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Abordagens Teóricas em IHC

3.4 Engenharia Cognitiva

3.5.1 Análise da Conversação

A análise da conversação descreve a forma como uma conversa é organizada pelos participantes a cada momento, durante o desdobramento de cada turno de fala (Sche- gloff , 1972; Schegloff e Sacks, 1973).

A conversação é caracterizada por mecanismos projetados para apoiar o con- trole local sobre o desenrolar de tópicos ou atividades, maximizar a acomodação de circunstâncias imprevistas que venham a ocorrer e identifi car e remediar eventuais problemas na comunicação. Dessa forma, a análise da conversação também enfatiza a natureza situada das trocas conversacionais.

O controle local está relacionado à distribuição de turnos de fala e à direção do assunto abordado. Isso signifi ca que durante a conversação os participantes decidem quem fala sobre o que e quando, construindo colaborativamente a conversa. Sacks, Schegloff e Jeff erson (1974) delinearam um conjunto de convenções ou “regras” sobre a troca de turnos que descrevem práticas comuns observadas por analistas da conver- sação. No curso de uma conversa, quando uma fala puder ser considerada concluída, ocorre um dos seguintes eventos:

o falante atual seleciona o próximo falante (e.g., direcionando uma pergunta

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ou outra fala a um ouvinte particular);

um outro participante se autosseleciona para começar a falar;

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o falante atual continua.

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O falante atual deve deixar claro para os ouvintes em que ponto está seu turno: se ele está no meio do turno, ou se o turno se encerrou. No entanto, o falante não defi ne o turno unilateralmente. A conclusão de um turno representa tanto uma inclinação do ouvinte em responder quanto a disposição do falante em ceder o turno. As frontei- ras de um turno são mutáveis, e a estrutura da conversação é elaborada localmente pelos falantes e ouvintes. Em outras palavras, o turno é essencialmente determinado pela interação entre os participantes ao longo da conversação. Por exemplo, o silêncio numa fala pode ser considerado uma simples pausa no meio de um turno, no qual o falante quer prosseguir falando, ou uma conclusão do turno, quando um ouvinte crê que pode tomar o turno para si.

Segundo Schegloff (1972), geralmente uma conversa coerente é aquela em que cada coisa dita pode ser tida como relevante, considerando o que veio antes. Isso signifi ca que a relevância de um turno é condicionada pelo turno que imediatamente o precedeu. Duas falas numa relação de relevância condicional constituem um par

adjacente (Schegloff e Sacks, 1973). Uma fala que seja considerada como a primeira

parte de um par adjacente estabelece uma expectativa com relação ao que deve vir em seguida, e orienta a forma como a fala seguinte é ouvida. Tanto a presença como a ausência de uma segunda parte esperada são signifi cativas (Exemplo 3.3).

Pares adjacentes em uma conversa Exemplo 3.3 –

Considere um diálogo entre um vendedor (V) e um comprador (C), numa livraria, como a seguir: V: Bom dia! Como posso ajudá-lo?

C: Estou procurando o novo livro da série “Harry Potter”.

A fala do vendedor pode ser considerada uma primeira parte de um par adjacente, que cria a expec- tativa de que o comprador responderá com alguma informação sobre um produto de seu interesse. Como o comprador responde com uma fala do tipo esperado, a conversa é tida como coerente e bem-sucedida. Já no diálogo a seguir, isso não acontece, e a conversa é tida como incoerente (a incoerência está marcada por um asterisco):

C: Estou procurando o novo livro da série “Harry Potter”. * V: Semana passada eu fui à praia e o mar estava ótimo!

Em interfaces com usuário, quando o usuário aciona um item de menu Salvar como...,

ele espera que o sistema lhe pergunte com que nome e onde deve salvar o arquivo. Caso algo diferente ocorra, há uma ruptura na comunicação.

Quando o ouvinte não entende uma fala, ele pode iniciar uma sequência cola-

teral, uma troca de falas em que o ouvinte busca esclarecimentos sobre o que foi dito

anteriormente. Essa solicitação explícita de esclarecimentos também cria expectati- vas sobre o que vem a seguir na conversa, como ocorre com os pares adjacentes.

Comunicação Usuário–Sistema 3.5.2

Segundo Suchman (1987), a descrição de artefatos computacionais como interati- vos é apoiada pelas suas propriedades reativas, linguísticas e internamente opacas. Ela propõe ainda que essas propriedades nos levam a enxergar esses artefatos como interativos e a atribuir explicações intencionais ao seu comportamento. Na prática, isso sugere que, como um ator humano, o computador seja capaz de se expressar, ou expressar a intenção por trás de suas ações, para o usuário.

