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Colocar a sexualidade no domínio da produção discursiva foi uma das grandes contribuições de Michel Foucault que, ao postulá-la como algo continuadamente construído, desarticulou toda a trama que lhe garantia sustentação e sua aparente invisibilidade. Dispositivo da sexualidade foi o nome cunhado pelo filósofo na denominação dessa rede, que cobre todo o corpo social e atua por meio de inúmeras tecnologias que se reafirmam e se justificam, e nos atingem e penetram de forma minuciosa e íntima, ao ponto de o controle tornar-se um autocontrole. Ainda que o dispositivo da sexualidade atinja a todos e todas, ele não funciona da mesma forma para homens e mulheres, categorias alimentadas por ele mesmo.

A não-consideração da variável de gênero em seus estudos sobre a sexualidade é uma das críticas mais frequentes a Foucault, pelo menos por parte da crítica feminista, que diante de suas grandes colaborações não o enjeita, mas oferece uma releitura a partir das lacunas deixadas pelo

descarte da especificidade feminina. Assim o faz Tania Navarro-Swain (2006) ao propor mais um dispositivo11 atuante na construção do feminino:

Nas fendas do dispositivo da sexualidade, as mulheres são "diferentes", isto é, sua construção em práticas e representações sociais sofre a interferência de um outro dispositivo: o dispositivo do amor. Poder-se-ia seguir sua genealogia nos discursos – filosóficos, religiosos, científicos, das tradições, do senso comum – que instituem a imagem da “verdadeira mulher”, e repetem incansavelmente suas qualidades e deveres: doce, amável, devotada (incapaz, fútil, irracional, todas iguais!) e, sobretudo, amorosa. Amorosa de seu marido, de seus filhos, de sua família, além de todo limite, de toda expressão de si (NAVARRO- SWAIN, 2006, s/p.).

O amor, assim como o sexo e a sexualidade, foi concebido como um mecanismo de grande alcance e eficácia no processo de subjetivação e controle de mulheres. Conjuntamente ao dispositivo da sexualidade, o dispositivo amoroso, mais que ajudar a produzir corpos sexuados, iterou e fortaleceu a criação de um ideal feminino, duplamente tramando e sujeitando aspirações e comportamentos das mulheres:

O dispositivo amoroso, assim, cria mulheres e, além disto, dobra seus corpos às injunções da beleza e da sedução, guia seus pensamentos, seus comportamentos na busca de um amor ideal, feito de trocas e emoções, de partilha e cumplicidade. (NAVARRO-SWAIN, 2006, s/p.)

Como reféns do amor, as mulheres são educadas para fazer desse o protagonista de suas vidas. São compelidas a se adequar as suas demandas, a se encaixar em modelos e padrões, que as caracterizam como "doces, devotadas, amáveis e, sobretudo, amantes" (NAVARRO-SWAIN, 2013, s/p) e fazer do amor, então, sua principal "razão de ser e viver" (NAVARRO-SWAIN, 2013, s/p). O dispositivo amoroso torna-se, assim, tão central quanto o dispositivo da sexualidade, e tal como o corpo firma-se como fronteira inteligível e possível das nossas identidades, o amor torna-se, para as mulheres, o caminho factível de sua existência. Pois, ainda que pulverizados, por fatores como a emancipação feminina, os ideais do amor romântico não se dissiparam por completo, permanecem interpostos nas                                                                                                                

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Segundo Foucault, dispositivo é "um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos". FOUCAULT (1996, p. 244).

vidas das mulheres, que ainda hoje têm suas identidades atualizadas em torno do amor (NAVARRO-SWAIN, 2006, s/p.).

Adaptar-se ao tempo e suas vontades é condição elementar de existência e manutenção do dispositivo amoroso que, sob novos imperativos, subsiste aos anos e elabora novas, ou apenas repaginadas, sujeições. Livros de etiqueta e colunas de jornais que ensinavam mulheres a se comportar, ser uma esposa dedicada, tirar manchas e fazer um bom cozido, foram apenas substituídos por demandas nem tão díspares assim. Mesmo o casamento e a maternidade, já não tão limitados e limitantes como no passado, perduram como parâmetros de julgamento das mulheres, que agora ocupam mundos, antes segmentados, o doméstico e do trabalho. Lembrando que as mulheres a que me refiro aqui são as mulheres brancas, urbanas, de classe média, que são as sumariamente representadas na coleção; pois mulheres pobres e negras quase sempre tiveram que trabalhar e pouco ou nada foram poupadas em razão de seu gênero.

