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5. AMOR E EROTISMO, AO AVESSO, EM BECKETT

5.4 O AMOR E O EROTISMO HOJE

O que, com efeito, constitui o fundo da vida, é que, para tudo que diz respeito à relação entre os homens e as mulheres, o que chamamos a coletividade, a coisa não vai. A coisa não vai, e todo mundo fala disto, e uma grande parte da nossa atividade se passa a dizer isto.

Jacques Lacan. (1982) [...] um novo homem, subtraído de sua faculdade de julgar e empurrado a gozar sem desejar, está aparecendoŗ. Dany-Robert Dufour (2005)

Alain Badiou, em entrevista concedida ao programa da rádio francesa France Culture (26/09/2016), em uma emissão intitulada ŖLa Grande table (2ème partie), nos fala sobre o fim de uma antiga ordem simbólica hierarquizada, de acordo com os teóricos já citados nesta tese. Mas acrescenta um dado importante. Ele nos dirá que nesta antiga ordem os homens conheciam o seu lugar. Hoje, são as mulheres que encontraram um lugar que não tinham antes, logo, os homens estão mais desorientados simbolicamente, e que as coisas, em certo sentido, vão na direção do desaparecimento do sexo masculino, uma vez que as técnicas de inseminação artificial, por exemplo, permitem que uma mulher tenha filhos sem a sua presença. Evidentemente que não há retorno possível deste antigo modo de simbolizar o mundo, a vida, o real e a diferença sexual. Por isso, de acordo com este filósofo, a possibilidade de um novo modo do simbólico Ŕ como campo que pudesse validar a vida e o fazer humano, de forma que os jovens pudessem encontrar seu lugar no mundo para além das injunções ao sucesso a qualquer custo Ŕ seria um simbólico igualitário, que ocuparia o lugar da antiga transcendência, a antiga verticalidade. Ainda com Badiou: temos, atualmente, a existência de Ŗfalsas contradiçõesŗ como traço nostálgicos da velha ordem hierárquica, e uma profunda dificuldade em simbolizar as diferenças, fundamentalmente a diferença sexual. Estamos em plena crise de civilização, tal como já anunciava Freud em O mal-estar na civilização.

Para Badiou, se o simbólico, ele mesmo está em vias de destruição, é a própria subjetividade, o desejo, que encontrarão suas formas de abolição. O que está em pleno acordo com o que acabamos de verificar com Lacan: a ficção depende do campo simbólico do qual dependem, por sua vez, o desejo e o erotismo; e sem eles a subjetividade não encontra os trilhos Ŕ ficcionados Ŕ das coordenadas de seu prazer, que permitem ao falasser o encontro com um objeto. E sem as coordenadas do prazer o sujeito fica entregue às invasões do gozo, ou seja, aos empuxos a uma satisfação sem contornos, sem limites, voraz.

Ora, sabemos que foi o patriarcado quem sustentou, ao longo da História, as estruturas sociais de onde os homens podiam legitimar tanto sua posição viril quanto sua autoridade paterna. O patriarcado ruiu, e com ele o antigo lugar dos homens. Daí suas dificuldades, atualmente, em se situarem tanto no social quanto no laço amoroso. Como nos diz Lebrun (2010, p. 57),

[…] nós nos encontramos em um momento inédito e eminentemente delicado, não podemos mais nos apoiar na legitimidade do modelo antigo, este último tendo ruído ao tentar encontrar alhures novos pontos de apoio, mas ao mesmo tempo obrigados a renunciar a um qualquer outro, pelo fato de que esse apoio não pode mais ser encontrado no exterior, mas só podendo vir de seu trajeto singular.

O sintoma pós-moderno por excelência, ouso afirmar, que irrompeu na cena do mundo mesmo, que tudo pareça correr como antes em muitos aspectos, é a tentativa de abolir a diferença sexual e a morte, tal como afirma Dufour (2005, p. 152):

[…] essa diferença sexual constitui, também [tal como a negação da diferença geracional] o objeto de uma severa negação pós moderna. Sabe- se que há dois sexos, mas, mesmo assim... não se deixa de promover o

unissexo. Pode-se identificar isso através de uma quantidade de fatos

sociais, notadamente tudo o que gira em torno das múltiplas flutuações da identidade sexual, muito na mídia, e das pressões reivindicativas referentes à adoção, até mesmo à procriação de crianças por casais homossexuais. São atitudes que supõem todas, no factual, acabar com a diferença sexual no seio mesmo do pensamento que havia dado sua mais rigorosa definição, a psicanálise.

