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momento conta com as considerações decorrentes da análise em grupo.

No segundo momento – análise dos grandes temas – procurou realçar-se os traços que foram considerados como mais salientes nas narrativas dos sujeitos. É importante referir que for am modificados e omitidos alguns nomes de pessoas e lugares, as quais pudessem ser consideradas como informações para se identificar os sujeitos em questão.

1. João F.

A. Análise da Narrativa

Após a solicitação feita pela entrevistadora, pela pergunta inicial, incidindo sobre uma questão que remonta à identidade (“gostaria que me falasse de como é ser guineense e viver aqui, em Portugal…”), João introduz apenas que nasceu lá, deslocando logo de seguida o tema para a sua genealogia familiar, até à altura dos seus avós. Aqui, compreende-se que a questão sobre si-mesmo é voltada para o lugar concreto da sua origem e encerrando, desde logo, uma continuidade no assunto. Neste movimento de deslocamento para uma história que o precede, faz-se perceber no discurso de João os vários acontecimentos que surgem, especialmente inscritos em momentos de mudança da vida dos seus pais (“saiu de professor… foi… como chefe dos correios”; “a minha mãe passou como telefonista”; quando se deu a independência”). Nestes momentos de mudança, denota-se uma temática muito centrada da época colonial, donde se compreende que João, por meio de colagem às entidades paternais, coloca-se numa posição privilegiada (“altos cargos”) que está associada a esta realidade colonial (colocando-se, desta forma no lado de colonizador), por meio de associação ao seu “pai branco”. Notamos, que a profissão do seu pai (“chefe de X.”) não é um alto cargo, o que se torna, de qualquer das formas, secundário para uma análise; o importante aqui, como foi compreendido na análise de grupo, é a idealização da figura paterna que João faz.

Um ponto de viragem que João identifica na sua narrativa é a morte do seu pai, embora esta circunstância não seja evidentemente expressa: “ele teve um acidente de viação (…) a minha mãe veio (…) receber o subsidio de viuvez”. Neste enunciado, no qual se parece traduzir por um desligamento, um mecanismo de evitamento às circunstâncias da vida do pai (não só esta da sua morte, mas também por referir, sem explorar a ideia, o não regresso do seu pai a Portugal, porque “ele não fez mal a ninguém”), João evidencia uma mudança no funcionamento do agregado familiar (“a vida nos complicou…”). Sobre este acontecimento, a mãe de João “começou a mandar os filhos, um por cada vez” cá para Portugal, ficando ao encargo de João ocupar o lugar do pai: “fiquei lá a trabalhar (…) a aguentar o resto da família”. Relativamente à fratria de João, este indica inicialmente uma constituída por dois sujeitos (“nasceu a minha irmã mais velha e o segundo filho sou eu”), passando, neste momento do seu discurso, a constituir-se uma fratria de cinco – ele inclusive: “veio a minha irmã, a Rosária, depois veio o meu irmão João, o JóJó, depois veio a filha e veio o meu irmão mais novo”. Este movimento é característico de João, no qual será expresso novamente e lido com maior atenção posteriormente.

Em 1981/2, João, que nesta altura trabalhara como taxista, sofre (também como o seu pai) um acidente de viação, onde morreram três pessoas. Nesta altura é detido pelo ocorrido, não elaborando muito mais: ele foi “preso”. Por este motivo, vem viver para Portugal, de modo a fugir às represálias do acidente. Vem, por um lado, devido ao concebimento de uma Amnistia, e também, por outro lado, como refere, porque a mãe assim o diz: “tu também vais para Portugal”. Surge uma questão associada a estas “ordens” respeitantes à mãe: mencionado por João, a mãe manda os filhos para Portugal, e porventura João é o único filho que permanece na Guiné; somente quando é exigido pelas condições externas , é que João imigra para Portugal. Este Portugal é dúbio, persistindo a incerteza (neste contexto) se é um lugar sentido como melhor, ou se é um outro lugar diferente, devido à expulsão do seu lugar de origem. Neste seguimento, observamos uma rápida passagem entre cá e lá: João debruça-se sobre os aspetos quando já se instalara em Portugal, referenciando primeiro o curso que fizera (“vim aqui e fui tirar um curso de mecânico, no Centro de F. S.”), depois onde trabalhara (“trabalhei nos bombeiros voluntários”) para depois aludir as suas pequenas deslocações migratórias (“vim aqui (…) depois emigrei para a B. [país da Europa] (…) voltei para Portugal”). Estes pontos que João vem falando, revelam uma não-inscrição no seu lugar: João vem evidenciando passagens abruptas de um e outro lugar no seu discurso, solicitando assim a ideia de que João parece residir num lugar escuro.

