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Anarquismo e educação

No documento LUANA APARECIDA MORAES (páginas 38-44)

PARTE I A PERSPECTIVA QUE EMBASA ESTE ESTUDO: O ANARQUISMO

1.2 ESCOLHA DO ANARQUISMO COMO (CONTRA)MÉTODO E APORTE

1.2.2 Anarquismo e educação

É necessário abordar tal eixo para relacionar nossa área de interesse (educação) com a perspectiva analítica aqui utilizada (anarquismo), pois o tema deste estudo é perpassado constantemente pela relação anarquismo e educação, sendo que a autogestão socioeducacional encontra aí a sua sustentação. Assim também não deixamos de aclarar o que é de praxe quando se discute essa relação: que dentro do anarquismo a educação é um dos elementos mais desdobrados e que recebe papel de suma importância.

Como projeto local e global, o anarquismo concede atenção a diferentes elementos que compõem a vida social, como a cultura, a psicologia, a saúde, o meio ambiente e até mesmo a religiosidade. Entretanto, é a educação – acompanhada pela economia – que se mostra como problema de primeira ordem, recebendo, portanto, uma atenção bastante especial. Diferentemente do que os organismos internacionais buscam demonstrar, essa filosofia política não a encara como redentora dos problemas sociais, mas, não obstante, entende que é instrumento imprescindível no processo de transformação social, pois que dotado de uma visível potencialidade, podendo, assim, servir a propósitos distintos, inclusive diametralmente opostos.

A educação sozinha não é a panaceia de todos os problemas sociais, mas se ela é um campo privilegiado onde os processos hegemônicos da globalização atuam, é também imprescindível para o processo de transformação social, na medida em que

A eventual construção de uma sociedade autogestionária passa

inquestionavelmente pela questão da educação politécnica [...] e pela aprendizagem não autoritária. Por aprendizagem não autoritária entendo aquele (sic) que impede a internalização dos mecanismos de submissão e conformidade. A aprendizagem para uma nova sociedade precisa centrar-se na erradicação da angústia, do medo, da culpa e da dependência (MOTTA, 1984, p. 205).

36 Ora, nossos valores e conhecimentos são formados pelos diferentes espaços que nos educam e moldam desde o nascimento, sendo a escola o ambiente institucionalizado para tal feito. Algumas ramificações do anarquismo creem que não pode haver libertação dentro do aparelho escolar, que uma emancipação só é possível quando da transformação radical da escola que conhecemos hoje, outras acreditam que sim, existe espaço para manobra dentro deste aparelho e que é possível fazê-lo pelas rachaduras e quando elas não existem, cria-las.

Polêmicas à parte, o que ocorre é uma busca pela desinstitucionalização da educação, ou seja, “recusar o poder e mediação das instituições para restabelecer um verdadeiro diálogo, um verdadeiro encontro entre os seres humanos” (ANTONY, 2011, p. 201) partindo de um caráter mais universal, e por outro, a busca por artifícios dentro da própria instituição enquanto a desinstitucionalização generalizada não acontece, por meio do rompimento e questionamento das estruturas autoritárias e burocráticas, partindo de um caráter mais particular. De qualquer modo, é possível afirmar que “os anarquistas não são reformistas, eles não querem democratizar o ensino, mas transformá-lo radicalmente e lançar as bases de uma educação popular” (LIPIANSKY, 2007, p. 64). É essa radicalidade que confere peculiaridade própria à corrente anarquista e seu projeto educacional.

Silvio Gallo (2002, p. 173), ao discutir uma “educação menor”, demonstra que A educação menor é um ato de revolta e de resistência. Revolta contra os fluxos instituídos, resistência às políticas impostas; sala de aula como trincheira, como a toca do rato, o buraco do cão. Sala de aula como espaço a partir do qual traçamos nossas estratégias, estabelecemos nossa militância, produzindo um presente e um futuro aquém ou para além de qualquer política educacional. Uma educação menor é um ato de singularização e de militância.

Dito de outro modo, o macrocosmo não está de forma alguma perdido de vista, ao contrário. Entretanto, não podemos nos pautar pela pergunta “quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?”: tudo acontece concomitantemente. É preciso visar o macro do futuro agindo no micro do presente e esse é mais um ponto que busca por coerência dentro da teoria educacional anarquista: ligar os fins (futuro) aos meios (presente); pensar sobre teorias e práticas para atuar hoje pensando no amanhã.

Ainda fazendo uso do mesmo autor, teórico brasileiro renomado em pesquisa sobre educação anarquista, Gallo (1996, p. 10, grifos do autor) esclarece:

Os anarquistas sempre deram muita importância à questão da educação ao tratar do problema de transformação social: não apenas à educação dita formal, aquela oferecida nas escolas, mas também àquela dita informal, realizada pelo conjunto

37 social e daí sua ação cultural através do teatro, da imprensa, seus esforços de alfabetização e educação dos trabalhadores, seja através dos sindicatos seja através das associações operárias.

Uma das principais marcas da educação anarquista foi a visível oposição contra a escola hegemônica, que culmina por reproduzir as desigualdades:

O anarquista, também um herdeiro do Iluminismo, foi inaugural ao questionar a educação universal pelo Estado [...] notou que a escolarização como acesso à educação universal é a mais eficiente e eficaz maneira pela qual se educa para a obediência a uma autoridade hierárquica, aos interesses particulares em nome da humanidade [...] (PASSETI, AUGUSTO, 2008, p. 23).

Essa educação não atua em prol da libertação e, atualmente - de maneira muito especial -, vem se mostrando balizada pelos objetivos do livre mercado. Relações autoritárias, alienação do próprio processo de trabalho, burocracia, hierarquia, poder, avaliações arbitrárias, quantidade em detrimento da qualidade, produto e em detrimento do processo, gerencialismo, (neo)tecnicismo e diretrizes heterônomas, além dos desdobramentos causados por esses fatores, como a competitividade, o egoísmo e a manutenção da sociedade de classes, são as denúncias – muito atuais, a propósito – que partem de uma educação anarquizante.

A educação, cada vez mais guiada pelos homens de negócio e pelos interesses do capital, vem reforçando a formação de um sujeito conformado, alienado, “nadificado”, sendo que o propósito da educação deveria ser a emancipação, o desenvolvimento do homem como ser cultural, complexo e estético, com suas capacidades ampliadas tanto para promover o próprio indivíduo como promover uma coexistência saudável em sociedade, que por sua vez só pode ser saudável se o indivíduo o for.

Quanto mais nova a criança adentra o espaço escolar, por mais tempo estará sujeita ao tipo de formação que a conjuntura social busca, ou a uma educação libertária. Daí a importância de se trabalhar com uma educação contestadora já no período da Educação Infantil, como por meio de projetos que trabalhem com a participação, com a auto- organização, a autonomia e com aqueles valores libertários já mencionados. Para Lenoir (2007, p.11), “trata-se de demonstrar que, se se quiser trabalhar de outro modo, é preciso aprender e pensar de outra forma desde a mais tenra idade [...]”. E inclui o que defende Luengo (1993, p. 57-58):

[...] devemos demonstrar que a autogestão é possível fazendo-a realidade, e para isso temos que viver autogerencialmente e devemos estabelecer um tipo de

38 educação que firme a convivência em torno a esses valores: autonomia, liberdade, justiça, responsabilidade social e felicidade.

Para Bernardo (1998, p. 12), são esses princípios de solidariedade, igualitarismo e coletivismo que implicam relações de tipo novo, ou seja, relações que fragilizam o sistema capitalista, porque vão contra a sua lógica e é nisso que uma educação contra-hegemônica precisa se pautar. Vale lembrar que “não se trata do professor autogestionário ser um doutrinador, mas um orientador, que visa incentivar, possibilitar, proporcionar, colaborar no processo de ampliação da consciência correta da realidade” (VIANA, 2015, p.27).

