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CAPÍTULO 3 ANÁLISES E RESULTADOS

3.1 Os atores e a atividade que os envolve

3.1.2 Alunos e professores: que letramento queremos?

Para construir esta seção, realizei a triangulação dos dados construídos durante a pesquisa etnográfica. A análise foi realizada com base nos procedimentos recomendados por Bortoni-Ricardo (2005, 2008). Vale dizer que a escolha dos excertos que compõem esta seção foi uma tarefa difícil. A grande quantidade de falas tem o propósito de colocar o leitor em contato mais estreito com alunos e professores.

3.1.2.1 Categoria IV: a matrícula na classe de alfabetização

O grupo de alunos já foi caracterizado anteriormente, mas, durante as análises, os leitores conhecerão aspectos pessoais do seu desenvolvimento linguístico e social. Para iniciar a análise, quero ressaltar a forma como cada aluno chegou à instituição.

Bento, 58 anos de idade: com a morte da mãe, em 2001, ficou sob a responsabilidade de outros familiares que procuraram atendimento na instituição. Ele foi matriculado em 2002.

Rita, 41 anos de idade, e Márcia, 24 anos de idade, são irmãs e foram encaminhadas à instituição pela escola de EJA, onde estudam, para desenvolvimento linguístico e social.

Jonas, 52 anos de idade: com a morte da mãe, foi morar com uma irmã que “não sabia o que fazer com ele” e, ao procurar na internet, encontrou a proposta da instituição, onde o matriculou em 2007.

Verônica, 29 anos de idade: sua mãe migrou de uma cidade pequena de Minas Gerais para Brasília em busca de melhores condições para a filha. Verônica tem certificado de ensino médio, mas logo se descobriu que ela não sabia ler nem escrever.

Raimundo, 54 anos de idade: sua ida para a instituição foi determinada pela Justiça, em 2012, e ocorreu em uma audiência em que um professor da instituição serviu como intérprete. Diante das opções que a Justiça estava por indicar (atendimento no Centro de Referência de Assistência Social – Cras), o juiz acolheu a sugestão do intérprete sobre o atendimento na instituição para desenvolvimento linguístico e convivência com outros surdos, pois o aluno estava envolvido em conflito com a vizinhança, tendo atitudes muito inadequadas que sugeriam, na visão do psicólogo presente à audiência, falta de compreensão quanto à adequação social. Sua ida para o programa teve como objetivo principal a socialização, mas o aluno mostrou-se extremamente educado, sociável e responsável, sugerindo outras causas para o embate com a vizinhança.

Claudio, 27 anos de idade: foi matriculado pela irmã que tem deficiência física e é bastante informada sobre as instituições de atendimento às pessoas com deficiência.

Joana, 34 anos de idade: foi matriculada pela irmã que obteve informações sobre a instituição em um panfleto e, posteriormente, procurou saber mais sobre o atendimento educacional. Ao descobrir as possibilidades de desenvolvimento dos surdos de Brasília, mandou buscar a irmã na Paraíba na esperança de melhorar sua condição linguística e acadêmica.

Rômulo, 33 anos de idade: veio morar em Brasília com parentes e obteve informações sobre a instituição. Com a ajuda do irmão, conseguiu encontrar o local e matricular-se.

Simão, 21 anos de idade: veio do estado do Tocantins morar com familiares em Brasília e foi matriculado na instituição por um tio. Nos primeiros dias, mostrou-se indignado com a escolha da família, mas logo adaptou-se, tornando-se um dos alunos mais participativos.

Vera, 40 anos de idade: foi matriculada pela mãe, mas uma conselheira tutelar faz contato com a instituição com regularidade para acompanhar seu desenvolvimento, sugerindo conflitos no âmbito familiar.

Simone, 19 anos de idade: com ensino médio completo, chegou à instituição em busca de emprego, mas logo integrou-se à turma.

