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Análise Cultural das Sociedades Modernas Ocidentais – a produção do “Refugo Humano”, a Mídia e o “Mito das Drogas” como eixos teóricos de

análise

Partindo da concepção estrutural de cultura, pensada por Thompson (2007), cuja ênfase se dá tanto ao caráter simbólico dos fenômenos culturais quanto ao fato de tais fenômenos estarem sempre inseridos em contextos sociais estruturados, entendemos a “análise cultural” como o estudo das formas simbólicas – isto é, ações, objetos e expressões significativas de vários tipos – em relação a contextos e processos historicamente específicos

e socialmente estruturados dentro dos quais, e por meio dos quais, essas formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas. (Thompson, 2007, p.181)

Deste ponto de vista, os fenômenos culturais são entendidos como formas simbólicas em contextos estruturados, enquanto que a análise cultural visa estudar a constituição significativa e a contextualização social desses fenômenos. Com essas concepções em mente, propomos três eixos teóricos que nortearam nossa análise cultural das sociedades modernas ocidentais: a produção do refugo humano (trabalhando com as noções de mercado e consumo, aparelhos ideológicos e repressivos de Estado, e de sistemas de desigualdade e de exclusão), a televisão como a agorá da modernidade (abordando as noções de mídia, as instâncias de produção e de recepção e a função midiática de colaborar na prevenção do uso de drogas) e o problema social das drogas (referenciando suas definições e usos, a noção de corpo, estigmas e discursos/práticas associados ao fenômeno). A noção de subjetividade perpassa os três eixos e será aprofundada na última etapa deste trabalho. Trataremos brevemente neste momento da construção do projeto sócio-cultural da modernidade, antes de adentrarmos nas análises dos eixos citados.

O desenvolvimento das sociedades modernas é o resultado de um conjunto de transformações institucionais fundamentais que tiveram início na Europa durante o último período da Idade Média e os primórdios da era moderna (Thompson, 2008). Através da exploração, do comércio e da colonização, tais transformações foram envolvendo cada vez mais outras partes do mundo, tomando um caráter global e não mais apenas europeu.

Uma primeira linha de transformação apontada por Thompson (2008) está relacionada às mudanças econômicas. A emergência das sociedades modernas implica um conjunto específico de mudanças econômicas através das quais o feudalismo europeu foi se transformando gradualmente num novo sistema capitalista de produção e de intercâmbio de produtos e serviços. Ao redor de 1450, esse novo sistema de produção e intercâmbio de mercadorias surge na Europa e, rapidamente, expande-se tanto em produtividade quanto em alcance geográfico.

A Revolução Industrial (ocorrida na segunda metade do século XVIII e primeira do século XIX) aconteceu dentro do contexto de um sistema econômico capitalista que já existia na Europa e em outros lugares há muitos séculos. Ao introduzir uma série de novos métodos de produção - uso das máquinas, divisão de trabalho, etc. - a Revolução Industrial aumentou significativamente a capacidade produtiva das empresas, anunciando a era do processo

industrial em grande escala. Essas mudanças ocorreram dentro de um sistema de relações de propriedade e de produção que permaneceram relativamente estáveis (Thompson, 2008).

Uma segunda linha de transformação refere-se às mudanças políticas. O desenvolvimento das sociedades modernas se caracterizou, também, por um processo de mudanças políticas através das quais as “numerosas unidades políticas da Europa Medieval foram sendo reduzidas em número e reagrupadas num sistema entrelaçado de estados-nações, cada um reclamando soberania sobre um território claramente delimitado e possuindo um sistema centralizado de administração e de tributação” (Thompson, 2008, p. 48). Conforme Bauman (2005), o Estado-nação é um Estado que faz da ‘natividade ou nascimento’ o ‘alicerce de sua própria soberania’. Com a noção de identidade nacional, a ficção da ‘natividade ou nascimento’ desempenhou o papel principal entre as fórmulas empregadas pelo nascente Estado moderno para legitimar a exigência de subordinação incondicional de seus indivíduos.