Posteriormente, João coloca em evidência um casamento com “uma rapariga de São-Tomé” que dá origem a duas filhas, explorando seguidamente o percurso exclusivamente profissional destas. A Alexandra, procuradora no M inistério Público no Tribunal da M . e a segunda, a Diana, formada em M arketing. Logo a seguir, referencia mais duas filhas, a Luísa e a Catarina para depois fazer menção a mais uma filha e um filho. Onde inicialmente surgia duas filhas, passamos a conseguir identificar seis filhos, para posteriormente, aferir a existência total de oito filhos. No mesmo movimento de se enquadrar numa fratria de dois, conseguimos transpor a mesma lógica para os seus filhos: primeiro, encontramos a existência de dois (ele e a irmã), para passarem a cinco (“nasceu a minha irmã mais velha e o segundo filho sou eu” (…) “veio a minha irmã (…) depois o Jójó (…), depois a filha e o meu irmão mais novo”); agora, relativamente aos filhos, observamos a passagem da existência de duas, para oito. Esta característica é reflexo do modo como organiza os elementos da realidade externa, ou seja, um molde funcional de, se se pode assim apelidar, de “destruturação restitutiva”: primeiro, segmenta o grupo de semelhantes, para depois restituir quem realmente o grupo é (primeiro são dois para serem quatro; primeiro são dois para serem oito).

Neste momento da entrevista, fora deslocado o foco para a questão da nacionalidade, a qual iremos observar, que é uma temática substancialmente importante no seu discurso. Deste modo, introduz-se na narrativa a questão do seu filho mais novo, o Filipe (de catorze anos), sendo o único filho que não tem nacionalidade portuguesa (tendo nacionalidade guineense). João descreve quais as circunstâncias que levaram ao nascimento do Filipe: conhecera uma rapariga da Costa-do-M arfim que estaria na Guiné por motivos turísticos. Esta rapariga, que falava “só Francês e Inglês”, era uma estrangeira no país, tal como João se identifica a si mesmo: “Já ninguém me conhecia, portanto já era também um estranho”. Esta passagem releva uma forma de João se colocar relativamente à sua origem. Guiné, onde nascera, é um lugar que já não o reconhece, como ele também não o reconhece dentro de si: este lugar de origem em João parece ser um lugar de ausência (não é de cá, nem de lá).

O palco de acontecimentos com a mãe de Filipe é também curioso: primeiro, parece surgir a imagem de dois sujeitos num lugar desconhecido, donde estas duas personagens são, também, desconhecidas entre si; depois, a mãe, não pode ficar com a criança porque a “a família, escolheram o marido para ela”. Esta mãe é muçulmana e como ele refere “ali os muçulmanos, arranjam os maridos”. Através deste marido, que parece ser um mediador/condutor para expressar a sua posição face ao filho, é que a mãe não pode ficar com

o seu filho Filipe. M ais ainda, esta criança surge desde o início com uma carga simbólica muito vincada: “ele é filho de branco. Ele é negro, mas é filho manchado”. Coloca-se a hipótese do que aparenta ser este filho branco3, e qual a representação deste filho manchado.

Filho branco, por extensão ao seu pai branco? Falamos de uma continuidade transgeracional (visto que o pai de João era branco)? Ou pelo contrário, é um filho não desejado? Ou mais , é um filho excluído da sua linhagem que o João concebe em si-mesmo?

É neste lugar incerto que nasce Filipe (fica-se na dúvida se nasce na Costa-do-M arfim ou na Guiné). Filipe, por sua vez é também considerado um estranho, como se verá mais adiante. No seguimento da entrevista, compreendemos que este “bebé” acabaria por viver com os familiares de João, mais precisamente, com o seu primo. Até à data de chegada deste filho (abril de 2016), João vai relatando o quão difícil foi trazê-lo para Portugal, burocraticamente falando (“mas para trazer o miúdo não é fácil. De um país para outro país. É preciso documentos, é preciso tribunal (…) tratar do passaporte, tenho que ir ao tribunal de menores, o tribunal tem que saber do paradeiro da mãe.”). Neste sentido, continua a falar de Filipe, sempre com um olhar esterilizado sobre a relação entre os dois: todas as componentes a que remete são de cariz burocrático, sobre a autenticação e formalização da sua vinda para Portugal, sobre uma questão de estatutos (quer ao nível da nacionalidade, quer ao nível de um estatuto na relação). João atenua esta relação de ausência através do apoio monetário: “eu mandei dinheiro para o meu primo naquela altura, trezentos mil francos, que dá à volta de quinhentos euros, cem contos, para cuidar para ajudar com aquilo que eu puder”. Há medida que Filipe crescia, João evidencia que ele “mostrava interesse em vir para cá”, não obstante a precariedade na forma para trazê-lo para Portugal (“mas para trazê-lo… tratar do passaporte, tenho que ir ao tribunal dos menores, o tribunal tem que saber do paradeiro da mãe…. Essas coisas todas e a mãe não que já está noutro país, vai vir outra vez e não vai querer vir. O marido dela não vai deixar ela vir.”). Aquando lá estava, João arranja forma de colocar o menino numa escola portuguesa (“o meu filho foi lá estudar. Ficou naquela escola portuguesa. Foi ali que ele começou a desenvolver as capacidades”).