Martinho, 27 anos de idade: foi matriculado pela mãe que “não consegue mais lidar com ele”, segundo relato da coordenadora. A mãe não queria que ele ficasse o dia inteiro na rua porque estaria envolvido com más companhias.

Ao ressaltar as características particulares do modo como esse grupo foi para a escola, pretendo chamar a atenção para sua dependência em relação à família e à sociedade como provedoras das condições para seu desenvolvimento. Nos próprios relatos, é possível perceber que eles se identificam com a instituição e gostam do seu trabalho, mas sua ida para lá foi uma opção de terceiros.

Nesse sentido, Vigotski (1997), quando fala do status social da deficiência, ressalta a importância do lugar social reservado às pessoas com deficiência. Esse lugar constitui-se como resultado das crenças e dos valores cultivados socialmente entorno dessas pessoas. É esse conjunto de crenças e valores que gera expectativas e opera no sentido de promover ou não as condições para que o desenvolvimento se efetive.

Efetivamente, quase todos eles (exceto um) frequentaram a escola na infância, mas se frequentaram, por que não permaneceram? Por que não foram alfabetizados? Pelas baixas expectativas da família quanto ao seu desenvolvimento? Pela falta de preparo da escola? As responsabilidades da família e da sociedade precisam ser avaliadas dentro do conjunto de crenças e valores citados por Vigotski (1997).

Nas últimas duas décadas, têm-se ampliado as oportunidades educacionais para as pessoas com deficiência. Desde a Constituição de 1988, o Brasil produziu uma rica legislação com o objetivo de garantir a inclusão das pessoas com deficiência e outras minorias na vida social e promoveu diversas ações afirmativas como forma de garantir acesso aos espaços antes fechados ou restritos. No campo educacional, o Brasil tem buscado alinhar a sua estrutura legal e política na direção indicada pelos organismos internacionais23, como a Organização das Nações Unidas (ONU), no que diz respeito à educação das pessoas com deficiência. Para isso, tem estruturado os sistemas de ensino para receber todos os alunos na perspectiva da educação inclusiva.

Esse conjunto de ações foi muito profícuo para as pessoas com deficiência no Brasil. Os avanços no campo da educação refletem-se de muitas maneiras, especialmente na

23 Declaração Mundial de Educação para Todos (1990), Declaração de Salamanca (1994) e Convenção

matrícula das pessoas com deficiência nos sistemas de ensino que teve um aumento de 640% entre 1998 e 2006 (BRASIL, 2007). Muito embora esse fato aponte para uma situação melhor no futuro, é preciso reparar as grandes injustiças cometidas no passado e garantir que não se repetirão. É necessário que a família receba orientação e recursos diante de situações de ignorância, negligência ou carência que comprometam o desenvolvimento de crianças com deficiência.

Em um dos dias de minha presença no campo, tive oportunidade de conversar com um professor e dois alunos da Tokyo Gakugei University que estudam sobre a educação de surdos no Japão e estavam visitando o Brasil com o objetivo de conhecer o nosso modelo de ensino. Como pesquisadora interessada nesse tema, conversei longamente com eles e perguntei-lhes como era a escola para adultos surdos no Japão. De pronto, o professor disse-me que eles não estudavam. A princípio, pensei que a escola japonesa discriminasse os surdos adultos, então perguntei: “Por que não estudam?” E ele respondeu: “Eles estudaram na infância” e, em seguida, informou-me que lá existem leis muito severas para punir a negligência familiar quanto à educação de seus filhos. Imediatamente tomei consciência de que fizera um julgamento pensando na nossa realidade, ou seja, nos surdos isolados que procuraram a escola somente agora quando o pensamento e as práticas sociais passaram a dar mais oportunidades às minorias. Pensava também nos milhares de surdos que ainda vivem completamente isolados, como as minhas primas, no Maranhão. Veio-me a noção da nossa realidade, de que estamos apenas começando um movimento que já se concretizou em outras partes do mundo.

