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2 PANORAMA DA APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA

3.4 ANÁLISE CRÍTICA DO CONCEITO TRADICIONAL DE CULPABILIDADE APLICADO

A construção dos elementos da culpabilidade, assim como sua transformação no decorrer do desenvolvimento dogmático da teoria do delito, evidencia que, desde a concepção psicológica, a formulação da culpabilidade tem base antropológica e foi elaborada com fulcro nas características humanas. Ante a ausência de aparelho psíquico nos entes coletivos, é muito difícil fundamentar um vínculo psicológico entre pessoa jurídica e um fato criminoso.

A partir da visibilidade e destaque da teoria final da ação de Welzel e a concepção normativa pura da culpabilidade, a culpabilidade da pessoa jurídica passa a ser tratada sobre enfoque distinto das teorias causal-naturalista e neokantiana.

A crítica da aplicação do conceito de culpabilidade finalista em relação às pessoas jurídicas se dá em torno da inadequação desta aos elementos integrantes da culpabilidade, quais sejam, a capacidade de culpabilidade, conhecimento do injusto e exigibilidade de conduta diversa.

A capacidade de culpabilidade e o conhecimento do injusto indicam se o agente sabe o que faz, que fundamenta o juízo de reprovação. A exigibilidade de comportamento diverso, fundado na normalidade das circunstâncias da ação, indica se o agente teria a possibilidade de não fazer o que fez, poder agir de outro modo, que exclui a culpabilidade em situações de exculpação específicas, não pode ser empregado na ação da pessoa jurídica.174

A capacidade penal não está presente nas pessoas jurídicas, porque os requisitos de maturidade e sanidade mental são inaplicáveis ao ente incorpóreo, cujas deliberações e votos, conformam uma vontade coletiva de um ente sem capacidade cognitiva. Os critérios para constatação de tal capacidade foram elaborados tomando como base o sistema biológico, a existência ou não de doença mental; o sistema psicológico; o sistema misto ou biopsicológico, fruto da combinação dos sistemas anteriormente citados; estão em dissonância ao eterno estado de inconsciência das pessoas jurídicas.

Neste sentido, o professor Juarez Cirino dos Santos apresenta hipótese absurda acerca da independência da capacidade penal da pessoa jurídica outorgada pela Lei n. 9.605/98:

173 SANTOS, Juarez Cirino dos. 2014. op. cit., p. 324-332.

174 Para partimos à análise da culpabilidade, aqui, a título de argumentação, presume-se como superado o questionamento sobre a possibilidade de ação da pessoa jurídica, que também é objeto de discussão doutrinária.

A hipótese de uma vontade coletiva ou pragmática deliberada em reunião de pessoa jurídica constituída por 2 sócios inimputáveis por doença mental, conduziria a situações de delírio jurídico: a) se a capacidade penal da pessoa jurídica é independente da capacidade penal das pessoas físicas dos sócios, então é preciso explicar de que modo pessoas físicas inimputáveis - portanto, incapazes de vontade válida - podem produzir uma vontade coletiva imputável - ou seja, uma vontade juridicamente válida - à pessoa jurídica; b) ao contrário, se a capacidade penal da pessoa jurídica depende da capacidade penal da pessoa física dos sócios, então a lei não poderia dizer que a responsabilidade penal da pessoa jurídica é independente da responsabilidade penal da pessoa física dos sócios.175

Seguindo no exame dos elementos da culpabilidade, o conhecimento do injusto (potencial conhecimento da ilicitude) tem por base a capacidade de compreensão do autor sobre a prática de conduta contrária ao ordenamento jurídico. Como o primeiro elemento, esse conhecimento da ilicitude também exige a existência de aparelho psíquico que permita a percepção das circunstâncias externas ao fato e se ação cometida está ou não em conformidade com as normas jurídicas.

Podemos afirmar, então, que a pessoa jurídica não tem capacidade de formular uma consciência da ilicitude, pois “a psique coletiva formadora da vontade pragmática das reuniões, deliberações e votos é uma ficção incorpórea sem existência real, incapaz de representar a natureza proibida do tipo de injusto”176.

No tocante ao último elemento da culpabilidade finalista, também encontramos entraves dogmáticos para a responsabilização penal da pessoa jurídica. Isto é, as situações de exculpação relacionadas à anormalidade das circunstâncias dos fatos e que configuram a inexigibilidade de conduta diversa também são inaplicáveis à pessoa jurídica, pois levam em consideração características psíquicas, como a livre determinação de vontade, pressões ou perturbações emocionais excludentes ou redutoras da dirigibilidade normativa, próprias das situações de exculpação legais ou supralegais.177

Ainda que considerada válida a emanação de vontade dos entes coletivos com fundamento nas decisões de órgãos ou conselhos, a construção tradicional da culpabilidade aplicável à teoria do delito se revela insuficiente para amparar a culpabilidade da pessoa jurídica. Da mesma forma que ocorre com as doutrinas de ação baseadas na vontade,178 o conceito finalista de culpabilidade foi elaborado a partir da ação de seres humanos, sem considerar especificidade de um ente coletivo.

175 SANTOS, Juarez Cirino dos. 2013. op. cit., p. 287. 176 Idem.

177 Ibidem. p. 288.

178 Neste sentido é a observação de Luis Gracia Martín “El elemento portador de la posibilidad de imputación jurídico-penal es en cualquier caso sólo el ejercicio de la voluntad, en sentido psicológico, y el proceso de su formación. Si la acción es concebida, como yo la entiendo, como ejercicio de actividad finalista y la omisión como no realización de una acción finalista, entonces es evidente que la persona jurídica carece de capacidad de acción

A problemática da culpabilidade da pessoa jurídica exigiria a adaptação do Direito Penal também em relação à sua natureza, porque seus pilares foram desenvolvidos voltando-se a pressupostos inerentes ao ser humano.

4 A CONSTRUÇÃO DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA