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2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.3. A Análise Crítica do Discurso (ACD)

2.3.1. Análise tridimensional do discurso

O conceito tridimensional da ACD proposta por Fairclough (2016) propõe o estudo de qualquer ‘evento’ discursivo a partir das dimensões: textual, exemplo de prática discursiva e exemplo de prática social. O autor deixa claro que essa separação se dá apenas para fins pedagógicos e de melhor compreensão, visto que “qualquer evento discursivo (qualquer exemplo de discurso) é considerado simultaneamente como um texto, um exemplo de prática discursiva e um exemplo de prática social” (Fairclough, 2016, p. 22).

Nesse contexto, as dimensões propostas na ACD orientam as análises do discurso e permitem a combinação de relevância social e especificidade textual para entender as mudanças sociais, avaliadas segundo os conceitos de intertextualidade e interdiscursividade dos aspectos

que não estão explícitos no discurso. Para o autor o conceito de intertextualidade é de grande importância na teoria desenvolvida e deve ser um foco principal na análise de discurso (Fairclough, 2016), pois implica na constituição heterogênea dos textos.

A dimensão textual, também chamada de descrição, trata da análise linguística dos textos e pode ser organizada pelos itens ‘vocabulário’, ‘gramática’, ‘coesão’ e ‘estrutura textual’, e seu objetivo é avaliar como os textos estão construídos, e verificar as questões de forma e de significado. Sendo assim, a forma e a ordem em que os elementos ou episódios são combinados no texto, a escolha do modelo e da estrutura das orações, o vocabulário e o uso de metáforas contribuem para a produção de discursos hegemônicos, para a naturalização de ideologias específicas e para a manutenção ou reforço de relações de poder (Fairclough, 2016; Irigaray, Cunha, & Harten, 2016).

A dimensão da prática discursiva especifica a natureza dos processos de produção (quem, o que se produz e para quem), distribuição (via quais mecanismos, e qual forma de organização - uma conversa, textos escritos, uma reunião, um discurso) e consumo (a interpretação e quem consome – como e por quem); em que circunstâncias ou contextos se localizam os argumentos discursivos (situação da qual o discurso faz parte); com que força ou coerência os enunciados são veiculados e a intertextualidade argumentativa do discurso é percebida (Fairclough, 2016).

Na análise da intertextualidade, termo cunhado por Kristeva e desenvolvido por Bakhtin e Authier-Revuz, o propósito é identificar quais textos ou enunciados de outros textos compõem ou participam na construção do texto que está sendo analisado. Fairclough (2016) faz a distinção entre dois tipos de intertextualidades:

a) Intertextualidade manifesta – constituição heterogênea de textos por meio de outros textos, que são específicos. Nesse caso podem-se analisar marcas grafológicas ou gramaticais diretas como aspas ou recuos do texto que separam o acréscimo de um novo texto ao texto inicial, ou o texto pode estar integrado de forma indireta, dando ambivalência ao sentido do texto, portanto deve-se atentar para a negação, a pressuposição e a ironia.

b) Intertextualidade constitutiva ou Interdiscursividade – constituição de um texto com base em uma configuração de tipos de textos ou convenções discursivas que entram na sua produção.

Especificamente no caso da análise da interdiscursividade, que é a estratégia de se apropriar de outros discursos mais estabelecidos como recurso no texto, Fairclough (2016) pontua que implica atenção às convenções discursivas, ou à combinação de elementos das ordens ou tipos de discurso, como:

1) gêneros discursivos – são utilizados para se referir a um tipo particular de convenção (linguagem), de prática social, de agir por meio do discurso com efeito de sentido específico (conversa informal, entrevista de emprego, conferências);

2) discursos – entendidos como a identidade dos gêneros discursivos e dos estilos, e são as representações (discurso médico técnico-científico, discurso feminista sobre sexualidade, discurso militar);

3) estilos – variam de acordo com o tenor (tipo de relação que existe entre os participantes na interação – formal, informal, oficial, casual), o modo (se os textos são falados, escritos, falado-como-se-escrito – conversacional, escrito formal, acadêmico, jornalístico), e o modo retórico (argumentativo, descritivo, expositivo);

4) tipos de atividades - especificados em termos de uma sequência de ações das quais ele é composto e em termos de participantes envolvidos na atividade.

