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ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO JURÍDICO NO CONTEXTO DO

5. DECISÕES JUDICIAIS LATINO-AMERICANAS: PISTAS TEXTUAIS DA

5.1. ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO JURÍDICO NO CONTEXTO DO

O discurso decisório, enquanto evento autêntico do Judiciário, é mediado pelo seu contexto jurídico específico, pelas institucionalidades, pelos sujeitos imbricados ao texto e pelos instrumentos normativos previamente dados. Essa tessitura contextual influencia a construção das narrativas possíveis em uma Decisão. O discurso jurídico decisório, no sentido proposto por Virgínia Colares (2009), é ideológico, argumentativo e persuasivo. De acordo com Fairclough (1992), todo discurso, seja em maior ou menor grau, para romper com relações de dominação ou para reafirmá-las, é em si mesmo ideológico.

De acordo com Viviane de Melo Resende (2018, p.618), “o uso situado da linguagem, ao produzir textos, que são parte do resultado de eventos sociais, tem efeitos causais, gerando mudanças em nosso conhecimento sobre o mundo”. Essas

mudanças também repercutem em nossas ações e representações sociais, bem como nas ordenações sociais e marcadores da diferença.

A autora forja um mapa ontológico, exposto abaixo, para descrever as estruturas sociais de classe, gênero, sexualidade, raça e etnia que são atravessadas pela linguagem. Salientamos a necessidade de acoplar a esse mapa ontológico uma estrutura social de espécie que media também as práticas sociais.

Figura 6 – Mapa ontológico do funcionamento social da linguagem

Fonte: Resende (2018:619)

As diferenças de fundo argumentativo, conteudístico e ontológicos nas decisões referentes ao reconhecimento de direitos atribuíveis à Natureza enquanto sujeito de direito e aos Animais não humanos, são produtos de atores sociais a partir de suas características de atores ideológicos nas instâncias sociais onde atuam. A Análise Crítica do Discurso objetiva enunciar e desvelar esses sujeitos, descortiná-los do mito da neutralidade (COLARES, 2009).

Algumas decisões que pretendem conferir direitos ou proteger interesses de animais não humanos específicos partem de argumentos e justificações jurídicas com lastro em notas doutrinárias do Direito Ambiental, notadamente do dano ambiental incutido à fauna e à principiologia jurídico-ambiental subjacente.

Partem, igualmente, de textos legislativos inscritos no bojo do universo jurídico vigente e, em certa medida, traçando uma limitação às decisões possíveis do ponto de vista jurídico. Ademais, também se faz presente referências demarcadas de categorias analíticas próprias do discurso de movimentos político-acadêmico- epistemológicos em prol da atribuição de direitos aos animais. Conceitos como senciência, especismo, antropocentrismo, são referentes constantes e incontornáveis (ainda que implícitos) que se alinham a uma fundamentação global e universal do Direito Animal, consentânea com os postulados da Ética Animal nortista.

Já quando analisamos as decisões referentes à titularização de direitos por parte da Natureza há uma narrativa construída com lastro em um corpo teórico e legislativo próprios e que repercute na construção de um léxico específico, uma linguagem própria e um discurso ajustado a essas demandas.

Partimos de duas facetas possíveis para avaliação das potencialidades decoloniais do discurso das principais decisões judiciais que conferem direitos aos entes não humanos no contexto latino: de um lado se as bases epistêmicas e ontológicas que nutrem o texto/contexto da decisão judicial e, consequentemente, da concretização normativa promovem um discurso decolonial e, de outra banda, se o decidido repercute materialmente na modulação de relações sociais de forma tal a forjá-las sob uma perspectiva decolonial do Ser, Poder, Saber, Natureza e Animais não humanos.

Dessa forma, nos propusemos a buscar pistas textuais, nos dois casos, para perceber a abertura operativa para a compreensão dos institutos jurídicos de forma a decolonizar o imaginário jurídico, os sujeitos, instituições e normativas. Ou seja, objetivamos compreender a morfogênese da decisão judicial em casos em que emergem novos Sujeitos do Direito.

Tomamos por base o quadro elaborado por Bragatto & Colares (2017) e o respectivo enquadramento teórico-metodológico para efetuar a verificação das camadas do discurso jurídico das principais decisões latino-americanas que versam sobre reconhecimento de direitos atribuíveis a animais não humanos e à natureza. A partir da presença ou ausência dessas categorias demarcadoras do pensamento

decolonial, abaixo mencionadas, podemos analisar se há prevalência dessas noções materializadas na superfície do texto e que possibilitariam a compreensão dessas decisões sob uma faceta decolonial.