Suchman ressalta que a forma de controlar as máquinas computacionais e o comportamento resultante são cada vez mais linguísticos, em vez de mecânicos. A operação da máquina se torna menos uma questão de pressionar botões ou puxar alavancas com algum resultado físico, e mais uma questão de especifi car operações e avaliar seus efeitos através do uso de linguagem. Isso contribui para a tendência dos designers em descreverem o que ocorre entre as pessoas e máquinas utilizando termos emprestados da descrição da interação humana (e.g., diálogo, conversação). Esses termos trazem um conjunto de intuições sobre propriedades comuns à comu- nicação humana e ao uso de artefatos de base computacional. Ela observa ainda que, num sistema computacional, os momentos de troca de turnos são predeterminados. Ao estabelecer uma relação determinada entre ações detectáveis dos usuários e res- postas da máquina, o designer controla unilateralmente a interação, mas de forma condicional às ações do usuário.

Para comparar as visões da interação do usuário e do sistema, Suchman (1987) utiliza um framework analítico simples:

Do ponto de vista do usuário, separa os eventos em ações dos usuários que

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não estão disponíveis ao sistema (por exemplo, conversas entre os usuários) e que estão disponíveis ao sistema (por exemplo, ações sobre os elementos da interface do sistema).

Do ponto de vista do sistema, separa os efeitos disponíveis ao usuário (por

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exemplo, instruções apresentadas na tela) e o design rationale, ou seja, pres- suposições e planos do designer que foram embutidos no sistema.

Suchman observa que o sucesso da interação assume que o usuário interpreta as ins- truções e as respostas do sistema da forma como o designer pretendia. Para transmi- tir a intenção do design ao usuário, e fazê-lo interativamente, o designer se apoia ta-

citamente em certas convenções da conversação humana. O problema prático com o qual o designer de um sistema interativo precisa lidar é como assegurar que o sistema responda de forma apropriada às ações do usuário. Devemos levar em consideração que a interação é um processo altamente contingente, no qual toda ação envolve não apenas a intenção do ator, mas também o trabalho interpretativo do seu interlocutor. Este, por sua vez, deve determinar o signifi cado e o valor da ação para então respon- der adequadamente, tomando uma nova ação. De modo geral, o designer e o usuário compartilham a expectativa de que a relevância de cada fala está condicionada à fala mais recente e que, dada uma ação por um interlocutor que pede uma resposta, a próxima ação do outro será uma resposta. Essa expectativa não assegura que qual- quer próxima ação de fato será uma resposta à última, mas signifi ca que, sempre que possível, o usuário vai buscar uma interpretação da próxima ação como se fosse essa resposta.

Já a expectativa do usuário é de que toda resposta do sistema indique, implícita ou explicitamente, uma avaliação da última ação que o usuário tomou e uma reco- mendação sobre o que ele pode ou deve fazer em seguida. Mais especifi camente, toda vez que age sobre a interface, o usuário tem as seguintes expectativas com relação à resposta do sistema (Suchman, 1987):

Se o sistema responde com uma nova instrução, a ação anterior do usuá-

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rio foi confi rmada pelo sistema. Ao realizarmos um procedimento passo a passo, temos uma expectativa geral de que completar uma ação permite progredir para uma nova instrução e uma próxima ação. Esse tipo de res- posta ocorre, por exemplo, após submeter um formulário de busca, quando o sistema responde com alguns documentos encontrados e instruções sobre como acessá-los.

Se o sistema não responde, a ação anterior do usuário de algum modo estava

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incompleta, e deve haver mais alguma ação para o usuário tomar de forma a completá-la. A falta de resposta do sistema traz informações sobre a última ação do usuário, indicando que o turno de fato não mudou. Por exemplo, caso o usuário preencha um formulário de busca mas não ative a busca de fato, o sistema fi ca aguardando uma próxima ação do usuário.

Se a resposta do sistema for repetir a instrução, a repetição implica que (1)

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a ação prévia do usuário deve ser repetida (i.e., que o procedimento é itera- tivo); (2) houve erro na ação prévia e o sistema retorna ao estado anterior à instrução, desfazendo a ação (isso não ocorre na interação humana, e os usuários frequentemente não reconhecem isso); ou (3) a ação do usuário falhou em satisfazer a intenção da instrução do sistema e precisa ser reme- diada. Por exemplo, quando o usuário submete um formulário de busca e o

sistema lhe reapresenta o mesmo formulário, em geral isso indica que houve uma falha na tentativa anterior (e.g., o usuário não defi niu nenhum termo antes de acionar a busca), ou seja, que o usuário não seguiu um curso de ação esperado e deve tentar remediar o problema naquele ponto.

