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A alusão é referida por Stegner, Escape into Aesthetics: The Art of Vladimir Nabokov, p 106 e por

DUPLO, TRADIÇÃO E SUBVERSÃO

8 A alusão é referida por Stegner, Escape into Aesthetics: The Art of Vladimir Nabokov, p 106 e por

suprimida de William Wilson. Há coincidências que nos levam a preferir a segunda hipótese: a parecença extraordinária entre os dois homens, o facto de partilharem o mesmo nome, a mesma data de nascimento, a mesma maneira de andar ou a circunstância de terem entrado para o colégio no mesmo dia. A única diferença está na voz - o duplo não ultrapassa o tom do sussurro. Curiosamente, os outros não sentem estes factos como estranhos e só o narrador-protagonista parece sentir face ao seu homónimo uma estranha perturbação, atribuindo-lhe um carácter numinoso. O desfecho é o único possível: numa noite de Carnaval o protagonista luta com quem enverga uma máscara igual à sua e que supõe acertadamente ser o seu duplo. Este sucumbe e o protagonista, ao retirar a máscara, vê nele o que anteriormente confundira com um espelho: o seu próprio rosto. A morte do duplo é também uma sentença de morte irrevogável para o protagonista. "In me didst thou exist - and, in my death, see by this image, which is thine own, how utterly thou hast murdered thyself"9.

Humbert partilha da mesma lógica disjuntiva e fatalista que William Wilson aplica em relação ao seu duplo:

"And do not pity C. Q. One had to choose between him and H. H , and one wanted H. H. to exist at least a couple of months longer, so as to have him make you live in the minds of later generations." (Lo, 307).

Ao longo da sua narrativa, o narrador constrói uma aproximação ao conto. Tal como William Wilson, Humbert escolheu para pseudónimo um nome aliterativo e afirma ter um duplo com aparência e gostos semelhantes aos seus. Ambos os narradores escrevem as suas memórias como forma de expiação de um crime cometido contra alguém que é visto como uma sombra ameaçadora, um duplo que ameaça o protagonismo do narrador. O que se desenha, em ambos os casos, é a história de uma obsessão destruidora, em que os narradores falam da acção do destino e da fatalidade para se desculparem. Tal como no conto William Wilson, após o confronto e morte do

9 Edgar Allan Poe, "William Wilson", Selected Writings of Edgar Allan Poe, p. 178. 56

duplo ameaçador não há sentimento de libertação ou de exorcismo do mal. A morte de Quilty não serve como purgação para Humbert. É um acto gratuito, a que Nabokov retira o seu peso simbólico, subvertendo a estratégia de aproximação do seu narrador a uma tradição literária que incute à figura do duplo um significado metafórico e transcendente. Humbert verifica que ele e Quilty estão intrinsecamente ligados e comenta como lhe é impossível a separação: "Far from feeling any relief, a burden even weightier than the one I had hoped to get rid of was with me, upon me, over me." (Lo, 303). Esta descrição contém ecos verbais da luta anterior com Quilty e da confusão de identidades que resultou na mente de Humbert. Nesse momento, o peso físico do corpo do suposto duplo é substituído pelo peso psicológico sentido após o seu assassínio. Como refere Ellen Pifer,

"It is with this sense of being all covered with Quilty that Humbert narrates the novel; and it accounts for Quiltys uncanny shadowing of Humbert and Lolita in their cross-country trek."10.

Sobretudo a partir da segunda parte do romance, a figura de Quilty torna-se uma sombra que paira sobre Humbert, uma manifestação física do seu sentimento de culpa crescente em relação a Lolita. Numa outra história de duplicidade, Heart of Darkness, de Joseph Conrad, Kurtz é apontado como a sombra de Marlow. Também Humbert faz uma referência a Quilty, via Conrad, denominando-o "... that secret agent, or secret lover..." (Lo, 240). A alusão é a The Secret Sharer, de Conrad, igualmente uma história de duplos.

