• Nenhum resultado encontrado

ANÁLISE DA LEGALIDADE URBANA BRASILEIRA

Todas estas circunstâncias e situações mencionadas como sendo característica do trecho investigado do Campeche Sul, encontra paralelo em diversos casos brasileiros. Ou seja, a realidade do Campeche, nada mais é do que a realidade brasileira repercutida em diferentes lugares, cada um com suas respectivas peculiaridades. A partir daqui, discorre-se para discussão do âmbito nacional referente a reprodução da legalidade urbana.

Para DOURADO (2003, p. 472), a própria legislação urbanística brasileira estabeleceu padrões de construções impróprios para toda população, face à realidade econômica da maioria. Quem consegue se adequar aos padrões impostos pela legislação e pelo Poder

Público, o que demanda dinheiro, constrói nos locais apropriados e habita a cidade legal. Aqueles que não possuem condições de se estabelecer dentro dos padrões urbanísticos se concentram nas periferias e acabam ignorando as normas vigentes, a partir daí “desencadeia- se a ocupação irregular. Formando-se uma linha imaginária entre a cidade legal e a cidade ilegal”. Estas colocações verificam-se no trecho investigado pela ocupação de AER.

Em análise da legalidade urbana, SOUZA (2003, p. 415) traz a definição de ocupações irregulares, como sendo aquelas que passam pela Prefeitura, obtêm alvarás de licença de construção, todavia, não obedecem às normas formais, no sentido literal da palavra, ao deixar de obter o habite-se. A falta de licença para ocupação configura outra forma de ilegalidade, qual seja aquela que está em desconformidade com a regra. As ocupações informais, são “aquelas que se originam e se consolidam por processos ‘espontâneos’40, à margem das normas urbanísticas e de edificações estabelecidas pelos códigos e leis brasileiras”. Assim essas ocupações, por estarem fora da forma prescrita em lei são ilegais por natureza, pois não obedecem às normas e critérios urbanísticos estabelecidos em lei. Já CAVALLAZI e ARAÚJO (2004, P. 234) ressalvam que a informalidade não equivale, necessariamente à ilegalidade, uma vez que por falta de atuação do Poder Público com serviços públicos como saneamento e acessibilidade, inúmeras pessoas ficam sujeitas a moradia informal, por falta de alternativa.

Ademais, MARICATO afirma que a ilegalidade permite a aplicação de conceitos como exclusão e segregação e ainda completa:

A legislação urbana não surgirá senão quando se torna necessária para a estruturação do mercado imobiliário urbano, de côrte capitalista. Os Códigos Municipais de Posturas, elaborados no final do século XIX tiveram um claro papel de subordinar certas áreas da cidade ao capital imobiliário acarretando a expulsão da massa trabalhadora pobre do centro da cidade. A nova normatividade contribui para a ordenação do solo de uma parte da cidade, mas também contribui, ao mesmo tempo, para a segregação espacial. (1996, p. 54)

A irregularidade/ilegalidade não se manifesta somente nas ocupações pelos pobres, as maiores demonstrações de afrontamento à legislação estão também no meio das classes mais altas. Assim sendo, ROLNIK (apud SOUZA 2003, p. 182) coloca que “no mesmo vasto campo de irregularidade, construir sem licença é hoje considerado muito menos ilícito do que morar em favelas”. Em virtude disso, os grandes empreendimentos quase sempre não

40

Esta ilegalidade gerada pelo processo dito ‘espontâneo’, significa que não houve a realização dos trâmites

obedecem às regras oficiais, porém, a pressão do mercado imobiliário é tão forte que o governo acaba regularizando essas construções (PERRY apud LINS, ibid, p. 297).

Conforme VILLAÇA (1998, p. 320), a população de mais alta renda acaba trazendo para perto de si o centro da cidade, ou seja, transforma ou amplia uma área mais afastada até torná-la central, através da valorização do bairro e da mudança de status do mesmo, que passa a não ser mais periférico ou muito afastado da cidade. Apesar da maioria deles ser ilegal, no entanto, como a localização não era muito destacada, logo são legalizados; afirmações pertinentes ao trecho investigado.

O mercado imobiliário altamente especulativo não encontra obstáculos para sua atuação, sempre vislumbrando seus futuros consumidores, pois, agregado ao investidor está o proprietário privado que não abre mão de morar em lugares agradáveis e valorizados, o que segundo MARICATO (2002, p. 83) “é a expressão ideológica de um processo social e econômico”, mesmo à custa da ilegalidade.

As ocupações fora da lei, seja pelos pobres, ou pelos ricos, costumam surgir nas terras desprezadas pelo mercado imobiliário formal e em áreas caracterizadas por favelas ou loteamentos ilegais, em áreas públicas ou ambientalmente ricas em diversidade natural, mas que se tornam frágeis pelo tipo de ocupação devastadora que nelas incide, o que pode ser visto na ocupação urbana de APP no trecho Campeche Sul. Nestes locais, a lei não é aplicada, exceto se os moradores próximos que podem ter seus imóveis desvalorizados se mobilizarem, enquanto que nas regiões valorizadas o poder de polícia é exercido e as normas aplicadas (MARICATO, 2002, p. 83), evitando ocupações que possam trazer vizinhos indesejáveis.

