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2. ANÁLISES, PREPARAÇÃO E EXECUÇÃO

2.1.1. Análise poética

Não é tempo ainda é o primeiro poema da série de Madrigais Gaúchos

que Bruno Kiefer musica. Seu autor é o poeta gaúcho José Santiago Naud (1930), que reside em Brasília desde 1960. A composição pode ser encontrada em A

Geometria das Águas de 1952-1956, publicada pela Editora Globo em 1963. O

texto é o seguinte:

Não é tempo ainda

José Santiago Naud

1 Não é tempo ainda

2 de abrir as janelas do céu 3 e arejar a inconstância. 4 Longe, o horizonte abriu 5 longa faixa brilhante, 6 nas nuvens.

7 Dentro, entretanto, rugem 8 os ventos da circunstância, 9 na alma.

10 Não é chegado o tempo ainda. 11 Ventos há e cata-ventos ainda.

12 Mas a chuva, com grande força elementar 13 caindo,

14 será o caminho

15 para o vendaval imenso

16 que abrirá as unas portas do céu.

O poema apresenta três estrofes assimétricas: a primeira com três versos, a segunda com seis e, finalmente, a terceira com sete. Assim como as estrofes, os versos também não obedecem a uma simetria, variando sua extensão. Essas duas constatações marcam o momento da produção: o período

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modernista em que se questionaram os padrões da poesia tradicional e que se buscou uma liberdade maior na forma de compor o texto poético.

Pode-se afirmar que o poema é escrito em versos livres6. Apesar de apresentar rimas7, não há regularidade e, como são distantes, ou resultam da

repetição da mesma palavra, não causam grande efeito musical e rítmico. As rimas são constatadas nos v.8 10 e 11 (ainda, repetida ao final de ambos os

versos), nos v. 2 e 16 (repetição da palavra céu) e nos v. 3 e 8 (inconstância e

circunstância).

O ritmo, nesse poema, mantém relação direta com o tipo de período e de pontuação empregados. A partir desses dois elementos, é possível reconhecer a fluidez da comunicação: na primeira estrofe, os três versos constituem apenas um período não muito extenso, num estilo bem ao gosto modernista.

O procedimento se repete na segunda estrofe, com dois períodos. A diferença que se observa é relacionada com o uso da pontuação, em especial as vírgulas, que provocam breves cesuras, deixando a leitura mais pausada. Na terceira estrofe, os dois primeiros versos formam uma oração, cada. São afirmações mais fortes, enfatizadas pela estrutura menor de frase e pelo ponto final. A partir do 12º verso, o ritmo volta a fluir, com um período maior, distribuído pelos cinco últimos versos.

Ao se deparar com o título, a primeira pergunta, que o leitor provavelmente se fará, relaciona-se à dúvida que se observa: Não é tempo ainda de quê? A partir do título, o tema que se insinua influencia a leitura das ideias que,

6 Segundo Norma Goldstein (1998, p. 36-37), “os versos livres não obedecem a nenhuma regra

preestabelecida quanto ao metro, à posição das sílabas fortes, nem à presença ou regularidade de rimas.”

7 “Rima é o nome que se dá à repetição de sons semelhantes, ora no final de versos diferentes, ora

no interior do mesmo verso, ora em posições variadas, criando um parentesco fônico entre palavras presentes em dois ou mais versos.” (GOLDSTEIN, 1998, p. 44)

“Apoio fonético recorrente, entre dois ou mais versos, que consiste na reiteração total ou parcial do segmento fonético final de um verso a partir da última tônica, com igual ocorrência no meio ou no fim de outro verso.” (HOUAISS, 2007)

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pelo menos de início, não se processará num ritmo acelerado, mas numa certa lentidão, que proporcionará uma maior reflexão sobre o tema. Não havendo pressa, abre-se um espaço temporal em que eventos podem e devem acontecer antes da chegada de um tempo específico ainda desconhecido e que a imaturidade do eu lírico ainda não o proporcionou.

A atmosfera da primeira estrofe e os outros 3 versos da segunda é de conformidade, que é mudada para um ambiente de dúvida no v. 7 com a palavra

entretanto. Os v. 10 e 11 são afirmativos e conclusivos, que logo são abalados

pela ansiedade do acelerando rítmico do restante do poema, representando o

vendaval imenso do 15º verso.

Na primeira estrofe, o eu lírico quer expandir suas possibilidades de caminho (janelas do céu) e quer sair da situação em que se encontra (arejar a

inconstância). Abrir as janelas do céu é uma linguagem metafórica que sugere a

visualização externa de possíveis ferramentas divinas na construção de um valor provavelmente perdido: a constância.

Há uma longínqua esperança que é deflagrada pelo advérbio longe, que por sua vez, opõe-se a dentro, no v. 7. O eu lírico consegue visualizar, nas faixas

brilhantes que aparecem entre as nuvens no horizonte, uma possível saída para

sua situação. Segundo o Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009, p. 570), de acordo com os valores cristãos, “a luz simboliza constantemente a vida, a salvação [e] a felicidade.”

A esperança anunciada ao horizonte surge, a partir da segunda metade da segunda estrofe, cheia de surpresas e tormentos, fazendo com que o eu lírico se distancie novamente de seu desejo. Os eventos naturais que se apresentam exteriores (longe) ao ser, aproximam-se, nesses versos, à interioridade humana (dentro), atingindo sua alma e delatando sua grande perturbação. O embate entre o exterior e o interior é simbolizado pelo rugido dos ventos. Há, no verbo rugir, uma força expressiva muito grande que aponta para uma ação selvagem da natureza, que atinge toda sua fragilidade.

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Não há nada a fazer se não concluir que não é chegado o tempo ainda, pois o caminho é árduo e complicado. A inconstância do v. 3 também é sugerida através de cata-ventos (v. 11), aparelho que determina a velocidade e a direção do vento, ou que usa a força do vento, que não é constante, para se mover.

Até o v. 11, o poema é escrito em presente do indicativo, mudando para o futuro do presente do indicativo no v. 12. Os verbos no futuro fazem com que o

eu lírico se distancie ainda mais de suas aspirações, as quais poderá alcançar

somente por meio do sofrimento. Nesta estrofe, o ar que refrescava (arejar) no início, que rugia e se movimentava no meio (ventos e cata-ventos), torna-se um

vendaval imenso, acompanhado de chuva forte: a água como meio de purificação.

Se, antes, a esperança era abrir as janelas do céu, pelas quais se pode somente olhar, agora é alcançar as unas portas do céu, por onde há a possibilidade de entrar. “O céu é uma manifestação direta da transcendência, do poder, da perenidade, da sacralidade: aquilo que nenhum vivente da terra é capaz de alcançar.” (CHEVALIER, 2009, p. 227) (grifo do autor)

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