Sobre os alunos citados, é possível concluir que a surdez não foi a causadora do infortúnio de chegarem a essa idade sem adquirir uma língua, sem casar, constituir família, com reduzidas possibilidades de emprego e sem escolarização; mas as condições e as concepções existentes no seu entorno social (im)possibilitaram sua inserção pela falta de aquisição de uma língua, pelo falta de aprendizado da leitura e da escrita, entre outros, que culminaram na sua inabilidade com a realidade que os cerca.

3.1.2.2 Categoria V: “EU PEQUENA, ESCREVIA, COPIAVA, NÃO SABIA NADA, NÃO SABIA NADA”: a escola na infância e as barreiras ao aprendizado.

Quase todos os alunos foram entrevistados. Eles apontaram quais são os seus interesses e necessidades em relação à escola. As entrevistas foram realizadas nos meses de agosto e setembro de 2013. Dos 13 alunos, dez foram entrevistados. Dos três restantes, um estava infrequente no período citado, outro não quis ser entrevistado e uma entrevista foi

perdida por problemas técnicos, desta restou a nota de campo correspondente, feita no dia de sua realização.

As entrevistas foram videogravadas e o tempo gasto em sua transcrição foi longo e cansativo. Quatro horas e 45 minutos de gravação em vídeo consumiram cerca de 80 horas de transcrição. No decorrer do trabalho, percebi os detalhes dos diferentes níveis de aquisição da língua de sinais. Por critérios próprios, distribuo os alunos em três grupos segundo os níveis de expressão em língua de sinais que observei.

No primeiro grupo, estão cinco alunos – Rômulo, Simão, Márcia, Cláudio e Joana – que conseguem falar em Libras com variados graus de competência, expressando seus pensamentos, sentimentos e acrescentando informações aos temas abordados. Esses são os mais fluentes e todos eles adquiriram Libras a partir de 2009, sendo, portanto, falantes tardios. No segundo grupo, estão quatro alunos e, desses, duas alunas são oralizadas. Uma – Simone – usa preferencialmente o Português, a Libras é usada como apoio. A outra – Vera – tem uma fala pouco compreensível e só é possível entender o que ela diz pela conjugação da fala com os gestos e os sinais. Os dois últimos – Raimundo e Verônica – usam a Libras, mas têm dificuldade de estabelecer a cronologia dos fatos narrados e atribuir, com clareza, fatos e ações a pessoas, datas ou lugares específicos.

O terceiro grupo é formado por quatro alunos que demonstram um nível elementar de aquisição da língua de sinais – Bento, Jonas, Rita e Martinho. Observei que, quanto menor é o domínio da língua, maior é a diversidade de sistemas de signos que usam na composição de seus enunciados: sinais da Libras, gestos, mímica, palavras escritas, emissões de sons, palavras faladas, desenhos, uso de objetos e datilologia. Bortoni-Ricardo (2014, p. 20) nos diz que, “quanto mais apoio contextual tem um falante, menos necessidade esse falante terá de precisão lexical, e a recíproca é verdadeira”. Ao fazer um paralelo, observamos que, em nossos colaboradores, a busca de apoio contextual visa suprir a falta do conteúdo lexical. Uma aluna desse grupo, Rita, teve maior presença da Libras em seus enunciados que puderam ser interpretados em razão do conhecimento prévio de sua história de vida. O quarto aluno não foi entrevistado, mas foram gravados longos trechos de suas narrativas. Seu relato é impreciso, em um deles é possível saber que alguém morreu, alguém adoeceu, alguém brigou, mas não é possível dizer com quem, quando e onde os fatos ocorreram.