Assim, a interação entre pessoas e máquinas requer essencialmente o mesmo tra- balho de interpretação que caracteriza a interação entre pessoas, mas com recursos fundamentalmente diferentes disponíveis aos participantes. Em particular, as pessoas fazem uso de uma gama rica de recursos linguísticos, não verbais e inferenciais ao tentar compreender ações e eventos, ao tornar suas próprias ações razoáveis, e ao ge- renciar os problemas de entendimento que inevitavelmente surgem. Muitos sistemas computacionais, por outro lado, se apoiam numa gama fi xa de entradas sensoriais, mapeadas a um conjunto predefi nido de estados internos e respostas. O resultado é uma assimetria que limita substancialmente o escopo da interação entre pessoas e sistemas computacionais. Essa assimetria traz ao menos três desafi os para o design de sistemas computacionais interativos (Suchman, 1987):

como reduzir a assimetria, aumentando o acesso do sistema às ações e cir-

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cunstâncias do usuário;

como tornar claros ao usuário os limites do acesso do sistema a esses recur-

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sos de interação básicos;

como encontrar maneiras de compensar a falta de acesso do sistema à situ-

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ação do usuário com alternativas computacionais disponíveis.

Assim como a comunicação humana, a comunicação usuário–sistema não é livre de problemas. Concepções erradas do usuário podem levá-lo a encontrar evidências para um erro em suas ações onde não há nenhum, ou podem levá-lo a um erro nas suas ações que não possa ser detectado pelo sistema.

Suchman argumenta que a interação usuário–sistema é geralmente limitada às intenções dos designers e à sua capacidade de prever e restringir as ações do usuário. Cabe ao designer entender essas limitações e tentar estender, através de um design cuidadoso, a gama de comportamentos úteis do sistema.

Estudos

3.5.3 Etnometodológicos de IHC

Estudos fundamentados em etnometodologia têm sido aplicados em IHC de diversas maneiras (Button, 2003):

para analisar o impacto que um sistema teve no trabalho realizado no am-

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para analisar princípios e métodos organizacionais subjacentes a um domí-

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nio de trabalho;

para analisar os impactos de um sistema sobre esses métodos;

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para criticar o design do sistema quando entra em confl ito com esses mé-

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todos.

Numa abordagem de estudo de campo fundamentada em etnometodologia, a ati- vidade humana é observada enquanto se desdobra nas circunstâncias reais em que ocorre. O observador-participante atua como uma “sombra” de um indivíduo par- ticular e testemunha muitas circunstâncias em que ele está envolvido durante um dia de trabalho. A relação entre as interpretações da ação e as circunstâncias da ação devem ser investigadas. O ponto de partida para o estudo é a suposição de que não temos uma descrição a priori da estrutura da ação situada. Não queremos pressupor quais são as condições relevantes ou sua relação com a estrutura da ação. Precisamos capturar tanto quanto possível do fenômeno e pressupor tão pouco quanto possível (Suchman, 1987). Essa atitude se contrapõe à análise de exemplos artifi ciais, observa- ções ou relatos de entrevistas, que se fi am em circunstâncias imaginadas ou lembra- das (Button, 2003).

Segundo Button, os estudos sobre a forma como as pessoas têm de trabalhar com um sistema e frequentemente contorná-lo têm sido utilizados para criticar as meto- dologias de projeto que apoiam diversos designs de sistemas baseados em entendi- mentos abstratos e formais do trabalho. Sistemas assim projetados podem encontrar difi culdades quando são implantados em ambientes de trabalho reais por causa da natureza situada da organização do trabalho, que costuma ser um fenômeno muito mais fl exível, envolvendo práticas ad hoc e operações de contingência na sua realiza- ção, em vez de regras ou normas prescritivas.

Em IHC, estudos do trabalho também vêm sendo utilizados para avaliar designs tecnológicos particulares. Ao conduzir estudos sobre o uso real de um sistema no local de trabalho, torna-se possível coletar dados detalhados sobre a aplicação de tec- nologia que podem ser utilizados na sua avaliação e no redesign subsequente.

A expressão ação reportável (accountable action) chama atenção para o fato de que as ações sociais não são apenas realizadas, mas são feitas de forma que possam ser reconhecidas como tal, isto é, de forma que seja possível fazer um relato delas. Utilizando a ideia de que a ação humana é reportável (feita para que possa ser reco- nhecida), Dourish e Button (1998) sugerem que abstrações podem ser desenvolvidas de modo que atuem como uma forma de visualizar os mecanismos operantes quando alguma tarefa está ocorrendo. Por exemplo, uma operação de cópia no computador é feita para tornar o que está sendo feito reconhecível. Dessa forma, o sistema con-

segue fornecer um relato do que está sendo feito à medida que o faz, o que permite aos usuários determinarem melhor qualquer ação (remediadora) que seja necessária (Button, 2003).