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E assim nasceu o amor Sem reserva, sem pudor Irradiando uma candura sem fim Através dele, eis a semente Brotando...vindo ao encontro De mim, de ti, numa rua sem saída Vindo.

Anita Realce (CN 8). O erotismo15 é a manifestação textual dos desejos amorosos, do amor enquanto completude; é exposto de forma sensual com envolvimento amoroso. Os textos eróticos e os chamados obscenos (pornográficos) têm diferenças às vezes explicitas, às vezes sutis e esta avaliação deve ser cuidadosa. Segundo Durigan16 “o erotismo não imita a sexualidade, é sua metáfora. O texto erótico é a representação textual dessa metáfora”. O erotismo em CN se revela como uma representação da sexualidade e da sensualidade dos corpos negros: suas belezas inscritas, o deleite no contato entre os(as) parceiros(as) ou, simplesmente, a sugestão deste contato. Representar o prazer dos jogos sensuais é o principal caminho percorrido pelos contos. Sendo assim, encontram-se aí tanto a valorização da negritude, quanto a realização das metáforas do prazer, como veremos nos contos: “Jandira Morena”, de Geni Guimarães; “Flor de Agosto...Felicidade”, de Vera Lúcia Barbosa ; “A paixão e o vento”, de Lia Vieira; “Beijo na face”, de Conceição Evaristo e “Afagos”, de Elizandra.

Em Cadernos Negros, muitos textos se valem do amor em sua temática, e, quando o fazem, possuem um enlace sempre interessante: os desfechos, em

15 A palavra Erotismo vem da palavra Eros, o Deus do Amor do mito da Completude, de Platão. 16Jesus Antônio Durigan em seu livro Erotismo e Literatura discute o que é texto erótico.

sua maioria, não são de amor realizado – e veremos mais adiante que Miriam Alves se destaca no uso deste recurso –, amores felizes. O que ocorre frequentemente é a impossibilidade de sua realização imposta pela barreira do preconceito. Quando há o matrimônio – que seria sinal de realização – a convivência corroe a pretensa felicidade e realização amorosa.

No conto “Jandira Morena” (C.N.4), de Geni Guimarães temos a descrição de uma protagonista negra descrita como lindíssima, cobiçada “ é do tipo bonita(...) caminha num sem pressa engraçado. Vai dançando as nádegas, balançando os seios bonitos numa indiferença gostosa.” Jandira se envolve com o português Manuel, e o romance vai bem até que ela comenta o desejo de ter um filho e Manuel faz o comentário infeliz: “...pena que você é morena...pôxa, se você fosse branca... a gente casava, fazia...”. Jandira explode de raiva, bate em Manuel e termina o namoro. Fica conhecida como brava e ninguém tem coragem de se aproximar. Jandira reage ao preconceito e acaba se deslocando do estereótipo de mulher só para prazer. Ela impõe sua vontade de construir uma família e nega o lugar que Manoel quer lhe dar.

Os encontros amorosos também são matéria de muitos contos de autoria feminina em CN. As relações obedecem a uma gradação rítmica própria dos jogos de sedução. No conto “Flor de Agosto...Felicidade”, de Vera Lúcia Barbosa (CN 24), Flor, a protagonista, se relaciona com Clétus, um nigeriano. O casal se conhece no campus da USP, onde a protagonista trabalha como secretária e Clétus está no Brasil para realizar uma pesquisa sobre o Carnaval, no campo da filosofia. A sedução, que se inicia com olhares, evolui até o momento íntimo de prazer

Foi acariciada. Lenta e atentamente Clétus fixava seu olhar nos pontos do rosto de Flor, onde sua mão direita tocava, assim como se estivesse gravando para não mais esquecer. Flor sentiu o calor de Clétus entrando em seu ser, viu a luz da ternura do olhar de Clétus. Os corpos tocaram a sinfonia da esperança da felicidade para Flor. Seus corpos ardiam em chamas verdes que trocavam para dourado, rosas, fundindo enfim na cor violeta. Clétus e Flor transmutaram sensações, tempo presente e futuro. (CN 24, 15)

O momento de prazer carrega algumas simbologias, como a escolha das cores: o dourado, que significa luz espiritual remete à felicidade do casal; o rosa,

que simboliza o envolvimento amoroso, e o violeta, que representa a transmutação, o novo, além do verde, que remete a esperança. A relação sexual será descrita como ritual de fé. Flor e Clétus seguirão caminhos diferentes: ele vai para Ohio, EUA, deixando para a solitária moça apenas as saudades de uma felicidade vivida em plenitude fugaz. Os corpos negros são descritos como união, a completude dos seres andróginos. O relacionamento, geralmente, é entre negros, existindo poucos casais interraciais em CN.

Em alguns contos como, a exemplo, “Neide”, de Maga, a realização das metáforas do prazer acontecerão, tão somente, nas buscas individuais, pelos toques no próprio corpo. As personagens, nestes textos, se descobrem mulheres pela exploração de seus corpos em busca do prazer:

(...) um ruído nas folhagens, os olhos, as mãos macias e o medo se ía, o vazio se ia, a própria voz se ia misturando as folhagens, a noite, a terra e Neide se misturava ao baile que a ligava ao mundo. Vinha a maciez da noite em seu corpo molhado refletindo a lua e ela se amava e se deixava amar dormindo por entre a relva. (CN 2, 72.)

Explorando o próprio corpo, Neide, a protagonista, sentia a integração com a liberdade, era sua única liberdade possível, o único caminho que a distanciava da realidade de prostituição. Os momentos consigo eram os encontros da paz na solidão: ali, sozinha, na relva, Neide podia ser dona de seu corpo e de seu prazer. Neide vê a lua refletida em seu corpo representando a feminilidade cúmplice na descoberta do prazer a sós. Ali, sozinha, a protagonista, não era prostituta, não devia proporcionar prazer a ninguém, se não a si.

A escritora paulista Elizandra , no conto “Afagos”, fala da sensualidade dos cabelos afro.

Diante do espelho, sentia-me nua, despida de minhas mascaras, olhando o meu avesso. Como ele descobriu tão rápido meu ponto fraco? Por que colocou aqueles dedos em meus cabelos? Por que tanta carência de um afago? (...)

Suas mãos pousando nos meus cabelos, massageando minha nuca, meus seios, meu eu, meu nó...Sua língua a percorrer o meu corpo, desvendando os meus segredos...

A narradora trabalha os cabelos como seu ponto sensível, a porta para a conquista de prazer. A sedução se tece pelos fios do belo cabelo crespo de Dara, cujo nome significa “a mais bela”, e pelas mãos habilidosas de Jawari.

A protagonista desvela as cenas de prazer erótico que se iniciam na sedução exalada pelo corpo negro masculino – Jawari é assim descrito: “Como aquele preto era lindo! Tranças enraizadas até a altura dos ombros, pele bem retinta, sorriso perfeito.” –, que pelo processo gradativo desliza, suavemente, para o corpo feminino. O desejo é despertado a cada movimento do jogo erótico que reflete a identidade afro-brasileira entre o casal; o prazer segue, desta forma, duas nuances: a completude do corpo, dada pelos toques, e a completude identitária, dada pela identificação dos traços da raça negra desenhados nos corpos. O erotismo nos contos apresentados é, portanto, a completude do corpo e da identidade afro. Sendo assim, serve às representações eróticas, tendo em vista a valorização dos corpos negros, sua identidade étnica e a diversidade sexual.

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