusão”. Quis saber por que ocorriam as brigas, e G complementou: “Não, eu gostava de brigar mesmo, eu aprendi a lutar cedo aí eu ficava batendo”. Perguntei se sentiu falta da escola: “Não, eu não senti falta, não”. Perguntei novamente: “Falta de nada?” Concluiu:“Falta de ficar brigando, só”.

G mora em frente à escola; assim, suponho que a não frequência tenha uma dimensão ainda mais peculiar devido a este fator. Decidi, então, ser mais específica, perguntando a ele se, por todo o tempo em que ficou fora, quando via as crianças passando, isso despertava sua vontade ou, se em algum momento, quis voltar a estudar. Resumidamente, respondeu: “Não”. Questionei quem decidiu que ele retornaria e por que, se foi seu pai. Afirmou: “Foi tipo assim, se você não quiser estudar, você não estuda, cê faz o que cê quiser”. Perguntei então, quem decidiu pela sua volta, já que seu pai não lhe exigira e ele próprio não tinha vontade, ao que respondeu:

“É, não, aí tinha que estudar pra ter um futuro pela frente”. Fui, então, mais direta, perguntando se seu pai o colocou de volta. Afirmou que sim. Disse que acabou se acostumando.

Ao retornar à escola, fez uma prova e foi aprovado para dar início na 4ª série. Essa é uma prática que permite, depois de realizarem uma prova, aos alunos pularem séries para evitar a defasagem idade/série. Tal política visa à correção de fluxo para repercutir nos índices que marcam a educação.

Nunca evadiu da escola e afirmou que, em nenhuma ocasião, teve nem mesmo vontade, já que começara depois da idade. Nunca fez aulas particulares e cursos, diz que “Também nunca quis fazer curso”. Já participou de reforço de Português e Matemática, mas nos dois anos em que cursou a 8ª série não teve nenhuma atividade de reforço. G diz que nunca foi suspenso e que sua avó tampouco já fora chamada na escola, pois nunca deu motivos para tal. Afirma não se enquadrar no perfil do aluno que bagunça, em nenhum momento da trajetória escolar.

Sobre como G vê a escola: “Hum... boa”. Deixei claro que podia ficar à vontade para falar o que pensava, que não tinha relação nenhuma com a escola e ninguém dali teria contato com nossa conversa. Ouviu, silencioso. Perguntei, então, por que considerava boa. Respondeu: “Porque acabou ‘os negócio’ que tinha de bastante gente que levava droga pra usá no banheiro, esses tipo de coisa”. Questionei se tinha droga nos períodos diurnos também, ao que afirmou: “É, normal”. Apontou também o que faltava na escola: “É, ensinar mais as pessoas, interagir com elas”. Acredita também que os alunos devem passar por todas as séries, não importa a idade em que ingressem na escola. Para ele, deveria ter passado por todas: “Na primeira, primeira, segunda, terceira”. Ainda que com a idade diferente dos demais caso iniciasse pela 1ª série, acredita que mesmo assim isso deveria ter ocorrido.

G convive bem com os colegas, mas amigos na escola, afirmou possuir poucos. Disse que se relaciona bem com os colegas da sala, mas que seus amigos não estão no espaço escolar, são de “fora do país”. Seus amigos, afirmou, não têm nada a ver com aqueles dali, com os pares na escola. Não frequenta a casa de nenhum colega, assim como nenhum deles vai à sua, não saem juntos. Assim, com esses não convive além do que a divisão do espaço escolar impõe, como afirma, “para nada”.

Perguntei sobre o que de mais importante aprendeu na escola:

E - Oh, foi jogar bola, hein. P - Jogar bola...

E - É, quase eu fiquei profissional. P - Sério? E por que você desistiu?

E - Não, porque não deu certo. As pessoa quer dinheiro pra entrar. P - Mas você continua jogando ainda?

E - Não, eu parei.

P - Parou, desistiu? Era futebol? E - Era.

G mudou a postura ao tratar desse assunto. No decorrer da entrevista, falando o quanto menos possível, fechando as entradas por onde pudessem ficar evidenciadas suas fragilidades devido à condição de analfabeto, falando com orgulho da, ao que parece, única faceta do cotidiano escolar na qual se sai bem, enfatizou o ter “quase se tornado profissional”, deixando claro que, se não ocorreu, foi por falta de dinheiro, mas não de capacidade. Como ficou claro, “é bom nisso!”.

3.2.1. Elementos que se sobressaem na postura de G

G tem uma postura aparente de superioridade, opera com um escudo de prepotência e arrogância. Não se intimidou pela entrevista, mas criou um perfil e o seguiu à risca. Selecionava do que podia tratar e recusava falar do que não estava em seu filtro, impossibilitando avanços no diálogo.

Passou a imagem de que não lhe interessava a prática da escola, nunca a valorizou e, por isso, não aprendeu a ler e a escrever, mas não deixou, com isso, de criticar o fato de ter entrado diretamente para a 4ª série.

Diferentemente de F, não faz questão de estar em evidência, pelo contrário, compara-se a uma pedra. Contudo, sua atuação na escola, pelo que se apreendeu, não é a de um aluno inferiorizado, no qual paira a apatia se sentindo diminuto. G se apega a tudo o que sabe fora da escola e não dá a mínima importância para todo o contexto daquilo ali, inclusive para a entrevista.