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Análise do II Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo: política pouco pública e muito estatal

3 LISTA SUJA: AÇÃO DE REPRESSÃO ECONÔMICA DO II PLANO NACIONAL PARA ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO

3.2 Análise do II Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo: política pouco pública e muito estatal

De acordo com Maria Ozanira Silva e Silva, toda política pública é uma forma de regulação ou intervenção na sociedade. Trata-se de um processo que articula diferentes sujeitos, que apresentam interesses e expectativas diversas, representando assim um conjunto de ações ou omissões do Estado, decorrente de decisões e não decisões, constituída por jogos

de interesses, tendo como limites e condicionamentos os processos econômico, político, social e cultural de uma sociedade historicamente determinada.254

Nesse sentido, significa afirmar que uma política pública se estrutura, se organiza e se concretiza a partir de interesses sociais organizados em torno de recursos que também são produzidos socialmente. Seu desenvolvimento se expressa por movimentos articulados e, muitas vezes, concomitantes e interdependentes, constituídos de ações em forma de respostas, mais ou menos institucionalizadas, a situações consideradas problemáticas, materializadas mediante programas, projetos e serviços.255

Para Lourdes de Maria Leitão Nunes Rocha, as políticas públicas são concebidas como a ação do Estado na mediação de interesses e do poder de diferentes sujeitos. Através dessas políticas ocorre a intervenção ou a abstenção de intervenção do Estado na realidade.256

Toda política pública é tanto um mecanismo de mudança social, orientado para promover o bem-estar de segmentos sociais, principalmente os mais destituídos, devendo ser também um mecanismo de distribuição de renda e de equidade social, vista como um mecanismo social que contém contradições. Assim, Maria Ozanira Silva e Silva contrapõe-se à percepção da política pública como mero recurso de legitimação política ou de uma intervenção estatal subordinada tão somente à lógica da acumulação capitalista. Nesse contexto, a política pública é uma resposta decorrente de pressões sociais a partir das ações de diferentes sujeitos, que sustentam interesses diversificados. Portanto, recusa-se qualquer raciocínio linear e consensual, pois falar de política é falar de diversidade e de contradição.257

Nessa mesma linha de raciocínio, Lourdes Leitão afirma que sendo ações governamentais, as políticas públicas se constituem em um processo social, histórico, inacabado e complexo.258

Nesse contexto, se pensarmos nas garantias dos direitos sociais a partir de uma perspectiva realmente garantista, democrática e participativa, falta a essas políticas voltadas

254 SILVA, Maria Ozanira da Silva e. Avaliação de políticas e programas sociais: uma reflexão sobre o conteúdo teórico e metodológico da pesquisa avaliativa. In: Pesquisa avaliativa: aspectos teórico- metodológicos. São Paulo: Veras Editora: São Luís, 2013, p. 20.

255 Id., 2013, p. 20.

256 ROCHA, Lourdes de Maria Leitão Nunes. O judiciário como sujeito do processo das políticas públicas: função social e papel político. Revista de Políticas Públicas, vol. 4, n. 1/2, 2000, p. 01.

257 SILVA, Maria Ozanira da Silva e. Avaliação de políticas e programas sociais: uma reflexão sobre o conteúdo teórico e metodológico da pesquisa avaliativa. In: Pesquisa avaliativa: aspectos teórico- metodológicos. São Paulo: Veras Editora: São Luís, 2013, p. 20.

258 ROCHA, Lourdes de Maria Leitão Nunes. O judiciário como sujeito do processo das políticas públicas: função social e papel político. Revista de Políticas Públicas, vol. 4, n. 1/2, 2000, p. 01.

para a erradicação do trabalho escravo, especialmente real e expressiva participação popular, na sua formulação, implementação e controle.

Efetivamente, se dermos à participação popular, a partir de uma perspectiva realmente garantista e democrática, participativa, a dimensão de verdadeiro pressuposto de legitimidade e de eficiência das políticas e programas voltados à eliminação da escravidão, tomando como certo que a efetiva interação de uma norma ou de um programa com os seus destinatários, e a atuação de cada um deles na defesa dos seus direitos e na defesa dos direitos de todos, é a melhor garantia que pode ser atribuída aos direitos sociais.

