• Nenhum resultado encontrado

3. A Perícia Psiquiátrica em Direito Penal

3.2. O momento para apreciação da questão da Inimputabilidade

3.2.2. Análise em Processo Crime

A questão da inimputabilidade em razão da anomalia psíquica em processo penal pode ser suscitada em toda as fases processuais.

Em sede de inquérito, a legitimidade para a questão de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica ser suscitada, é do MP. É esta a entidade judiciária que controla toda a fase de inquérito no processo penal, conforme resulta do art.º 263.º.

Ainda que possam ser delegados nos órgãos de polícia criminal certos atos do inquérito56, a competência para proferir despachos de ordenação de perícias é

reservada ao MP não estando sequer, no meu entender, as perícias sobre as características físicas ou psíquicas incluídas na exceção prevista no n.º3 do art.º 270.º.

Contudo, havendo dissenso sobre a pessoa a quem vai ser realizada a perícia, esta é ordenada pelo juiz, operando a ressalva consagrada no n.º3 do art.º 154.º.

Assim, “só o juiz pode ordenar, em qualquer fase processual, a realização de uma perícia sobre as características físicas ou psíquicas (dependentes ou independentes de causas patológicas) de pessoa que não haja prestado consentimento. Isto é, quer a perícia psiquiátrica, quer a perícia sobre a personalidade, (…) só podem ser ordenadas pelo juiz no caso do visado não prestar consentimento”57.

54 Art.º 30.º da LSM.

55 Art.º 36.º da LSM 56 Resulta do Art.º 270.º.

Ordinariamente, esta perícia tem como base o auto de notícia, as testemunhas, as declarações do arguido e as informações documentais que são prestadas ao MP.

Veja-se o processo “Ameaça agravada e ameaça” que, de forma explícita, demonstra justamente estas diligências do MP. Inicia-se com a queixa de três indivíduos, na esquadra mais próxima, de que “F” os tinha ameaçado, sendo que uma das ameaças teria sido até agravada por conter o elemento “morte”. Promoveu-se o presente procedimento criminal e abriu-se inquérito sobre os factos descritos no auto de notícia.

No decorrer do inquérito, houve pedido de documentação clínica sobre o arguido, e desta documentação foi o MP esclarecido que “F” sofre de psicose descompensada, que já esteve internado no Hospital Júlio de Matos e que sofre de lesões extensas devido a um acidente de viação que sofreu no ano de 2001.

Aquando do seu interrogatório, o arguido “F”, não mostrando um discurso equilibrado, lúcido e ordeiro, queixou-se de ouvir uma mulher gritar como se tivesse a ser vítima de violação, disse sentir-se observado por uma racha do teto e ouvir pessoas a falar “olha que ele está a masturbar-se”.

Tendo por base esta informação, o MP solicitou ao IML que realizasse a perícia destinada a aferir se à data dos factos o arguido padecia de alguma anomalia psíquica, em caso afirmativo, qual: se a referida anomalia psíquica era suscetível de o impedir de avaliar a ilicitude do seu comportamento ou de se determinar de acordo com a sua avaliação; e face às características da anomalia psíquica em causa e a gravidade do facto praticado, se há fundado receio de que o arguido venha a cometer outros factos da mesma espécie.

Quanto à fase de instrução, a legitimidade para ordenar a perícia é do JIC, mas pode ser suscitada a questão pelo arguido, assistente e naturalmente pelo JIC.

Veja-se que a fase de instrução visa, como a própria lei expressa no art.º 286.º, “a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.

Desta forma, o juiz pratica todos os atos indispensáveis à realização das finalidades mencionadas no artigo supra referido. De tal facto nos dá conta o art.º 289.º, n.º 1 ao consagrar que, “a instrução é formada pelo conjunto dos atos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo”. Pode assim, o JIC praticar diligências, admitir novas provas e a repetição das provas produzidas em inquérito, e bem assim, pelos autos, suscitar-lhe a dúvida sobre a inimputabilidade do arguido e ordenar uma perícia psiquiátrica, sendo a autoridade judiciária que dirige esta fase.

