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AMORAL-ESCRITA OU DESCONSIDERAÇÃO DO FINAL:

4. CAPÍTULO 3:

5.1. AMORAL-ESCRITA OU DESCONSIDERAÇÃO DO FINAL:

“Escrevo no lugar dos selvagens, escrevo no lugar dos bichos, escrevo no lugar dos analfabetos,

dos idiotas, dos bichos, sua animal-escrita, sua escritura que nos deixam rastros”.

Gilles Deleuze e Félix Guattari

A princípio, alguns poderão se questionar o que venha a ser a proposição “Amoral-escrita”? Para estes, responderei: ela está destinada a compactuar com toda linha de argumentações estabelecidas ao longo deste trabalho. Pretende estabelecer vínculo ao pensamento “rizomático” de um movimento sem fim, nos entremeios, nos interstícios, nos platôs, os quais não se hierarquizam e muito menos estabelecem um fim, ou uma “consideração final”. Daí não poderia estabelecê-lo, pois inexiste diante do agenciamento da escritura rizomática clariciana. Assim, seguindo ao propósito da concepção, ou, como diria Deleuze, na invenção de uma “Fábula da Modernidade” não mapearemos a construção de uma moral ou sua consideração final, mas a amoral-escrita e sua desconsideração final.

Ao longo das cartografias estabelecidas, a escritura clariciana é, essencialmente, a amoral da forma, uma vez que a natureza de sua linguagem estabelece a construção de uma escrita voltada para a modulação da fala, num processo sensível, ético, de um Ethos narrativo ou mesmo de um Pathos.

A experiência fabular tradicional nos remete a uma “literatura de aquisição”, aquisição de vocábulos, conceitos, valores estéticos, normas e cânones. A escritura clariciana, diametralmente, mapeia um despertar, um (re)pensar, um problematizar,

pois constitui-se como uma “literatura do problematizar”, a qual não contempla mais conceitos ou morais.

A autora Instiga seus leitores a se posicionarem, a realizarem desconstruções de dogmas e sentimentos de ordem depreciativa, sem imposições, sem inquisições, as quais deflagravam a antiga fábula e sua respectiva moral. Nela o pensar é nômade, deslizante, evoca o uno e o múltiplo “rizomático”; estimulando o plano da criticidade e a formação de seus sujeitos leitores.

Identificamos, a partir daí, os modelos narrativos da educação estética infantil, no século XX, como fator operacional de um mecanismo automatizante. E, em confronto a isso, voltamos o nosso olhar para a narrativa e a escritura de Clarice como a que gesta esta “Fábula da Modernidade”, instauradora da quebra de paradigmas.

Reconhecemos a narrativa da autora como a casa da criança abjeta, não no sentido uterino de um refúgio, do evitar a relação com o mal, mas como aquela que impregna a vida da criança com o assombramento e com o horror da morte, num âmbito de uma errância ou, ainda, da perversão e suas pulsões do mal.

Clarice desconstrói a ideia dos estereótipos apolíneos, ou mesmo de um eventual desfecho da cristalizada frase “e foram felizes para sempre” dos contos de fadas. Em Clarice, as fadas viram monstros e os castelos encantados encontram-se infestados de baratas, a voltas com uma non sense. O anti-pedagógico, o devaneio, o abjeto, o perverso e o vertiginoso imperam, por assim dizer, nas narrativas infantis claricianas.

A autora vai de encontro com uma anti-pedagogia a qual “desterritorializa” os “utilitarismos”, os clichês, de acordo com o conceito de Deleuze, “reterritorializando- os” em um “brincar de pensar” em que “o sinal de se estar no caminho certo é o de

não ficar aflita por não entender; a atitude deve ser: não se perde por esperar, não se perder por não entender” (LISPECTOR, 2004, p.49).

Diante deste (re)inventar pedagógico, defendido como “uma educação da sensação ou da crueldade, por oposição a uma educação dos clichês”(LINS, 2007, p.06). Clarice por meio de sua escritura “desterritorializa” a literatura enquanto mecanismo de salvação, de redenção, quando declara que escrevia “sem a esperança de se alterar alguma coisa, pois na verdade não se altera nada”.

