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CAPÍTULO II: ANÁLISE DAS TELAS DE MESTRE ATAÍDE

2. Algumas linhas sobre Mestre Ataíde

3.1. O Batismo de Cristo

3.1.2. Análise do plano de conteúdo

Iniciamos a análise dessa tela pelos percursos figurativos, do mesmo modo como procederemos com as demais. Tal opção, conforme anunciamos, decorre do fato de estarmos lidando com um texto visual (icônico) em que as figuras constituem os

elementos que primeiro depreendemos no contato com o texto. Remeteremos as figuras (e os temas subjacentes a elas) à(s) categoria(s) semântica(s) de base (nível fundamental), passando rapidamente pelo nível narrativo, de modo a traçar, em suas grandes linhas, o percurso gerativo de sentido.

Na tela do Batismo, encontramos uma figurativização que alude ao plano celestial – e que poderíamos chamar de percurso figurativo celestial –, ao plano terreno (percurso figurativo terreno) e também à transição ocorrida de um plano ao outro, de modo a dividir o quadro em metades intermediadas por um espaço central. Dessa maneira, podemos dizer que ocorrem duas – três, se considerarmos o espaço intermediário – seqüências figurativas devido à tentativa de representar os dois planos de existência apregoados pelo discurso religioso barroco.

Temos no espaço inferior figuras do mundo terreno, do qual o Cristo é um membro integrante: homens, plantas, rio, cidade. São figuras que remetem ao mundo concreto, familiar à existência real do homem barroco, o que ajuda a construir uma ilusão referencial, ao mesmo tempo em que localiza, poderíamos dizer “geograficamente”, uma parte dessa narrativa.

Já no espaço superior, ocorrem elementos de conotação simbólica: luz, pomba do Divino, triângulo da Santíssima Trindade, anjos, esses últimos ainda bem próximos do espaço intermediário (o da representação do batismo, em que João derrama água sobre a cabeça do Cristo), já que eles formam um “corredor” que permite ascender ao espaço propriamente divino (aquele configurado pela presença do Espírito Santo). Notemos que essas figuras são combinadas a partir das que imitam o mundo real: as figuras de asas e de crianças, articuladas entre si, geram os anjos, com a figura de uma pomba temos o Divino Espírito Santo. Através dessa articulação figurativa, elementos

de carga simbólica, tematizados abstratamente, ganham uma representação que os integra à ilusão referencial construída no/pelo espaço inferior).

Já na altura média (espaço intercalado pelos outros dois), temos o próprio ato do batismo: o braço estendido de João, a água, a cabeça de Cristo tocada pela unção e por uma luz divina. Esses elementos são os que nos permitem depreender, figurativamente, a passagem de Jesus da /humanidade/ para a /divindade/ (“movimento” relacionado ao nível fundamental), como veremos. A figura de João Batista é um elemento crucial da separação desses espaços e também na relação entre eles: seu braço estendido e alongado é o que separa as duas metades do quadro, ou o plano terreno e o celestial; ao mesmo tempo, é com o braço que João estabelece a comunhão com o espaço divino ungindo o Cristo com água.

Em se tratando de uma isotopia religiosa que focaliza um dos sacramentos mais valorizados pela discursividade barroca da Contra-Reforma, o artista ancora sua enunciação nas categorias ELE-LÁ-ENTÃO, gerando, pela debreagem enunciva, um efeito de verdade atemporal relacionado ao batismo, o qual evoca a oposição temática perdição vs salvação12. Trata-se de uma perdição da alma no Além, relacionada ao estado de paganismo devido à ausência do batismo, e o de salvação, oferecido pelo primeiro sacramento recebido pelo cristão. Essa tematização é construída no texto através das figuras às quais aludimos no parágrafo anterior.

No texto/tela, Jesus nos oferece o exemplo da importância do batismo. Assim, no nível narrativo, vemos que João, dotado de um dever-fazer (que sobredetermina o querer) e de um saber e/ou poder-fazer (competência), executa a performance de ungir

12 Para permitir a distinção entre as diferentes categorias da análise, utilizamos recursos tipográficos diferentes: letra normal entre barras para marcar a categoria semântica de base (o que já é de praxe nas análises semióticas), itálico para sinalizar a(s) oposição(ões) temática(s) e letra maiúscula, como se verá, para as categorias do plano de expressão (notações nossas). Lembramos aqui a posição que assumimos, na esteira de Fiorin (2003), de tomar as relações semi-simbólicas como incidindo sobre todos os níveis do percurso gerativo de sentido (plano de conteúdo) na sua homologação com as categorias do plano de

Jesus com a água13, levando-o à conjunção com o objeto-valor (Ov) Batismo e com os valores positivos nele inscritos. O resultado dessa performance recai principalmente sobre Jesus, que passa a ser assistido diretamente pelo Espírito Santo.

Na base dessa narrativa, já no nível fundamental, encontramos a categoria semântica de base /humanidade/ vs /divindade/, que representamos no quadrado semiótico a seguir, já articulando essa categoria à oposição temática apontada anteriormente:

/humanidade/ /divindade/ perdição salvação

/não-divindade/ /não-humanidade/ não-salvação não-perdição

O ator Cristo executa um percurso euforizante, partindo da humanidade para chegar à divindade (ou para confirmar a divindade que lhe é previamente atribuída). Assim, embora na cultura ocidental, Cristo represente o termo complexo que reúne os contrários /divindade/ e /humanidade/, no quadro ora em análise, é sua condição humana que é ressaltada, uma vez que ele, como qualquer mortal, depende do batismo para ascender ao divino.

Embora João Batista seja celebrado pelo catolicismo como santo, ou, grosso modo, como uma divindade, ele, a exemplo do Cristo, remete à /humanidade/, já que, no quadro, é ressaltada apenas sua natureza humana. Os anjos, por sua vez, enquanto

13 Vemos, na parte inferior da tela, que João Batista tem os pés plantados na terra, enquanto os pés do Cristo se encontram imersos na água do rio. Trata-se aqui da água como elemento da natureza, que reforça o caráter icônico do espaço terreno e se opõe à água (benta) do batismo que propicia a comunhão com o divino.

termos neutros implicam /não-humanidade/ + /não-divindade/. Conforme foi dito anteriormente, eles formam uma espécie de corredor que permite ascender ao Espírito Santo (a pomba branca), representando, assim, o caminho intermediário a ser percorrido para a /divindade/. Essa rápida abordagem dos elementos que compõem o percurso gerativo de sentido pode ser complementada com a análise do plano de expressão, o que apresentamos a seguir.

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