POEMAS ESOTÉRICOS FERNANDO PESSOA
Iniciação
Não dormes sob os ciprestes, Pois não há sono no mundo. ...
O corpo é a sombra das vestes Que encobrem teu ser profundo. Vem a noite, que é a morte E a sombra acabou sem ser. Vais na noite só recorte, Igual a ti sem querer.
Mas na Estalagem do Assombro Tiram-te os Anjos a capa. Segues sem capa no ombro, Com o pouco que te tapa. Então Arcanjos da Estrada Despem-te e deixam-te nu. Não tens vestes, não tens nada: Tens só teu corpo, que és tu. Por fim, na funda caverna, Os Deuses despem-te mais. Teu corpo cessa, alma externa, Mas vês que são teus iguais. ...
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A sombra das tuas vestes Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto, entre ciprestes. ...
Neófito, não há morte.102
Do vale à montanha
Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Por casas, por prados. Por quinta e por fonte, Caminhais aliados.
Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Por penhascos pretos, Atrás e defronte, Caminhais secretos. Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Por plainos desertos
102 PESSOA, Fernando. Obra Poética. Organização, introdução e notas de Maria Aliete Galhoz, Rio de Janeiro:
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Sem ter horizontes, Caminhais libertos.
Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Por ínvios caminhos, Por rios sem ponte, Caminhais sozinhos.
Do vale à montanha, Da montanha ao monte, Cavalo de sombra, Cavaleiro monge, Por quanto é sem fim, Sem ninguém que o conte, Caminhais em mim.103
Na sombra do Monte Abiegno Repousei de meditar.
Vi no alto o alto Castelo Onde sonhei de chegar. Mas repousei de pensar Na sombra do Monte Abiegno.
Quando fora amor ou vida, Atrás de mim o deixei, Quando fora desejá-los, Porque esqueci não lembrei.
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À sombra do Monte Abiegno Repousei porque abdiquei.
Talvez um dia, mais forte Da força ou da abdicação, Tentarei o alto caminho Por onde ao Castelo vão. Na sombra do Monte Abiegno Por ora repouso, e não.
Quem pode sentir descanso Com o Castelo a chamar? Está no alto, sem caminho Senão o que há por achar. Na sombra do Monte Abiegno Meu sonho é de o encontrar.
Mas por ora estou dormindo, Porque é sono o não saber. Olho o Castelo de longe, Mas não olho o meu querer. Da sombra do Monte Abiegno Que me virá desprender?104
No Túmulo de Christian Rosenkreutz
I
Quando, despertos deste sono, a vida, Soubermos o que somos, e o que foi
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Essa queda até corpo, essa descida Ate á noite que nos a Alma obstrui,
Conheceremos pois toda a escondida Verdade do que é tudo que há ou flui? Não: nem na Alma livre é conhecida... Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui
Deus é o Homem de outro Deus maior: Adam Supremo, também teve Queda; Também, como foi nosso Criador,
Foi criado, e a Verdade lhe morreu... De Além o Abismo, Sprito Seu, Lha veda; Aquém não há no Mundo, Corpo Seu.
II
Mas antes era o Verbo, aqui perdido Quando a Infinita Luz, já apagada, Do Caos, chão do Ser, foi levantada Em Sombra, e o Verbo ausente escurecido.
Mas se a Alma sente a sua forma errada, Em si que é Sombra, vê enfim luzido O Verbo deste Mundo, humano e ungido, Rosa Perfeita, em Deus crucificada.
Então, senhores do limiar dos Céus, Podemos ir buscar além de Deus
O Segredo do Mestre e o Bem profundo;
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No sangue actual de Cristo enfim libertos Do a Deus que morre a geração do Mundo.
III
Ah, mas aqui, onde irreais erramos, Dormimos o que somos, e a verdade, Inda que enfim em sonhos a vejamos, Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.
Sombras buscando corpos, se os achamos Como sentir a sua realidade?
Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos? Nosso toque é ausência e vacuidade.
Quem desta Alma fechada nos liberta? Sem ver, ouvimos para além da sala De ser: mas como, aqui, a porta aberta? ...
Calmo na falsa morte a nós exposto, O Livro ocluso contra o peito posto, Nosso Pai Rosaecruz conhece e cala.105 "Nesta vida, em que sou meu sono, Não sou meu dono,
Quem sou é quem me ignoro e vive Através desta névoa que sou eu Todas as vidas que eu outrora tive, Numa só vida.
Mar sou; baixo mergulho ao alto rujo, Mas minha cor vem do meu alto céu, E só me encontro quando de mim fujo.
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Quem quando eu era infante me guiava Senão a vera alma que em mim estava? Atada pelos braços corporais,
Não podia ser mais.
Mas, certo, um gesto, olhar ou esquecimento Também, aos olhos de quem bem olhasse A Presença Real sob o disfarce
Da minha alma presente sem intento."106
Eros e Psique
...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades
que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.
(Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio Na Ordem Templária De Portugal)
Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria
De além do muro da estrada. Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem.
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A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera, Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera. Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, Rompe o caminho fadado, Ele dela é ignorado, Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro Tudo pela estrada fora, E falso, ele vem seguro, E vencendo estrada e muro, Chega onde em sono ela mora, E, inda tonto do que houvera, À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera, E vê que ele mesmo era A Princesa que dormia.107
Gita
(Raul Seixas)
Eu que já andei pelos quatro cantos do mundo procurando
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Foi justamente num sonho que Ele me falou
Às vezes você me pergunta Por que é que eu sou tão calado Não falo de amor quase nada Nem fico sorrindo ao teu lado
Você pensa em mim toda hora Me come, me cospe, me deixa Talvez você não entenda Mas hoje eu vou lhe mostrar
Eu sou a luz das estrelas Eu sou a cor do luar Eu sou as coisas da vida Eu sou o medo de amar
Eu sou o medo do fraco A força da imaginação O blefe do jogador Eu sou, eu fui, eu vou
Gita! Gita! Gita! Gita! Gita!
Eu sou o seu sacrifício A placa de contra-mão
O sangue no olhar do vampiro E as juras de maldição
Eu sou a vela que acende Eu sou a luz que se apaga Eu sou a beira do abismo
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Eu sou o tudo e o nada
Por que você me pergunta? Perguntas não vão lhe mostrar Que eu sou feito da terra Do fogo, da água e do ar
Você me tem todo dia
Mas não sabe se é bom ou ruim Mas saiba que eu estou em você Mas você não está em mim
Das telhas, eu sou o telhado A pesca do pescador
A letra A tem meu nome Dos sonhos, eu sou o amor
Eu sou a dona de casa Nos pegue pagues do mundo Eu sou a mão do carrasco Sou raso, largo, profundo
Gita! Gita! Gita! Gita! Gita!
Eu sou a mosca da sopa E o dente do tubarão Eu sou os olhos do cego E a cegueira da visão
Eu!
Mas eu sou o amargo da língua A mãe, o pai e o avô
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O filho que ainda não veio O início, o fim e o meio O início, o fim e o meio Eu sou o início O fim e o meio Eu sou o início O fim e o meio. 108 108 https://www.letras.mus.br/raul-seixas/48312/. Acesso em 06/09/2016.