As fábulas claricianas não antropomorfizam animais, a autora vive sua potencialidade selvagem como aquela população a qual tem responsabilidade.

Clarice “desterritorializa” a relação hegemônica adulto/criança e nos oferece outro olhar sobre o mundo das crianças e dos bichos. Subverte, fissura o campo do pedagógico deste gênero literário afirmando que “não ter nascido bicho é minha secreta nostalgia. Eles às vezes clamam do longe muitas gerações e eu não posso responder senão ficando inquieta. É o chamado” (LISPECTOR, 1993, p. 57).

A autora não escreve com a pena do “tornar adulto” ou da “socialização da criança”, e sim com a da experimentação de um laboratório da imaginação. Como um quase lugar, uma quase experiência. Para Benedito Nunes (1995, p. 132) essa inscrição na literatura clariciana pode ser assim entendida:

Os animais gozam, no mundo de Clarice Lispector, de uma liberdade incondicionada, espontânea, originária, que nada – nem a domesticação degradante de uns, nem a aparência frágil e indefesa de outros – seria capaz de anular.

Em Clarice, realmente, testemunhamos essa escrita como um espaço aberto a uma espécie de intimidade dos estados do humano com os estados animais. Isso

decorre de sua inclinação para o “devir”, para o surgimento do seu “devir-Clarice”, do seu “animal-clarice”.

Assim, ela transita por espaços que parecem inconciliáveis à mulher, aos animais, às crianças, não como uma figura materna que elimina a possibilidade de uma troca de olhar que desperte o terror e ao mesmo tempo o apelo para este tipo de sentimento; mas como uma “maternagem escritural”.

A literatura clariciana delineia-se como além margens, “desteritorializa-se” como uma escritora apátrida, “reterritorializa-se” em diversos espaços, em distintos campos textuais, de forma a promover, concomitantemente, sentimentos e costumes estrangeiros. Elabora uma sintaxe que se “introduz na sensação, e que faz gaguejar a língua corrente, ou tremer, ou gritar, ou mesmo cantar: é o estilo, o ‘tom’ a linguagem das sensações ou a língua estrangeira na língua” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 228). Nessa linha de raciocínio, complementa Rieux (2005):

Escrever é, necessariamente, forçar a linguagem, a sintaxe, porque a linguagem é a sintaxe, forçar a sintaxe até certo limite, limite que se pode exprimir de várias maneiras. É tanto o limite que se separa a linguagem do silêncio, quanto o limite que separa a linguagem da música, que separa a linguagem de algo que seria... o piar, o piar doloroso.

A escritura, nessa perspectiva, encontra-se neste “território” do inacabado, e é este eterno devir que “desterritorializa” formas e “reterritorializa” conteúdos nesse movimento “rizomático” do meio, dos interstícios. O sentido “rizomático” de sua escritura instaura como lógica a conjunção “e”, num movimento de um emaranhado de fios condutores, em espaços desmarcados, cartografados: “o rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.37).

Contudo, a narrativa clariciana compreende nesse trânsito um caminho em que escritura e autora, ou mesmo leitor, não delineiam produtos ou referências enraizadas, pois é uma literatura nômade, descentralizada, uma “literatura pensante” ou do pensante, e até mesmo do passante e sua palavra pensante.

Evitamos, neste trabalho, definir um corpo com seus órgãos e funções. Evitamos, ainda, defini-lo por características de espécie ou de gênero: procuramos eleger afectos.

Clarice cartografa a ideia de uma escritora nesta relação “animal-escrita”, na qual se configura em sua narrativa este “animal-estar”, este “devir-animal” de uma fábula contemporânea. Fábula moderna que “desterritorializa” o campo da moral, saindo do “território” e se aventurando em terras estrangeiras: “O território são as propriedades do animal, e sair do território é se aventurar”, daí decorre o estar sempre à espreita, como diria Deleuze: “o animal é um ser à espreita”. Nesse contexto, o escritor está à espreita, o filósofo está à espreita, Clarice esta sempre a espreita.

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