Atrelada à segunda linha de transformação, Thompson (2008) aponta uma terceira linha: o desenvolvimento do monopólio em determinados territórios. Nesse sentido, a guerra e a sua preparação exerceram um papel fundamental nesse processo de alterações políticas. Com o desenvolvimento das sociedades modernas, o poder militar foi se concentrando cada vez mais nas mãos de estados-nações que reivindicavam o monopólio do uso legítimo da força dentro de um determinado território. Dessa forma, os governantes criaram os meios para exercer o poder coercitivo, principalmente através das guerras contra rivais externos ou contra possíveis ameaças externas, mas também meios para reprimir revoltas internas e manter a ordem dentro de seus territórios. Porém, para criar esses meios de exercer o poder coercitivo, os governantes tinham que criar meios para extrair recursos (dentre eles, homens), equipamento e capital, das populações subjugadas a esse poder (Thompson, 2008).

Essas transformações das sociedades modernas constituem uma quarta linha de transformação institucional apontada por Thompson (2008) como sendo de domínio “cultural”. Conforme Thompson, teóricos sociais têm tentado detectar, de maneira equivocada, largas mudanças nos valores e nas crenças, nas atitudes e nas orientações no plano cultural. O autor não nega a importância dessas mudanças, mas propõe uma nova argumentação. Ao focalizar nos meios de produção e circulação das formas simbólicas no mundo social, podemos ver que, com o advento das sociedades modernas uma transformação cultural sistemática começou a ganhar um perfil mais preciso. É o que Thompson (2007)

denomina de “Midiação da Cultura Moderna”, expressão já debatida na introdução deste trabalho.

Nessa análise, buscamos entender o capitalismo não apenas como um paradigma econômico da modernidade, mas também como um paradigma cultural, tendo papel fundamental na sua constituição como um projeto sócio-cultural (Santos, 2010). Constituíram-se na matriz da modernidade ocidental dois tipos de conhecimento: o conhecimento-regulação (CR) e o conhecimento-emancipação (CE) (Santos, 2007). Para o autor, todo o conhecimento se distingue por seu tipo de trajetória, que vai de um ponto A denominado “ignorância” a um ponto B denominado “saber”. A ignorância no conhecimento- regulação é o caos, ou seja, ser ignorante é viver no caos de uma realidade incontrolada e incontrolável; conhecer, nesse modelo de conhecimento, é ordem. Portanto, no modelo do CR, “saber é pôr ordem nas coisas, na realidade, na sociedade” (Santos, 2007, p.53). Já para o CE, o ponto A, da ignorância, é chamado de colonialismo, ou seja, a incapacidade de reconhecer o outro como igual, a objetivação do outro, e o ponto B, o saber, é o que se pode denominar de autonomia solidária.

Esses dois modelos de conhecimento estão inscritos na matriz da modernidade ocidental, entretanto, o conhecimento-regulação dominou por inteiro quando a modernidade ocidental passou a coincidir com o capitalismo. Nesse sentido, essa desregulação observada na modernidade se deve ao desenvolvimento histórico do capitalismo enquanto modo de produção hegemônico deste período. No “capitalismo desorganizado” (Santos, 2010), período que estamos a viver, a discrepância entre experiência e expectativas também está desfigurada, pois está invertida: as expectativas para a maioria das pessoas não são mais positivas que as experiências atuais; ao contrário, tornam-se mais negativas. Contudo, as promessas da modernidade – a liberdade, a igualdade e a solidariedade – continuam sendo uma aspiração para a população (Santos, 2007).

Ao lado das promessas da modernidade – a liberdade, a igualdade e a solidariedade – vai se constituindo uma produção de pessoas, redundantes e indesejáveis, que trataremos a seguir no capítulo intitulado “A produção do “refugo humano” e os “projetos modernos”, que foi subdividido em: Mercado e Consumo; O Estado Moderno: Aparelhos Ideológicos e Repressivos; e O “Projeto Moderno” pautado na Cosmovisão do Liberalismo-Individualista: da desigualdade à exclusão.

A PRODUÇÃO DO “REFUGO HUMANO” E OS “PROJETOS