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03 análise de um espaço de confinamento: hospital psiquiátrico

“Vi que, se havia um muro de pedra entre eu e meus concidadãos, havia um outro ainda mais difícil de galgar e transpor para que eles pudessem tornar-se tão livres quanto eu. Não me senti aprisionado sequer por um momento e aqueles muros pareceram-me um enorme desperdício de pedra e argamassa.

Sentia-me como se apenas eu, entre todos meus concidadãos, tivesse pago o

imposto.”

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contexto

Apresentados os diferentes espaços que práticas transgressoras podem originar, devo aqui começar, obrigatoriamente, pela dissidência social responsável pela construção deste tipo de espaço cuja análise me proponho desenvolver – a loucura, agora denominada por doença mental. Como já foi referido, a doença, qualquer que seja, é identificada por sintomas específicos que afectam o ser vivo, alterando o seu estado normal de saúde, atribuindo-lhes uma posição marginal na sociedade.

loucura/ doença mental

O conceito de doença mental tem tomado várias formas ao longo do tempo, como se pode verificar na extensa “História da loucura” de Michel Foucault. Inicialmente tida como loucura torna-se, mais tarde, objecto de estudo da ciência que a nomeia de doença mental. Segundo Foucault, nunca se tratou de um dado mas sim de uma concepção que acompanha o evoluir da sociedade, sendo, portanto, uma construção social que se define consoante os contextos culturais e políticos de determinada época. Na Idade Média, a loucura reveste-se de dogmas religiosos e crenças populares associados à bruxaria e ao misticismo: acreditava-se que demónios se apoderavam do corpo do indivíduo profanador. No início da Renascença, a alienação liberta-se desse mundo das trevas e representa um saber difícil, esotérico, inalcansável ao comum dos mortais. É a estultícia de Erasmo em “Elogio da loucura” (1509): “Ela reina sobre tudo o que há de mau no homem”1: “Aqueles que tiveram

o privilégio tão raro de tais sentimentos experimentam uma espécie de demência; dizem frases incoerentes, estranhas à humanidade; pronunciam palavras desprovidas de sentido; e a todo instante a expressão de seus rostos muda. Ora alegres, ora tristes, riem, choram, suspiram; em suma estão fora de si. Quando caem em si (…) deploram a volta à razão e sonham apenas em ser loucos para sempre.”2 Neste

período, surge a imagem simbólica e satírica, retratada literariamente em “Narrenschif - O navio dos loucos” por Sebastian Brandt, do embarcar da insanidade numa viagem aquática em busca da razão. A água leva embora, purifica e entrega o embarque à incerteza.3

Até perto do final do Antigo Regime francês a sequestração dos ditos insanos, ou quaisquer outros seres passíveis de correcção moral, estava a cargo da jurisdição real, passando, posteriormente, para a autoridade judiciária com o objectivo de garantir a tranquilidade pública. O poder executivo intervinha “contra o desvio familiar ou

1 FOUCAULT Michel, História da loucura, pág.28 2 ROTTERDAM Erasmo, Elogio da loucura, pág.90

3 Actualmente reinterpretado ora de forma metafórica, ora através de um verdadeiro barco como o Adamant - um barco-hospital psiquiátrico de dia amarrado ao cais Rapé do rio Sena, em Paris.

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contra ameaças à segurança pública: crimes de Estado, indisciplina militar ou religiosa, questões de polícia”4, e mesmo a insanidade, sob

uma mesma base de repressão sem diferenciação e, de certa forma, arbitrária.

Em 1656, procede-se a um Grande Encerramento, coordenado pelo Hospital Geral de Paris,5 que acumula indivíduos diagnosticados de

“imbecil”, “pródigo”, “enfermo”, “espírito arruinado”, “libertino”, “filho ingrato”, “pai dissipador”, “prostituta”, “insano”.6

Segundo Foucault, só perto da Revolução Francesa esses alienados são “libertos” aquando da visita do psiquiatra Philippe Pinel aos estabelecimentos envolvidos. Este episódio marcou uma viragem de reestruturação da localização da loucura no espaço social: do internamento homogéneo e rigorosamente delimitado ao espaço de assistência especializada, por hora de ordem social, moral e de higiene pública. E consequentemente a, até então, abstracta estultícia tornou-se objecto de tratamento médico.7

“O modelo médico da doença mental serviu sempre para obscurecer

os processos sociais que produzem e definem a desviância, através da localização dos problemas na biologia de cada um.”8 O que perpetuou a existência do binómio “normal/ patológico”, descuidando o desafio implícito no comportamento desviante. De acordo com Goffman, “acaba-se frequentemente por descobrir que a loucura ou o comportamento anormal atribuído ao doente resultam, não da sua doença, mas da distância social que separa esse doente daqueles que o declaram como tal.”9 O homem que se auto-considera “são”, atribui “enfermidade” àquilo que se diferencia dos seus padrões de normalidade; ao etiquetar o outro está automaticamente a excluir-se, e portanto também a proteger-se, daquilo que desconhece. Ao tecer este julgamento “(não no sentido estatístico, mas no sentido vulgar de que comportaria uma anomalia) coloca-se na impossibilidade de compreender seja o que for.”10

O peso da história da doença mental reflecte-se em estigmas na forma de a tratar e abordar socialmente. Por se tratar de uma designação de difícil diagnóstico, especula-se “que muitos ‘doentes’ assim designados pelos psiquiatras não passam de pessoas com comportamentos que são variantes do normal, mesmo com aspecto mais ou menos

4 CASTEL Robert, A ordem psiquiátrica: A idade de ouro do alienismo, pág.21 5 FOUCAULT Michel, História da loucura, pág.94

6 Ibid., pág.94 7 Ibid., pág.464-466

8 MARQUES-TEIXEIRA João, Poder e Psiquiatria: velhas questões, novos desafios, pág.8 9 CAMPENHOUDT Luc van, Introdução à análise dos fenómenos sociais, pág.65 10 Ibid., pág.47

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bizarro.”11 Uma vez manifestada por experiências consideradas inaceitáveis na nossa sociedade, como a falta de produtividade, o não- individualismo, etc., e de difícil percepção da causalidade, a doença mental é marginalizada.

construção de uma arquitectura terapêutica

O espaço