Tal como expressa a figura abaixo: ŖŖSalud Michaelŗ ou ŖGentil monstro pós- modernoŗ nascido da abolição das antigas diferenças de gênero e geraçãoŗ133

(apud DUFOUR, 2012, p. 180):

Ilustr.ação 13: Salud Michael

Fonte: apud Dufour (2012)

Certamente não se trata de um julgamento por parte da psicanálise em relação a práticas e reivindicações estas ou aquelas (que, inclusive, já se inscreveram como direitos), mas de interrogar-se sobre suas possibilidades mesmas de sustentação, como intervenção, uma vez que o psiquismo já não se apoia nos mesmos pilares, no Ŗvelho estiloŗ de construção. Um problema crucial se coloca até mesmo em relação a seu destino. A questão reside no fato de que, para a psicanálise, todo seu edifício teórico, tudo se sustenta em premissas que consideram que o psiquismo humano depende de um interdito, da função de uma renúncia pulsional para se constituir, que, na atualidade, tende a desaparecer frente ao imperativo de que não se deve, justamente, a nada renunciar. Não se deve (é da ordem do dever, atualmente) abrir mão de nada. Ora, se a posição subjetiva, o circuito desejante humano Ŕ e o desejo é o que permite ao homem decidir, criar relevos, inventar e reinventar a vida Ŕ se estrutura em torno da observação da diferença anatômica entre os sexos pela criança (ou, no mínimo, ela tem função aí essencial), como bem nos mostrou a

133

Tradução livre de ŖSalud Michael” ou “Gentil (?) monstre postmoderne né de l'abolition des

observação freudiana (FREUD, 1976, p. 301), o que se acontece se essa diferença passa a ser sistematicamente negada pela instância que outrora a sustentava e ratificava?

Há diferença, e, para se Ŗserŗ tal coisa, deve-se renunciar à outra, era o que vigorava. Isso mudou, porém, tal observação ainda se coloca como um verdadeiro enigma para a criança. Questão de linguagem, de simbolização, portanto. E é a partir de uma saída lógica para esse enigma que a criança poderá posicionar-se frente a falta, a ausência radical de algo no real do corpo de uma parte dos seres, das mulheres, no caso. No lugar desta ausência é que o falo se apresenta como um significante, passando a ser o representante desta ausência e o referente simbólico, pólo de identificações através das quais um sujeito poderá aceder a uma posição sexual/sexuada (LACAN, 1998, p. 692). O psiquismo, ele mesmo não se constitui sem a inscrição, a marcação de uma diferença: à revelia de seu sexo anatômico, ou bem a criança se identifica com quem é suposto ter o falo ou bem com quem é suposto não tê-lo. É possível ainda que possa identificar-se com o próprio falo. Mas essa operação somente ocorre no âmbito do que Freud denominou de complexo de Édipo: drama imaginário que poderá introduzir a castração simbólica, ou seja, a criança terá que renunciar a seu objeto primordial (sem entrar em muitos detalhes) para poder escolher outros um de fora dos primeiros laços incestuosos. Mas e se essa possibilidade lhe é recusada de saída, o que poderá advir?

Dos novos modos de comparecimento do humano é que a psicanálise terá que ocupar-se, podendo acolher o sofrimento que, certamente, é o que não desaparecerá. A literatura? Enquanto houver, sempre será capaz de antecipá-los. Beckett as antecipou. Não somente apontando a impossibilidade estrutural da relação sexual, mas indicando, inclusive, algo da ordem da tentativa atual de apagamento das diferenças: ele não retira, por exemplo Ŕ como nos traz Badiou Ŕ a possibilidade de identificação dos personagens não identificando os artigos que indicariam seus sexos, o que se passa somente a partir do encontro? Pois essa tendência tem se anunciado nos palcos e telas do mundo. Mensagens, hoje, na internet, em formulários oficiais a serem preenchidos, por exemplo, têm aparecido, no lugar onde seria definido o sexo de quem fala, um simples e indefinido Ŗxŗ. No mundo atual, ter um sexo designado está Ŗfora de modaŗ.

Mesmo que eu não possa ainda me amparar em estatísticas, vou tomar mesmo assim um elemento de minha observação do cotidiano bem como dados da clínica para corroborar essa ideia. É possível afirmar, com certa segurança, que há bem pouco tempo não se encontrava, na paisagem urbana, sujeitos que levantassem a seguinte questão: trata-se de um menino que parece uma menina ou uma menina que parece um menino? Esse mesmo sujeito, é um jovem que parece mais velho ou é alguém mais velho que parece, coberto por tatuagens, piercings e alargadores, parece mais jovem? Então, não é somente a diferença sexual o que se pretende abolir. Tomado como metáfora alegórica de nosso tempo, esses sujeitos testemunham um tempo onde as gerações e a passagem do tempo também precisam ser apagadas. Efeito talvez da imortalidade pretendida pela ciência?