João refere que “se o miúdo já for português eu já posso vir com o miúdo sem impedimentos de qualquer entidade da Guiné, porque o miúdo já tem nacionalidade portuguesa”. Esta questão da nacionalidade, tal como fora referido, parece ser importante no seu discurso,

3 Tive a oportunidade de conhecer o Filipe na associação onde foram realizadas as entrevistas. A tez de Filipe é

porque se expressa como um elemento de semelhança – ter a mesma nacionalidade que o pai tem.

Após a “autorização” burocrática sobre a vinda do Filipe, “os irmãos, os meus filhos todos juntos, juntaram o dinheiro, todos… e pagaram o bilhete, e a minha irmã veio com ele”, irmã esta que trata do processo quase integral da vinda do mesmo para Portugal. Esta passagem é relevante (e não será a única, como veremos adiante): antes de mais, a deslocação do seu filho para junto de si é marcada fortemente por um impasse da s ua parte, à qual desloca a raiz do problema nas causalidades externas e, portanto, sendo invariavelmente uma dificuldade trazê- lo para cá. Esta ideia, pode surgir devido ao facto de Filipe ser guineense e, portanto, sendo este um desconhecido da sua terra natal, pode ser um desconhecido de si-mesmo. Elaborado de uma outra forma seria: quem é, realmente, este meu filho?

Em segundo lugar, a presença do seu filho parece ser transtornante no sentido em que, de um aparato familiar seu, de uma continuidade sua (este seu filho), gera-se uma vivência dolorosa, associada a um mal-estar físico. Colocou-se a ideia (na análise de grupo) que, através da ausência de um lugar, expresso na latência da narrativa, surgem os acontecimentos trágicos. Já em Portugal, inscrito na escola, João é chamado para falar com o reitor de Filipe, ao qual este refere que o “o miúdo é inteligentíssimo… Ainda não vi um miúdo com uma capacidade… Veio de África com uma capacidade”. O fio-condutor sobre esta temática é alterado radicalmente, pois João introduz os problemas físicos que teve (“dá-lhe todo o apoio que este miúdo tem a cabeça… vai muito longe… eu também, apanhei dois AVC”). Desta forma, sobre a conversa relativa ao Filipe, João inicia o discurso sobre os AVC’s. Sobre esta passagem, surge na análise da entrevista em grupo que, aquando a narração de algum elemento que caracteriza a sua vida (neste caso, a vinda de Filipe) João patenteia a existência de uma outra coisa trágica: após elevar (-se, através da profissão dos seus filhos e neste caso em particular, sobre a inteligência do seu filho mais novo) vem toda uma outra parte latente que está longe de ser superlativa.

Neste seguimento, volta à temática dos filhos: todos eles, são de nacionalidade portuguesa e como veremos a seguir, são transportados por João para outro lugar. No caso do Filipe, a exceção relativamente à nacionalidade, João refere que “se a nacionalidade do meu filho sair, eu vou mandar o miúdo para Inglaterra”. A ideia que subjaz esta premissa apela à integração de um espaço integro, fecundo. Por outras palavras, o assentar num certo lugar é uma dinâmica desconhecida, ou seja, uma labilidade na integração do lugar dentro do seu espaço

mental. Ao mesmo tempo, observamos que do outro lado é melhor: “envio-lhe para ao pé da irmã (…) Na Inglaterra tem mais capacidade (…). Esta Inglaterra aqui contada, é também um lugar que João trilhou. Lá, também ele estivera imigrado, mas no seu discurso coloca-se uma diferença: esteve lá, como português, como se fosse Portugal. Para João parece existir duas formas de assimilar este lugar (sempre desconhecido): a existência em simultâneo de um cá e de um lá; um espaço bifurcado onde não há forma de integrar e a existência de um lá, que em comparação com este cá, é sempre melhor.