De forma bastante insidiosa, as conquistas alcançadas pelas mulheres são absorvidas e adaptadas, e num movimento contrário, postas a serviço da mesma estrutura patriarcal que tinham como alvo a ser desarticulado. E por mais que hoje, as mulheres transitem e ocupem diferentes espaços e posições, sua imagem, o dito feminino, sofreu poucas ou não muito efetivas transformações. Os dispositivos amoroso e da sexualidade subsistem vigorosos na construção e disseminação desse feminino, que agora adaptado as novas demandas, ergue-se sob dois eixos aparentemente incompatíveis. Sexo-trabalho-autonomia e Amor- maternidade-dom-de-si são os nomes dados por Tania Navarro Swain (2013, s/p) na busca pela compreensão e desarticulação de tais eixos, que por correlacionarem atributos não tão afins, perfazem um feminino contraditório, mas nem por isso falho.

Num movimento de oposição em que a inserção no mundo do trabalho e do desejo de autonomia entram em choque com os apelos da maternidade; e a liberdade sexual faz frente ao desejo de uma união estável, a figura da "mulher moderna" é paradoxalmente construída. Delineada por exigências divergentes, as escolhas das mulheres são incitadas não só por uma série de deveres como são acompanhadas de diversas culpabilidades.

Escolher não ter filhos ainda é considerado um transtorno, mas dedicar-se apenas à casa e aos filhos é tido como uma mediocridade; fazer sexo antes do casamento já não se configura um defeito de caráter, todavia possuir muitos parceiros é algo estritamente condenável. Manobrado e estremado, o poder de autogestão das mulheres é confinado dentro de possibilidades, que podem não mais se limitar à conjugalidade e ao modelo de maternidade nela embutido, mais ainda coagem mulheres e meninas a adotar determinados modelos, urgências e posicionamentos.

Diante de tudo o que foi exposto, escrever sobre o amor não pode ser considerado tarefa despretensiosa e acredito tornar-se ainda mais árdua quando feita sob encomenda e sob a latente problemática de gênero embutida nos recortes da coleção. Difícil pensar que mesmo as escritoras não engajadas com a crítica e/ou movimento feministas não tenham minimamente refletido sobre as representações que construiriam a partir de tais recortes, que quando juntos, ganham contornos ainda mais fortes e discutíveis.

A literatura, como uma forma de expressão privilegiada, tem o poder de, no trabalho com a linguagem, criar ou reforçar sentidos. Dessa forma, ainda que o amor, em seu sentido clássico-burguês, apareça com uma das armadilhas que ajudaram a trancafiar mulheres em seus corpos e casas; na literatura, amores, corpos e casas abrem-se para um universo de possibilidades e configurações. Aparentemente multifacetados, como sugerem a orelha de apresentação das obras e seus subtítulos, os amores representados na coleção trazem narrativas de amor que sobrevivem ao tempo, que sucumbem diante da rotina, amores hipotéticos, incorpóreos, proibidos, fracassados; mas, ainda que as narrativas sejam escritas a partir de diferentes extremos, a multiplicidade investigada concentra-se nas possibilidades de gênero construídas por essas sete escritoras, e se suas obras, se, conjunta e/ou individualmente, caminham ou não para a formação de uma consciência feminista, no sentido de apresentarem corpos e amores que escapam à lógica patriarcal.

São pelos escapes e manobras (ou pela ausência desses) que me interesso e que debruço minha investigação, por meio da análise literária de cada obra da coleção, pois acredito que a literatura, além de ser o lugar do

estético, possui uma dimensão política que lhe confere não só o poder de legitimar e sedimentar sentidos como faz dela também território de contestação desse mesmo aspecto.

Seguindo uma ordem que vai da narrativa mais tradicional, em relação aos papeis de gênero dentro das relações amorosas, para aquelas que de alguma forma desafiam determinadas prescrições que normatizam tais comportamentos, estruturo as análises literárias das sete obras da coleção. Num primeiro momento, trago as quatro obras mais conservadoras da coleção.

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