Já que as pessoas são o resultado, em partes da própria personalidade, mas também dos ambientes em que crescem, formando suas visões de mundo, e também sabendo que a escola é um desses ambientes, é interessante realizar uma educação que seja refletida, intencional, com objetivos, e não que seja feita de maneira inócua e esvaziada de sentido como muito se tem feito. Assim se contribui com uma educação reprodutora sem muitas vezes sequer percebermos e “nossas salas continuam a fabricar apatia e desigualdade” (SCOCUGLIA, 2008, s/p).

A educação anarquista tem como um dos seus objetivos “[...] formar o espírito crítico e o distanciamento necessário em relação às instituições, para que o indivíduo torne- se autônomo e desenvolvido [...]” (ANTONY, 2011, p. 24). Ou seja, formar os indivíduos pautados no senso da auto-organização, que dispensa o Estado, e faz por si mesmo as funções que estão delegadas a esse mesmo Estado. Mas, para tanto, é preciso ensinar pela e

para a liberdade, a igualdade, a solidariedade e a coletividade. Lipiansky (2007, p.70)

assevera: “É preciso dizê-lo, os anarquistas situam seu projeto educativo sob o signo da liberdade”.

Assim a educação anarquista tem seu trabalho pautado na recusa à lógica prêmio- castigo, aos enquadramentos físicos e psicológicos, à hierarquia, às imposições “de fora” e vai contra a formação meritocrática, a favor de uma que seja pautada na autogestão e nos valores libertários:

[...] seus esforços tendem a desenvolver nas crianças o senso da colaboração e da solidariedade e um sentimento de responsabilidade coletiva. O trabalho em grupo é encorajado; todo elemento de competição individual (notas, exames, sanções...) é suprimido [...]. Os educadores são profundamente integrados à comunidade: eles participam das reuniões, das discussões e de todas as atividades (LIPIANSKY, 2007, p. 55-56).

39 De maneira singular, “os anarquistas, mais do que outras correntes do socialismo, sempre se interessaram pela educação” (LENOIR, 2017, p. 9) e imprimiram sobre ela um propósito radical e humanista como nenhuma corrente ainda o fez. Trouxeram-nos, por exemplo, várias estratégias educacionais que hoje são utilizadas pela escola que “rompeu” com a pedagogia tradicional, como as saídas de campo, os jogos cooperativos, o trabalho com materiais concretos, a utilização da música e do teatro, o lúdico, o cuidado com a higiene e a nutrição, a fabricação de seus próprios jornais, de suas hortas; as aulas ao ar livre e a criança no centro do processo de ensino. São metodologias que apenas posteriormente a escola veio a utilizar quando seu autoritarismo começava a ser posto em xeque.

Walter (2000, p. 71) também afirma que “vários pensadores anarquistas trouxeram contribuições valiosas à teoria e à prática da educação”, dentre eles é possível destacar Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Robin, Faure, Mella e Pelloutier.

Inovaram com a coeducação de sexos quando isso ainda era um insulto à igreja; com a abolição das avaliações quantitativas e dos castigos; aboliram a autoridade quando mostraram que é possível estabelecer uma relação professor-aluno fraternal, realizavam saídas de campo e trabalho com o concreto quando a escola tradicional ainda engessava o progresso. Preocuparam-se com uma educação física em sentido lato desde a boa alimentação à higiene e aos jogos cooperativos e também mostraram que uma escola não necessita ser feita de cargos fixos e nem direcionada pelo Estado e seus propósitos hegemônicos:

[...] Proudhon, Bakunin, Paul Robin, Louise Michel, Francisco Ferrer, Sebastién Faure, Élisee Reclus, ou seja, aqueles que foram os pioneiros na elaboração de teorias sistemáticas e críticas à escola – seja ela religiosa, privada ou estatal – e os protagonistas de algumas das mais belas e radicais iniciativas pedagógicas inovadoras, permanecem ainda hoje ilustres desconhecidos para professores e

estudantes (ROSA; MARQUES, 2015, p. 10)10.