As entrevistas foram realizadas de acordo com um roteiro previamente elaborado, entretanto variaram muito quanto ao que se pôde abordar em cada uma. Com os alunos do terceiro grupo, só foi possível perguntar sobre suas rotinas, onde moravam, com quem moravam e o que faziam. Em algumas ocasiões, foi possível entender seus sentimentos e

percepções a respeito de situações enfrentadas, mas não foi possível obter respostas quando a pergunta pedia comparação, julgamento ou opinião sobre uma questão específica. Os três alunos entrevistados do último grupo costumavam iniciar suas falas pela repetição do último sinal ou gesto articulado por mim, por isso considerava que eles estavam apenas repetindo, como uma ecolalia, e considerava fala genuína aqueles enunciados em que apareciam sinais ou gestos inéditos.

A altura das pessoas foi um recurso discursivo recorrente que eles encontram para marcar o tempo ou a diferença de idade entre as pessoas. Apresentavam simultaneamente duas alturas para designar pessoas de idades diferentes ou demonstravam a altura que tinham para falar do passado. Aproprio-me desses marcadores e de outros trazidos por eles para fazer as perguntas.

Os enunciados foram traduzidos para Português, embora produzidos por uma variedade de sistemas signicos. Na tradução, as expressões ou os sinais proferidos em LS foram mantidos e transcritos em [CAIXA ALTA]. Essa forma de apresentação não compromete a compreensão e ressalta aspectos dos recursos discursivos utilizados pelos alunos. As falas foram analisadas e os excertos foram agrupados em categorias de acordo com a recorrência a temas que foram provocados nas entrevistas e revelados durante as análises.

As impressões dos alunos sobre a escolarização na infância puderam ser compreendidas nos excertos abaixo. Além da trajetória de vida acadêmica, podemos entender as marcas da escola em suas vidas.

Pesq.: – [AÍ VOCÊ FOI CRESCENDO?] Rita: – [CRESCER]

Pesq.: – [VOCÊ ESTUDAVA?] (faço o sinal de escrever) Rita: – [CRESCER, ESCREVER.]

[...]

Pesq.: – [VOCÊ, AINDA PEQUENA, VOCÊ ESCREVIA?]

Rita: – [EU PEQUENA, ESCREVIA, COPIAVA, NÃO SABIA NADA, NÃO SABIA NADA. COPIAVA, NÃO SABIA NADA. NADA, DOENTE, SÓ.] (faz a mímica de olhar para o quadro e baixar a cabeça para copiar, aponta para o quadro e diz que não sabia nada).

Pesq.: – [DOENTE?]

Rita: – [VERGONHA, VERGONHA, VERGONHA] Pesq.: – [DOENTE, O QUÊ? SURDA?]

Rita: –- [SURDA] (Rita, 41 anos).

Ao falar sobre o passado, Rita diz que “não sabia nada” na escola, apenas copiava, mas, além de mensurar os próprios (des)conhecimentos, ela fala do sentimento de vergonha. Ela imprime intensidade ao sinal [VERGONHA] articulado em LS como se a “doença” fosse

a causa da não aprendizagem. É interessante como Rita atribui às suas especificidades a incapacidade de aprender. Ela revela sua autoimagem como aluna nesse contexto, no qual ela se sentia envergonhada. O fato de não aprender nada é compartilhado por seu colega, Raimundo.

Raimundo: – [APRENDER? NA PARAÍBA, NÓS DOIS (ele a mãe). ESTUDEI LIBRAS GRANDE, OITO ANOS, DEPOIS MAIOR, DEZ ANOS, ESTUDEI. AÍ VOLTEI PARA BRASÍLIA, LÁ PARA O NÚCLEO BANDEIRANTE. ESTUDEI AQUI EM BRASÍLIA. DEPOIS PAREI. NÃO APRENDI NADA [...] EU NÃO APRENDI NADA, NADA FEZ SENTIDO] (Raimundo, 54 anos).