Neste momento da entrevista, é colocado a seguinte questão: “como é estar com o Filipe cá?”. Sobre a resposta recai o seguinte “eu criei os meus oitos filhos com a companheira, que tem também três filhos”. No seguimento, fala sobre as condições que levaram até começar a viver com a atual companheira, ficando silenciosamente de parte a relação com o seu filho. Relata sobre estes três filhos da atual companheira, donde “ordena” o primeiro a rumar “ para Inglaterra” e “tirar um curso de língua”. Relativamente ao segundo filho, João coloca-o numa posição de escolha “ou ir trabalhar ou vou-te meter na tropa”. Sobre o último filho, o mais novo “o irmão lá de Inglaterra, optou-se por mandar buscar o outro”. É neste momento que introduz em cena o seu filho Filipe, voltando á ideia de ele se mudar para Inglaterra. O tema muda novamente. Aqui, retoma à sua filha Alexandra, a procuradora no M inistério Público. Descreve muito brevemente o percurso dela, até se situar no essencial. João, por meio de projeção, “se fores inteligente como eu vais ser juíza, concorrer ao ministério público”, pretende que a filha concorra a um “alto cargo”. Aqui deparamo -nos outra vez com o mesmo enunciado que descrito no inicio da narrativa: a relação com o Outro (dentro ou fora do circulo familiar) é colocada em moldes assimétricos (ou de poder?), donde um é colonizado e o outro colonizador. Neste contexto, João refere que “esse advogado (ideia de alguém que ordene no trabalho de outrem) nunca te vai deixar seguir ou poder deixar-te expandir acima dele, vai te tapar o buraco, porque ele já lá está!”. É interessante observar que João coloca-se neste lado de alguém que comanda, que neste caso, torna-se claro que “ordenou” a filha a concorrer ao respetivo cargo. A ideia circunscrita à profissão de advogado, expressa neste excerto da narrativa, no contexto profissional da filha, é de alguém que está a “trabalhar para um escritório, para poderem sobreviver e esses nunca vão sair dessa plataforma daquele escritório porque o próprio advogado não vai deixá-lo… subirem por mérito próprio (…) quem está à frente, não deixa os outros passar”.

Após notar algumas referências da sua outra filha, a Diana, esta sendo o oposto da sua irmã Alexandra, João aponta o facto de que as suas “filhas gostam” dele, e o meu filho também, o Manuel e este que eu também mandei buscar já me agarrou também”. Sobre esta passagem, introduz novamente o assunto do Filipe, referindo que “este merece muito mais cuidado porque… não viveu comigo. Só agora é que começou a ter relações de pai para filho, comigo. (…) é preciso ir (…) com calma, mostrar o caminho, essas coisas, para ele também não descuidar. Uma pessoa veio de África… se agente não o puser muito… controlá -lo muito”. João aqui parece identificar-se com a condição do filho, este que vem de longe e requer um maior cuidado. Neste sentido o fornecer qualidades de vida superiores (modificar esta frase), “ténis de marca nos pés, camisa de marca” não é forma de educá-lo, porque (os irmãos) “já estão-lo a estragar!”. Sobre este panorama, João evidencia outra vez o mesmo movimento: introduz a temática do seu mal-estar físico, sobre uma condição de finitude: “na minha família morrem muito cedo. O meu pai morreu cedo, o meu avô morreu cedo. A minha mãe morreu cedo. A minha irmã morreu cedo com cinquenta e cinco anos, a mais velha”; de novo, menciona os problemas que o condicionam, “problema renal (…) problema de AVC (…), imobilidade nos membros inferiores e superiores (…), problemas da próstata.

Já no final da sua narrativa, refere que “uma pessoa tem que ter cuidado, para educar os filhos, para explicar ‘olha, não faças isto, senão mais tarde vais sofrer’”. Sobre este pano de fundo, compreende-se que João procura dar continuidade de si-mesmo nos filhos, sendo, portanto, uma espécie de extensão de e para os filhos. Sobre esta questão é necessário realçar algumas características: no discurso de João, observamos uma idealização de algumas personagens que o constituem, sendo estes principalmente aqueles que se deslocaram para Inglaterra e, especialmente, a sua filha Alexandra. Sobre os seus próximos, ele aparece numa posição que ele “(co) manda”, sendo ele o que melhor sabe para a vida dos que o rodeiam (numa lógica quase de omnisciência). Este movimento de encaminhar os filhos para um outro sitio é um mecanismo de reparação, no sentido em que não conseguindo reparar -se internamente, tenta reparar o que está os elementos que se encontram exterior. Aqui reflete-se uma condição de fragilidade de si-mesmo, que faz com que se valorize no papel de pai e que vá sendo expresso por mecanismos antidepressivos. Mais ainda, valorização que encontramos em João é fruto, como fora percebido em análise da sua narrativa em grupo, de uma tomada de consciência à qual se apropriou.

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