Outra fonte importante para o episódio é a obra de Robert Louis Stevenson, The Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde, um conto igualmente ligado à temática do duplo e da duplicidade. A associação é explícita no texto quando Humbert alude a si próprio como Mr Hyde (Lo, 204). No diálogo entre o narrador e Quilty e ao longo do texto há várias menções a "ape": "Show me your badge instead of shooting at my foot, you ape, you." (Lo, 296). Alfred Appel sugere ser esta uma comparação

frequente nas referências a duplos, também usada no conto de Stevenson.11 O macaco

é um animal com qualidades reconhecidas no domínio da repetição e imitação de gestos, um elemento de duplicação. Humbert descreve-se a si próprio, por várias vezes, como um macaco, um animal que é tradicionalmente um imitador. "Punch" é um epíteto dirigido a Quilty pelo narrador, que também nos remete, indirectamente, para o conto. É o termo que Nabokov utiliza para falar da obra de Stevenson em Lectures on Literature. Segundo o romancista, entender o conto de Stevenson enquanto alegoria moralista da luta entre o bem e o mal "is tasteless, childish, a superb Punch and Judy show."12.

Para críticos como John Herdman, Stevenson, um autor finissecular, envereda por uma visão dualista do duplo, de raiz essencialmente moral, marcando a diferença em relação à abordagem científica dominante na sua época, influenciada pelas descobertas de uma nova ciência, a psicologia. Hyde, por exemplo, é a afirmação do mal, enquanto símbolo da natureza humana instintual que age sem limites, sem possibilidade de integração social. A vida dupla é a única solução face a uma moral vitoriana encarada como prisão, composta por deveres e proibições, em vigor numa sociedade que trata sobretudo de manter as aparências.13

Ao contrário, Nabokov vê na obra uma recusa do simbólico e do alegórico. Em Lectures on Literature é a observação realista que afirma mais admirar no conto. Como faz notar, Jekyll é um ser compósito, uma mistura de bem e de mal, alguém que esconde os seus pequenos pecados, que tem consciência da duplicidade da vida que leva. Nabokov define Jekyll e Hyde em termos puramente químicos:

"(...) he [Jekyll] is a composite being, a mixture of good and bad, a preparation consisting of a ninety-nine percent solution of Jekyllite and one percent of Hyde (...) Hyde is mingled with him, within him. In his mixture of good and bad in Dr Jekyll, the bad can be separated as Hyde, who is a precipitate of pure evil, a precipitation in

•Appel, Jr, The Annotated Lolita, pp. lx, lxi.

2 Nabokov, Lectures on Literature, p. 251.

3 Herdman, The Double in Nineteenth-Century Fiction, pp. 19-20.

the chemical sense since something of the composite Jekyll remains behind to wonder in horror at Hyde while Hyde is in action."14.

Os pecados secretos de Jekyll não são explicitados mas, para Nabokov, o essencial da questão é deixar claro que Jekyll é um ser hipócrita que aprecia a impunidade de Hyde até ao momento em que deixa de poder controlar as suas transformações. Jekyll é insensível e cruel para com os outros seres humanos, algo que Nabokov sempre condenou:

"In any case, the good reader cannot be quite satisfied with the mist sorrounding Jekylfs adventures. And this is especially irritating since Hyde's adventures, likewise anonymous, are supposed to be monstruous exaggerations of Jekylfs wayward whims. Now the only thing that we do guess about Hyde's pleasures is that they are sadistic - he enjoys the infliction of pain. What Stevenson desired to convey in the person of Hyde was the presence of evil wholly divorced from good. Of all wrongs in the world Stevenson most hated cruelty; and the inhuman brute whom he imagines is shown not in his beastly lusts, whatever they specifically were, but in his savage indifference to the human beings whom he hurts and kills."15.

A descrição que Nabokov faz de Jekyll poder-se-ia aplicar facilmente a Humbert. A noção de duplicidade na obra é transmitida através do recurso ao motivo do duplo, mas também através da referência a um objecto obrigatoriamente ligado à temática, o espelho. A personagem Jekyll ao ver-se ao espelho (uma novidade nas casas vitorianas, daí o seu fascínio acrescido) diz:

"... when I looked upon that ugly idol in the glass, I was conscious of no repugnance, rather of a leap of welcome. This, too, was myself. It seemed natural and human."16.