Como Rita, Raimundo revela que não aprendeu nada, talvez por isso tenha parado de estudar. O pouco tempo de permanência que a maioria deles teve na escola pode ter sido consequência das condições inadequadas da escola que os fazia fracassar. Botelho (2005) afirma que as condições de permanência dos surdos nas escolas regulares ainda são mínimas, mesmo em tempos de inclusão. Imaginem-se como eram essas condições há 20, 30 ou 40 anos nos distantes interiores do Brasil, como é o caso de Rita que migrou do interior do Maranhão para Brasília. Sua irmã Márcia, 17 anos mais jovem, aluna da classe, descreveu a escola onde estudavam:

Márcia: – [LÁ NO MARANHÃO, NÃO TEM INTÉRPRETE. PRA ENSINAR, INTÉRPRETE NÃO TEM, NADA. PERGUNTARAM PRA MIM: LÁ NÃO TINHA INTÉRPRETE, NADA? A ESCOLA ERA MUITO SIMPLES, NUNCA ME ENSINARAM NADA. EU NÃO SABIA NADA. EU FICAVA SENTADA, ISOLADA, COM O OLHAR PERDIDO] (Marcia, 24 anos).

Como Rita e Raimundo, Márcia relata a experiência educacional, revelando que nada sabia. Ela não apenas descreve o passado, mas imprime um juízo de valor em sua fala, ao comparar as duas realidades, identificando o intérprete como um suporte que diferencia negativamente a experiência escolar que teve no Maranhão. A falta do intérprete aparece como elemento que impossibilitava a efetividade da ação da escola para sua aprendizagem. Diferente de sua irmã, Márcia identifica as barreiras que dificultaram seu aprendizado na escola, na falta de suporte e não em si mesma, na doença ou na surdez.

Além da falta de recursos, os alunos apontaram a atitude da professora como um elemento que lhes acrescentava dificuldade.

Pesq.: – [VOCÊ PEQUENO NA ESCOLA] (demonstro a altura e faço a mímica de escrever). [SABE? ESCREVER. VOCÊ ESTUDAVA?]

Jonas: – [MUITO]. (mostra o quadro, Aponta para si e faz a mímica de escrever acompanhando com expressão negativa. Aponta24 para a direita e faz sinal negativo, denotando que alguém o corrigia). [MUITOS SURDOS IGUAL (mesma situação), SURDOS MAIS VELHOS].

[...]

Pesq.: – E a escola?

Jonas – (pausa tentando lembrar. Mostra ao redor como se pessoas olhassem para ele. Faz a mímica de escrever. Alguém o reprovava e ele admitia que não dava conta. Alguém o reprovava. Olha na direção do papel com reprovação, apontando para direita para designar que outra pessoa o reprovava e depois bate na mão, demonstrando um castigo. Volta o dedo ao olho, demonstrando que alguém estava vendo e depois faz o sinal [SENTAR AO LADO] e demonstra as fileiras. Faz uma expressão de quem olha reprovando, apontando para o espaço ao redor para demonstrar a audiência (talvez dos colegas de classe). Depois, pega uma folha de papel na mesa e olha minuciosamente apontando para as letras, acompanha com movimento dos lábios como se lesse no papel. Coloca a folha na mesa e faz sinal negativo com o indicador e depois com o polegar. Pega o papel e vira na mesa com o verso para cima. Faz sinal de reprovação com as mãos e expressão facial como se o papel tivesse pouco valor) (Jonas, 52 anos).

Jonas é um dos alunos que está há mais tempo na classe. Ele foi matriculado no final de 2007. Sua aquisição da LS é lenta. Outros alunos como Márcia, Simão, Cláudio e Rômulo entraram em 2009, mas já conseguem se comunicar muito bem. O fator idade parece ser importante para ele e para Bento.