Desenvolveram também a teoria da desenvolveram a teoria da Educação Integral11, que é um ponto unânime dentro da educação anarquista, pois funcionaria como uma maneira de evitar o dualismo educacional entre a educação elitizada e a operária e a

10 ROSA, Rodrigo; MARQUES, Paulo. A Colmeia, a partir de agora, a escola do amanhã. In: FAURE, S. A

Colmeia: uma experiência pedagógica. Tradução de Antonio B. Canellas. Biblioteca Terra Livre: SP, 2. Ed. 2015 (no prefácio).

11 Para saber mais: Cf: BAKUNIN, M. A instrução integral. In: O socialismo libertário. Editora Global, São

40 própria divisão social do trabalho, pois ela tem o objetivo de desenvolver a educação omnilateral dos sujeitos e educar tanto a mão quanto o cérebro, tanto para execução bem como para a idealização, uma busca pela igualdade e desconstrução dos cargos que ocuparão os pobres e aqueles que ocuparão os ricos.

Para Lipiansky (2007, p.22): “Na falange, a educação deve ser ‘integral’ (expressão amiúde retomada por toda corrente anarquista e socialista): ela se dirige ao corpo e ao espírito e alia a prática e a teoria, o trabalho manual e a reflexão intelectual”. Visa, assim, a uma recuperação da teoria-prática, pois dentro do sistema capitalista a práxis é mutilada e o homem propositalmente fragmentado.

Aí percebemos tanto a sua singularidade como a sua marginalização, pois a consistência teórica e prática e o alinhamento entre os fins e os meios, somados a um propósito de liquidação do status quo, acabam se tornando uma intimidação ao sistema dominante, às suas relações de produção e, consequentemente, às suas relações sociais. Isso explica o seu desconhecimento e rechaço, ainda que a educação anarquista confrontasse “a maneira uniforme de educar da escola estatal, clerical e privada, ao mesmo tempo em que escrevia no papel em branco maneiras inéditas e livres de lidar com crianças, jovens e adultos na vida autogestionária” (PASSETTI; AUGUSTO, 2008, p. 41) e posteriormente cooptadas por movimentos como a Escola Nova.

Por essa via é possível depreender, como expôs Machado (2004, p. 7), que: “os escritos anarquistas sobre educação são, por um lado, propostas sobre novas bases e objetivos para a educação, e por outro, uma crítica ao sistema de ensino praticado no capitalismo”. Ora, constituindo uma proposta que se pretende revolucionária, não há como pensar o local separado do global e vice-versa, porque num projeto crítico-radical de educação não há como dissociar essas dimensões, apenas por questão analítica.

Diante deste panorama destacamos as palavras de Antony (2011, p. 23) quando, sem eufemismo, afirma: “Eis porque a utopia pedagógica libertária é sem dúvida a mais importante das proposições pedagógicas das diferentes correntes socialistas [...]”. Nenhuma outra foi tão a fundo na problematização de práticas e teorias educativas que objetivassem radicalmente a humanização da vida do sujeito individual e coletivo, e a transformação social. Para fechar, “[...] a educação libertária prepara os indivíduos para serem independentes, ativos, moralmente mais fortes, portanto, mais bem preparados para emancipar-se e emancipar toda a sociedade [...]” (ANTONY, 2011, p. 214).

41 Veremos com maior clareza como os princípios anarquistas como a liberdade, a igualdade, a solidariedade, o antiestadismo etc. se incluem dentro da educação quando tratarmos sobre a autogestão e a heterogestão no segundo capítulo, a composição central do estudo.

1.2.3 Os pressupostos do ideário anarquista como categorias de análise para a

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