Nesse sentido, o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo deixou a desejar, e não deu, nem poderia dar, de fato, conta do problema: não é um projeto coletivo e amplamente popular, não trata de privilegiar as demandas sociais dos setores mais debilitados da sociedade a partir de políticas eficientes de geração de emprego e renda e da redução das desigualdades sociais e regionais, e não está relacionado à construção de um modelo de desenvolvimento mais justo e democrático.259

Nesse sentido, nas palavras de Rodrigo Garcia Schwarz “as políticas de combate à escravidão contemporânea no Brasil, são ainda pouco públicas e muito estatais”. Os poderes de turno reproduzem, assim, de forma consciente ou não, certa ética colonizadora do Estado sobre a sociedade civil, despojando os atores privados da qualidade de titulares da soberania e retirando das pessoas a possibilidade de exercerem outras formas de ação que não através do Estado, e de forma absolutamente dependente dele.260

Ainda que o papel das garantias institucionais – e, portanto, a ação dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário – demonstre-se essencial para dotar de eficácia os direitos civis, políticos e sociais, todo e qualquer programa de garantias, por mais exaustivo que seja, demonstra-se incompleto, e portanto, incapaz de dotar efetividade e eficácia, por si só, os meios destinados à realização da cidadania integral, sem a existência concorrente de múltiplos espaços de expressão e pressão popular capazes de assegurá-los não apenas através dos poderes estatais, mas além do Estado ou mesmo contra ele, através da participação ativa dos diversos atores sociais e o seu comprometimento com as decisões que lhe dizem respeito.261

Isso porque as políticas públicas têm na efetiva participação popular na sua formulação, implementação e controle, substancial pressuposto de legitimidade e eficiência, e

259 SCHWARZ, Rodrigo Garcia. Terra do trabalho, terra do negócio: o trabalho escravo contemporâneo na perspectiva (da violação) dos direitos sociais. São Paulo: LTr, 2014, p. 280.

260 Id., 2014, p. 280. 261 Id., 2014, p. 280.

portanto, transcendem aos instrumentos normativos do programa de governo, inserindo-se num plano mais amplo.

O problema que pontua-se em relevo, é a habitual tendência burocratizante e centralizadora do processo decisório de políticas, que retira à cidadania a efetiva oportunidade de participação e debate sobre os temas que lhe dizem respeito. No Brasil, em particular, os institutos tradicionais da democracia têm vinculado as políticas públicas a uma ideia reduzida de democracia, de simples técnica de procedimentos institucionais.

Somado a esse contexto, no entanto, somente a falta de vontade política ou a impunidade não explica a persistência do trabalho escravo, na medida em que a utilização de trabalho escravo contemporâneo é um instrumento utilizado pelo modo de produção para facilitar a acumulação em seu processo de expansão ou modernização262. Ou seja, a principal razão para a perseverança do trabalho escravo é que este crime está ligado às estratégias do capitalismo para obtenção de lucro com menor custo possível (a lógica do mercado), isto é, as empresas economizam com encargos trabalhistas e conseguem se tornar mais competitivas no mercado.

Por outro lado, sabe-se que a inserção da questão do trabalho escravo nas agendas das empresas está ligada ao medo de ter suas imagens rechaçadas por seus consumidores, acionistas e investidores, através da publicação na Lista Suja do Trabalho Escravo. No entanto, é demasiadamente importante que o trabalho escravo seja um item de preocupação por elas, mesmo que a motivação para isso esteja ligada aos seus habituais cálculos “custo-benefício”. Assim, nas palavras de Graziela Rocha “queiramos ou não, enquanto um novo modelo econômico não despontar, é necessário que distintos atores sociais atuem juntos para modificar a „lógica do mercado‟, de maneira a fazer com que grande seja o dano à imagem das empresas, para que não seja lucrativo manter em funcionamento um sistema produtivo alicerçado em tal desrespeito aos direitos humanos.”263

Nesse sentido, o aumento da pressão social conseguiu criar uma situação em que ignorar a existência do trabalho escravo ou tentar negar sua participação no seu financiamento tornou-se mais dispendioso que simplesmente tomar atitudes para efetivamente controlar suas cadeias produtivas no enfrentamento do trabalho escravo no Brasil.

262 SAKAMOTO, Leonardo Moretti. Os acionistas da casa-grande: a reinvenção capitalista do trabalho escravo no Brasil contemporâneo. 2007. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2007, p. 08.

263 ROCHA, Graziella; GOIS, João Bôsco. Da Lista Suja às ações reparadoras: um estudo sobre o processo de responsabilização de uma siderúrgica pela existência de trabalho escravo em sua cadeia produtiva. In: Trabalho escravo contemporâneo: um debate transdisciplinar. Rio de Janeiro: Mauad, 2011, p. 265.