Através desses conceitos descritos, vê-se que a intenção do legislador é simplesmente adequar todos a um ordenamento jurídico e urbanístico que teoricamente busca garantir igualdade social, preservação do meio ambiente e um direcionamento da expansão e transformação do espaço urbano. Contudo, CHAVES (2005, p. 85) esclarece que “a maior representação do grau ideológico da legalidade capitalista é aquela que consagra todos os destinatários das normas jurídicas como indivíduos que devem ser submetidos a um determinado ordenamento estatal”. Para Terry Eagleton (apud CHAVES, 2005, p. 85) “o direito atua como forma de mistificação, ocultando o verdadeiro conteúdo das desigualdades sociais atrás de uma mera forma legal”.

Relevante a esta questão, cabe aqui uma colocação bastante importante de Henri Lefebvre (apud GARCÍA NUNES, 2007, p. 21), em que o autor rechaça a natureza sistemática do urbano:

Naturaleza y cultura se reforman de manera conflictiva y no armónica. El urbanismo no es sistema, sino una ideología. Si el espacio sigue conservando cierto aspecto neutro, ésto se debe al hecho de haber sido objeto de antiguas estrategias en las cuales no siempre es posible encontrar rastros, ya que, en cualquier caso, el espacio forma parte de la desigualdad entre los sectores sociales

GARCÍA NUNES reafirma a colocação acima e completa referindo-se ao direito brasileiro e às normas ambientais e urbanísticas aplicadas à cidade, caracterizadas como responsáveis pelas ilegalidades e segregação sócio-espacial:

El papel del derecho en este proceso histórico hegemónico está despertando la mirada crítica de juristas, sociólogos, arquitectos, urbanistas, etc. El orden jurídico que define patrones de legalidad es la herramienta más potente de producción y reproducción de la informalidad urbana. A través de ella, son definidos e legitimados patrones que distinguen la ciudad legal de la ciudad clandestina, y condena parte de la cuidad “real” a la invisibilidad. Por un lado, la definición doctrinaria y la interpretación dominante de los derechos de propiedad, prevista en la Constitución, ha resultado en un patrón esencialmente especulativo de crecimiento urbano, que combina la segregación social, espacial y ambiental; por otro lado, la ausencia de leyes urbanísticas – o su existencia basada en criterios técnicos “irreales” que desconsideran los impactos socioeconómicos de las normas urbanísticas y reglas de construcción – han tenido un papel fundamental en la construcción de la ilegalidad y segregación (2007, p. 21).

Ou seja, a existência da lei pressupõe sua observância, mas também sua negação. Aqueles que não conseguem se enquadrar nos requisitos legais acabam ficando fora da lei.

Para MARICATO (2002, p. 70), para que se possa analisar e administrar um município é necessário conhecê-lo e, sobretudo, reconhecê-lo, ou seja, admitir as partes ocultas, ilegais e segregadas, reconhecendo que existem problemas, falta de recursos e uma grande disparidade social. De tal modo que ROLNIK (1994. p. 358) inclusive considera a produção de assentamentos precários, irregulares e ilegais como uma forma específica e particular de urbanização, e não como algo que saiu do sistema, tornando-o imperfeito.

Essas distinções favorecem o desequilíbrio social e a cidade passa a ter dois “mundos”, um deles, valorizado, desenvolvido e servido de infra-estrutura, ao passo que o outro, sofre pela falta de serviços, de oferta de moradia e de respeito à cidadania, apesar de ambos poderem ter a mesma origem de ocupação (a ilegalidade), como pode ser verificado no Campeche Sul.

As contradições entre a norma e a ocupação, muitas vezes, são identificadas já na própria legislação, que apresenta lacunas ou incoerências que jamais poderão ser cumpridas como é o caso do próprio Plano Diretor dos Balneários que considera AVL uma área

interesses, principalmente da camada mais alta da sociedade. Foram elaboradas pelo menos três legislações no município de Florianópolis com intuito de legalizar construções irregulares. Estes acontecimentos representados pelas legislações que legalizam/regularizam atividades ditas clandestinas, favorecem para o incentivo de outras construções com alguma irregularidade, haja vista, têm a expectativa, por vezes concretizada, de que serão legalizadas. E essa abertura de precedentes fortalece o desequilíbrio urbano-ambiental da cidade.

Deste modo, prevalece no Brasil, a falta de perspectivas quanto à regularização fundiária e manutenção do meio ambiente equilibrado à luz da Constituição Federal de 1988 e demais leis ambientais e urbanísticas em vigor. E acima de tudo em respeito àqueles que apenas querem viver dignamente e servidos de seus direitos.