Sinais da mesma mutação, na clínica, tempos atrás, eram mais recorrentes as queixas sobre um não saber o que era ser um homem ou uma mulher. Hoje, é mais comum, principalmente entre os jovens, a expressão Ŗeu não sei se gosto de homens ou de mulheres; nem sei, na verdade, qual é o meu sexo, muito menos consigo saber na vida o que quero. Estou, de fato, muito perdido, bastante desorientadoŗ. Há toda uma movimentação, no social, no sentido de legitimar a indiferenciação sexual: é um direito, dizem alguns! O passo seguinte da humanidade seria, então, legitimar todos os modos de gozo que até então habitavam a margem, ou mesmo eram condenados? Caminhamos na direção da morte do desejo para dar lugar ao império dos sentidos? Eis a questão.

Certo, Beckett não chega a apresentar esse sujeito assim tão bem desenhado como no caso das figuras que encarnam, em seu corpo cuja roupa e outros apetrechos se adere, a indiferença quanto a marca da sexualidade. Mas anunciou, sim, o fim da transcendência, o fim do Ŗvelho estiloŗ de Winnie, a impotência, mesmo da Ciência, como no discurso, já citado, de Lucky, em Esperando Godot, em responder às questões e os anseios da humanidade. Beckett antecipa, Ŕ com a figura decaída, impotente e degradada de Ŗseus homensŗ: Hamm, o rei (de)posto cego e paralítico, Molloy e Malone que escancaram suas impotências e decrepitude, Krapp que somente existe a partir de suas próprias reminiscências repetidas por um gravador, Willie que dorme e cultiva a indiferença por sua mulher e pelo mundo Ŕ não só uma condição humana em mutação, mas a derrocada dos homens que, arruinados,

estariam em vias de extinção, conforme nos fala Alain Badiou? Os homens, negados, portanto, Ŗfora da jogadaŗ, do jogo erótico, do laço amoroso, a reprodução completamente separada da vida erótica, e toda uma economia psíquica, do desejo e do gozo, que se modifica.

Resta saber que forma de erotismo poderá se construir, em tempos antecipados por Beckett, visto ter ele a estrutura de uma ficção, de uma criação, de um romance mesmo, numa civilização onde os homens não conseguem se dizer Ŕ tal como Malone que, diante da morte, que antes de ser a morte real, trata-se daquela em que o sujeito tem experimentado em vida por ter experimentar, como nunca, uma espécie de pobreza simbólica em que não se chega a poder simbolizar o real, do sexo e da morte, de sua experiência Ŕ não conseguem mais se reinventar, não conseguem mais construir a ficção necessária ao laço erótico, ao amor como meio de fazer laço.

Alain Badiou, na entrevista supracitada, nos fala também de um mundo Ŗdevastadoŗ, tal como nos apresenta Beckett, onde os jovens têm se guiado mais pela pulsão de morte, colocando-se em situações de risco, que propriamente por um sentido que os mantenha na vida, pois tal sentido somente se alcança por meio das palavras. Mas as Ŗpalavras que sobraramŗ (BECKETT (Clov, 2002, p. 146) darão, elas, conta de sustentar o amor, visto ser ele um dizer (LACAN, texto inédito, 1973-1974)? As Ŗpalavras que sobraramŗ não seriam aquelas de um mundo em que a linguagem, como alteridade radical, teria sido destituída de sua função em nome da linguagem dos anúncios e memorandos? E o amor, sobreviverá como ficção que é, diante dessa Ŗreduçãoŗ da função da linguagem e à indiferenciação entre os sexos?

Quero terminar este capítulo retomando o ponto de partida, com as palavras de Gerald Thomas:

Beckett gostava de anedotas. Suas peças e sua prosa nada mais são do que anedotas em vários atos e quartos e espaços vazios que nunca serão preenchidos porque somos, como raça humana, fadados a ŖFalhar. Falhar de novo. Falhar melhorŗ. Somos nossa pior companhia. Não aguentamos a solidão. ŖVocê está deitado de costas no escuro e a sua própria voz é a sua única companhiaŗ. Beckett pode ser visto como um autor cruel, engraçado, existencialmente saturado e dantescamente macabro. Mas o fato é que, se perguntarmos Ŗpor que montar suas peçasŗ, a resposta é mais que evidente: ele é a própria representação do nosso espelho quebrado, despedaçado num canto escuro qualquer dessa nossa vida estranha. E ainda assim, se pensando e se encenando como se não houvesse fim para essa engraçada eterna tortura (THOMAS, 2010).