Quanto à legitimidade do arguido e do assistente, ambos podem requerer abertura de instrução, e fazê-lo relativamente aos factos pelos quais o MP ou o assistente tiverem deduzido acusação – no caso do arguido – ou relativamente a factos pelos quais o MP não tiver deduzido acusação, no caso do assistente, como resulta do art.º 287.º, n.º1. E é justamente nas razões que levaram à abertura da instrução que pode ser suscitada a questão da inimputabilidade, podendo até estes sujeitos processuais indicar os atos de instrução que pretendem que o juiz leve a cabo, nomeadamente, uma perícia médico-legal e forense.

Por último, cabe referir a fase de julgamento. A legitimidade para ordenar a perícia é conferida ao juiz de julgamento, e pode ser suscitada pelo juiz ou por outro sujeito processual, no início ou durante a audiência.

Assim, pode o juiz, declarada abertura de audiência, ordenar oficiosamente uma perícia médico-legal58. Pode fazê-lo também quando o

requerimento surge pela vontade de outro sujeito processual. Embora tardia59, a questão de inimputabilidade pode ser sempre suscitada, e o critério será a importância que esta perícia terá na descoberta da verdade e à boa decisão da causa, nos termos do art.º 340.º.

58 Nos termos do art.º 351.º.

59 Atente-se, no que concerne à tempestividade da prova pericial, o explanado no Ac. do Tribunal da

Relação de Lisboa, de 5 de Dezembro de 2008, proc. n.º 10442/2008-3, Relator Carlos Almeida, “A prova pericial, sobre tudo quando puder influir na apreciação da questão de inimputabilidade pu, por outra forma, no juízo de culpa, deve ser realizada, em principio, nas fases preliminares do processo, podendo, no entanto, ser ordenada, oficiosamente ou a requerimento, no decurso da audiência”.

Atente-se agora ao processo “Maus Tratos”, que ilustra justamente a questão da inimputabilidade na fase de instrução e na fase de julgamento.

Findo o inquérito, acusou-se “D” como autor material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica. Consequentemente, veio “D” requerer a abertura da instrução, pedindo que seja feito exame psicológico, tanto a “D” como a “V”, sua mulher.

Em sede de instrução, requereu o JIC a perícia psicológica do arguido – conforme o requerimento para abertura de instrução –, em que se determinou que o discurso de “D” é revelador de ideias delirantes de conteúdo persecutório, assim como crenças místicas. Tem alterações de perceção e pensamento místico, revela ausência de crítica destas alterações psíquicas e afastamento da realidade, não considerando sofrer de qualquer patologia, pelo que não reconhece a necessidade de tratamento médico-psicológico. Apresenta fatores de risco, isto é, sentimentos persecutórios e aparentemente delirantes vivenciados por este e centrados na sua esposa.

No relatório social resulta o entendimento que seria pertinente uma avaliação do foro médico-legal com vista a averiguar a eventual inimputabilidade em razão de anomalia psíquica do arguido.

Deu-se por encerrada a instrução e decidiu o JIC pronunciar “D” por indiciarem suficientemente os autos da prática dos factos constantes na acusação, sem que tenha sido ordenada a perícia psiquiátrica.

Ora, aberta a audiência de discussão e julgamento, foi proferido despacho no sentido de: a) dar sem efeito o julgamento; b) determinar a realização da perícia, de acordo com o parecer do relatório psicológico.

Desta forma, e nos termos dos art.º 340.º, n.º 1, 159.º, n.º 1, 163.º, n.º 1 e 351.º, n.º 3, foi realizada a perícia psiquiátrica de “D”, onde se concluiu que existe a instalação de um delírio cognitivo em fase inicial, e que este pode explicar a incongruência de alguns argumentos numa pessoa com os seus conhecimentos científicos – o arguido é médico –, e diminuir a capacidade de análise, apreciação e julgamento de situação de vida.