Figura 7 – Indícios de decolonialidade no discurso

Fonte: BRAGATTO & COLARES (2017:958)

O uso da análise crítica do discurso se justifica na presente tese pela necessidade verificar, na formação discursiva das decisões judiciais latino- americanas que afirmam direitos aos animais e natureza, indícios textuais e discursivos de fundamentação teórica, jurídica, histórica, cultural atinentes à Decolonialidade enquanto campo de conhecimento disruptivo ou se há uma continuidade epistêmica da Ética Animal e Direito Animal nortista que são recepcionados no contexto latino em descolagem com o contexto material e jurídicos específicos.

Bragatto & Colares (2017) empreendem intento estruturalmente similar ao analisar decisão do STF relativamente a grupos minoritários e vulneráveis (ADPF 186/FD), nomeadamente afrodescendentes. Nesta tese partimos de um espoco de análise pós-humano. A análise perpassa pela busca de desconstrução de discursos de subordinação, um discurso decolonial em favor de animais não humanos. Nesse sentido, os animais não humanos são inseridos como grupo minoritário ou vulnerável na medida em que são carentes de poder, em função de estratégias sociais de debilização de suas identidades.

Assim, demandas judiciais que impliquem grupos ou indivíduos vulneráveis podem sugerir a superação da condição de subordinação. Desta forma, superar a

condição de não existência no sentido fanoniano (2008), deveria, em tese, ser a premissa condutora de uma tomada de decisão judicial. Essa dimensão prescritiva do giro decolonial pode estar presente ou não em decisões de demandas judiciais de grupos minoritários.

Os magistrados e tribunais podem assumir categorias decoloniais ao solucionar demandas. Consideramos a decisão judicial como evento autêntico do Judiciário que ao ser considerada uma prática discursiva pode ser apreciada como mediadora entre texto e prática social. Desta forma, pode tanto promover justiça como naturalizar opressões.

A análise crítica do discurso possui uma agenda marcadamente política, assim como a Teoria Decolonial. Objetivam analisar como o poder se manifesta nas estruturas e relações sociais. Desta forma, se importam não só com a desconstrução dos textos, mas também com as consequências materiais do discurso. Desta forma, ao analisar criticamente a decisão judicial intuímos haver uma ideologia jurídica (CORREAS, 1995) que nutre a construção discursiva do Direito.

Cabe pontuar, que a decisão judicial possui um caráter marcadamente intertextual na medida em que absorve e transforma uma série de outros textos (doutrinários, legislativos, jurisprudenciais, etc.). Como salienta Bragatto & Colares (2017, p.957) é “um texto que, à semelhança dos demais, é voz que dialoga com outros textos. As relações inter (trans) textuais funcionam como eco de vozes de seu tempo, da história de um grupo social, de seus valores, crenças, preconceitos, medos e esperanças”. Intertexto é diálogo social que remetem ao funcionamento das relações em contextos geohistóricos culturais, matrizes sociais do discurso.

De acordo com Resende & Santos (2016) “as análises discursivas críticas são textualmente orientadas, isto é, a crítica aos problemas sociodiscursivos que investigamos toma por base análises linguísticas de textos.” Desta feita, o empreendimento aqui tomado levou em conta os textos de decisões judiciais.

Buscamos realizar uma reflexão acerca dos caminhos escolhidos pelos sujeitos enunciadores da decisão ao representar os animais não humanos e natureza no contexto processual a fim de fazer emergir novos sujeitos no mundo jurídico.

Para tanto analisamos decisões judiciais que são marcos internacionais com relação ao reconhecimento dos animais e natureza como sujeitos de direitos. A relevância dessas decisões se justifica na medida que são consideradas como as

primeiras decisões no mundo que reconheceram e fizeram emergir no mundo jurídico esses novos sujeitos de direito.

Ademais, o interesse por essas decisões se adensa na medida em que elas se deram em países latino-americanos a despeito de a doutrina majoritária desta expertise ser marcadamente forjada no norte global.

Foram analisados os Habeas Corpus concedidos em favor da Chimpanzé Suíça (Brasil) e Cecília (Argentina). Ainda, a decisão no caso circo Portugal (Brasil) e os casos do rio Vilcabamba (Equador) e rio Atrato (Colômbia).

Desta forma, não nos debruçamos sobre decisões judiciais que versam sobre a temática própria do direito animal e direitos da natureza, apenas os leading cases que expressamente consignaram a nova condição jurídica de sujeito de direitos atribuíveis a essas entidades. Ou seja, o já largo grupo de precedentes no Supremo Tribunal Federal que discutem a dignidade animal em casos de maus tratos em diversos contextos socio-jurídicos não foram aqui analisados, inobstante sua relevância para a consolidação do direito animal brasileiro.