As ordens de discurso podem ser entendidas como a totalidade de práticas discursivas dentro de uma instituição/organização ou sociedade, e a forma como essas práticas se relacionam. Sendo assim, Ramalho (2005) esclarece que a análise da interdiscursividade procura identificar recursos discursivos mais estabelecidos – ou emprestados de outros textos, que são utilizados na interação no campo social (forma particular de agir, representar e identificar), e que resultam em ordens de discurso.

A dimensão da prática social se dedica a questões de interesse da análise social, como as circunstâncias institucionais e organizacionais nas quais os discursos são constituídos (ação, representação e identificação). Explica-se o conceito de discurso em relação à ideologia e ao poder, situando-se o discurso em uma concepção de poder como hegemonia e em uma concepção da evolução das relações de poder como luta hegemônica (Fairclough, 2016). Por consequência, Barros (2008) reflexiona que, “em uma perspectiva dialética, os discursos criam situações, constroem conhecimentos, moldam identidades e estabelecem relações entre pessoas

e grupos de pessoas”, e por isso os estudos dessa dimensão consideram as noções de hegemonia, ideologia e poder.

Consoante Fairclough (2016, p. 98), “a prática social tem várias orientações – econômica, política, cultural e ideológica – e o discurso pode estar implicado em todas elas, sem que se possa reduzir qualquer uma dessas orientações do discurso”. O discurso como prática política “estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas (classes, blocos, comunidades, grupos) onde as relações de poder se manifestam”. O discurso como prática ideológica “constitui, naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder” (Fairclough, 2016, p. 98).

Fairclough (2016), com base nos estudos de Gramsci sobre ideologia e na teoria althusseriana do sujeito, entende que as ideologias são significações/construções da realidade (sistemas de conhecimentos e crenças, o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais), que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação. As ideologias seriam então as ideias e crenças veiculadas no discurso e que procuram gerar uma naturalização de valores, de vocabulário e de comportamentos, que se tornam “senso comum”.

A hegemonia pode ser entendida como:

a) uma liderança ou dominação, nos domínios econômicos, político, cultural e ideológico de uma sociedade;

b) o poder exercido sobre a sociedade por um determinado grupo social, em caráter parcial ou temporário;

c) a construção de alianças e a integração para ganhar o consentimento das classes subalternas mediante concessões ou meios ideológicos;

d) um foco de lutas constantes sobre pontos de instabilidade entre grupos para construir, manter ou romper alianças e relações de dominação, que assume formas econômicas, políticas e ideológicas (Fairclough, 2016, p. 122).

Para o autor, os discursos além de reproduzirem hegemonias, também contribuem para a transformação e mudança social visto que quando os produtores e intérpretes definem novas convenções, códigos e elementos em eventos discursivos inovadores, eles estão desarticulando ordens de discurso existentes e rearticulando novas ordens.

Para Barros (2008, p. 201), o analista do discurso ao trabalhar assumindo uma perspectiva crítica “coleta material para a teorização sobre a sociedade a partir dos textos, dos enunciados efetivamente produzidos”, e por isso a análise linguística vai se constituir em um instrumento para estudos de processos ideológicos que intermediam as relações de poder e controle.

É nessa perspectiva que essa pesquisa foi desenvolvida, com foco na análise das histórias dos sujeitos e das práticas cotidianas para interpretar as relações que se estabelecem nos processos discursivos e explicar a relação entre os mesmos e os processos sociais. Destaca- se que a análise apresentada está condicionada e limitada pelos recursos disponíveis ao analista, e pela impossibilidade de captar e rastrear a complexidade da trama de elementos discursivos e não discursivos que a prática apresenta.