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Amadrinhamento entre transformistas e drag queens: apontamentos

Com base nas narrativas episódicas expostas acima, é possível observar uma série de questões significativas referentes ao amadrinhamento, que oferecem pistas para buscar compreender em que consiste essa prática realizada por transformistas e drag

queens. Os diversos aspectos relatados pelas integrantes da família Haddukan, tais como

a doação do nome; o ensinamento e a aprendizagem dos processos de montagem e performance; seus sentimentos em relação à mãe, às irmãs e suas impressões sobre a atuação da família no contexto da noite trans cearense, serão considerados nesta análise do amadrinhamento.

Nesse sentido, é possível observar que a doação do nome se configura na iniciação do vínculo entre mãe e filhas. Todas as filhas que narraram o momento em que receberam o sobrenome de sua mãe descrevem sua emoção e felicidade advinda da iniciação desse relacionamento. Constatou-se, ainda, que ao doar o nome, a mãe também repassa o destaque inerente a sua carreira, proporcionando o que elas entendem como uma carga, que além de possibilitar visibilidade, requer também responsabilidades que visam manter o valor do nome e levantá-lo ainda mais. Nesse ponto, fica claro que passa a existir um processo de construção coletiva desse nome, já que a partir da doação, as filhas também passam a ser responsáveis por sua continuidade e valorização. Assim, as filhas devem sempre se esforçar para realizar performances e

montagens de qualidade, visto que suas atitudes reverberam na fama do nome, da família e, por conseguinte, na imagem da mãe, que passa a ser reconhecida como uma

78 ainda mais destaque, por ser a líder de uma família que possui integrantes talentosas e esforçadas.

Essa busca por distinção (BOURDIEU, 2006) e prestígio, ocorre em todo o contexto das performances trans cearenses. Já que Satyne alçou o patamar de apresentadora da boate Divine e possui reconhecimento na cena, suas filhas buscam também obter destaque através da união à família de Satyne. Conforme suas declarações, é possível visualizar que o estabelecimento do vínculo facilita bastante esse processo, favorecendo a visibilidade que a filha passa a ter ao receber o sobrenome. Hannya, por exemplo, admite que, apesar de já ter descido no Top Drag Divine, foi depois de participar do Haddukan Family, que teve sua entrada anunciada pelo DJ Elias ao adentrar o dancing da boate, fato que se configura em um tipo de reconhecimento bastante almejado pelas artistas que se apresentam na Divine.

Somando-se à doação e à construção coletiva do nome, bem como à busca por prestígio inerentes aos vínculos estabelecidos no amadrinhamento, a transmissão de saberes e as relações de apoio mútuo vivenciadas pelas integrantes da família representam um aspecto extremamente valorizado por elas, visto que os momentos de ensinamentos e auxílios recebidos são recorrentes em suas falas. Aprender ao lado de sua mãe, a partir da observação de suas ações ou através de indicações precisas, parece ser um dos aspectos que caracterizam essa prática, assim como o apoio mútuo estabelecido por mães e filhas. Apesar das trocas experienciadas, as relações entre as integrantes da família remetem a um relacionamento baseado em uma reciprocidade hierárquica (LANNA, 1995), onde a mãe sempre estará numa posição privilegiada na hierarquia familiar, já que ela é a dona do nome e a artista mais experiente da família. Além do mais, é sempre a mãe quem decide para qual pessoa doar o seu nome, sendo a que a nova filha necessariamente deverá ter uma conduta de acordo com aquilo que agrada a preceptora.

Entre as irmãs também ocorre um movimento semelhante, pois determinadas

filhas, que se fazem mais presentes no cotidiano da família e/ou que foram adotadas há

mais tempo em relação às demais, possuem algumas regalias, como por exemplo, interceder junto à Satyne para que ela doe seu nome a uma candidata, como nos casos de Karen e Duda contidos nas narrativas episódicas. Assim como a prerrogativa explicitada anteriormente, poder ir se montar na casa da mãe em ocasiões especiais, como no festival da família a ser visto no capítulo seguinte, proporciona distinção às

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filhas que gozam dessa oportunidade, em detrimento das demais, constituindo também

relações hierarquizadas.

Portanto, compreendo que o amadrinhamento se caracteriza por um tipo complexo de relacionamento, que envolve o desenvolvimento de práticas entendidas como tradicionais, tais como a doação do nome, a transmissão de saberes, a hierarquia e a proteção advindas do vínculo, que se configuram em aspectos identificados como correlatos ao compadrio (PITT-RIVERS, 1968; LANNA, 1995; WOORTMANN; 1995). Articulando-se a esses elementos tidos como característicos de uma prática tradicional, engendram-se aspectos transgressores, que dizem respeito à performance de gênero vivenciada pelas protagonistas do amadrinhamento, que não se adequa a uma matriz heteronormativa (BUTLER, 2003), visto que através da montagem as transformistas e drag queens reconstroem seus gêneros e produzem uma inteligibilidade própria.

Levando em conta os aspectos discutidos nesta seção, bem como ao longo da dissertação, o próximo capítulo visa finalizar a construção aqui pretendida de uma etnografia do amadrinhamento. Assim, buscarei realizar uma descrição densa (GEERTZ, 2008) do festival anual organizado pela família Haddukan, o The Haddukan

Family in Concert 2012, que se configurou na quarta edição da festividade realizada na

boate Divine. A intenção é demonstrar através do planejamento e execução de uma importante festividade, como acontece na prática das integrantes da família Haddukan, os processos abordados ao longo do trabalho.

80 CAPÍTULO 4 – THE HADDUKAN FAMILY IN CONCERT: O ESPECIAL DA