Vários são os fatores implicados na aquisição de uma segunda língua entre eles a idade. Romaine (1989) faz essa afirmação no contexto da aprendizagem de uma segunda língua na idade adulta. Podemos imaginar que as dificuldades relativas à idade não devem ser diferentes no caso desses adultos, mas devemos lembrar que eles estão aprendendo a primeira língua. Não foram encontrados estudos sobre a aquisição de primeira língua na idade adulta. Na falta destes, somos levados a observar os estudos referentes ao aprendizado de segunda língua (para contemplar o fator idade) além dos estudos de aquisição na infância (para contemplar o fator aquisição). No caso dos dois alunos, o fator idade dificulta a identificação com os surdos mais jovens e assim ficam reduzidas suas oportunidades de participação social com os pares e, consequentemente, de desenvolvimento linguístico-social.

Na sinalização de Jonas, os sinais da LS aparecem raramente entre os gestos que o aluno articula. A resposta é bastante longa e o aluno consegue expressar, além dos fatos, a

24 Os gestos de apontação: Goldin-Meadow (2003) estudou os gestos de apontação ou dêiticos e

concluiu que as crianças surdas os utilizam em combinação com outros gestos. Diferentemente das ouvintes, as crianças surdas utilizam os gestos de apontar, também, para objetos ou pessoas ausentes. Elas estabelecem lugares no espaço onde localizam pessoas ou objetos como referentes para seus enunciados. Sobre este tema, ver também Martins (2010), Quadros (1997) e Bernardino (2000).

frustração que sentia em relação à professora e aos colegas, em um contexto em que não conseguia alcançar o padrão de desempenho esperado. Apesar de seus mais de 50 anos, ele lembra o olhar dos colegas diante dos castigos que recebia da professora, lembra de pormenores ao demonstrar o contexto da sala e a arrumação das carteiras. A falta de uma língua não o impediu de guardar suas percepções e evocá-las por meio dos gestos.

A situação revelada por Jonas possibilita a reflexão sobre a exposição a situações vexatórias que, muitas vezes, a escola impõe ao aluno surdo, em vista de seu desenvolvimento atípico e, consciente ou inconscientemente, estabelece padrões de autoexclusão. Como um Simão Bacamarte machadiano que envia para a Casa Verde aqueles que não se enquadram nos seus padrões. Assim, os alunos acabam assumindo para si valores criados pelo grupo de maior força sobre eles, pois, ao final, Jonas vira a folha sobre a mesa, reprovando o seu trabalho, como diz Dorziat:

É necessário considerar que as dificuldades presentes nas escolas em geral, e em especial nas de Surdos, são decorrentes de construções históricas de preservação de poder, que criam os próprios desvios e suas anomalias. E, o que é pior, captura os considerados desviantes (no caso os Surdos) que passam a professá-los como discursos de verdade (2009, p. 58).

Jonas parece ter abandonado a escola, já seu colega Bento não teve oportunidade de estudar.

Pesq.: – [QUANDO VOCÊ ERA PEQUENO, VOCÊ ESTUDOU?]

Bento: – (pensa um pouco e ri): [HÁ MUITO TEMPO!] Não, não. (Faz o gesto de estalar os dedos, movimentando a mão para trás, sobre os ombros). [PASSADO].

Pesq.: – [VOCÊ?]

Bento: – Andando a cavalo, há muito tempo. (Escreve “cavalo” e diz:) [MONTAR CAVALO, IRM@25 MONTAR JUNTO] faz a mímica do movimento das ancas do cavalo e faz o gesto de ir). [ROÇA, MONTAR CAVALO.]

Pesq.: – [VOCÊ ESTUDAVA?]

Bento: – [ESTUDAR, PEQUENO NÃO. GRANDE, SÓ. MONTADO NO CAVALO, ESTUDAR NÃO.] (Bento, 58 anos).

Nos recursos linguísticos adotados pelo aluno, a palavra “cavalo” aparece como um tópico, congregando os significados relativos à vida na roça que ele complementa com gestos e sinais sempre apontando para a palavra escrita. O [MONTAR-CAVALO] pode representar fatos de sua infância na roça. Ir para roça e não para escola explica o fato de não ter estudado

quando pequeno. Não apenas a surdez, mas a vida rural, talvez o tenha impedido de estudar

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