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4.4 IÊ, É ANGOLEIRA CAMARÁ: WALQUIRIA FAGUNDES E SUA EXPERIÊNCIA HISTÓRICA COMO ANGOLEIRA NO PARÁ

IV CAPÍTULO: “LEVANTA A SAIA, LÁ VEM A MARÉ”: RECONHECIMENTO E RESISTÊNCIA FEMININA NA CAPOEIRA NO

4.4 IÊ, É ANGOLEIRA CAMARÁ: WALQUIRIA FAGUNDES E SUA EXPERIÊNCIA HISTÓRICA COMO ANGOLEIRA NO PARÁ

Walquiria de Aguiar Fagundes é praticante do estilo angola, ela marcou a história da capoeira no Pará na década de 90. Sua experiência está ligada a formação do grupo de capoeira “Angola dobrada” em Belém do Pará. O grupo foi formado no período em que a capoeira angola começa a se fortalecer no Estado, reunindo uma série de significados simbólicos para afirmar sua autenticidade na capoeira angola. Entretanto, ele teve um curto tempo de duração em Belém.

Na década de 1990, Walquiria estudante da Graduação na UFPA, conheceu o mestre Romão. Nesse período o mestre começa a realizar treinos de capoeira angola na universidade. A angoleira Walquiria, como aprendiz na capoeira, estava disposta a aprender mais sobre essa manifestação cultural. Inclusive tinha contato com angoleiros de fora do Pará, realizados em virtude de viagens e a necessidade de conhecer mais sobre a capoeira.

A capoeira angola lhe trazia esse encantamento, conhecer seus fundamentos era algo necessário. Sendo assim, Walquiria aproveitou um momento de greve que aconteceu na UFPA, no ano de 1996, e viajou para Salvador. Lá teve a oportunidade de conhecer mestres de capoeira, participar de treinos e conhecer mais sobre a capoeira angola. Nesse processo de busca e aprendizados, o primordial para ela era conhecer a capoeira angola, uma vez que este estilo ainda era muito novo aqui no Pará.

Fiquei lá treinando com jogo de dentro no tempo que eu tava lá e passeando, encontrando, conhecendo pessoas, vivenciando Salvador, né. Nisso comprei todo um material lá, que aqui nessa época não sei se no... mas a verga mesmo, a cabaça, era difícil de achar. Então eu me lembro que nessa época, eu fui lá na feira de São Joaquim e trouxe um monte de coisa pra gente fazer material (WALQUIRIA FAGUNDES, entrevista realizada em 2018).

Walquiria aproveitou sua estadia em Salvador por completo, estando em contato com a capoeira angola e aproveitando todas as oportunidades de vivenciar o que aquela cidade lhe oferecia. No seu retorno ao Pará, ela se aproxima do angoleiro Cristiano, o qual já estava em contato do contramestre Índio, que morava em Ipixuna do Pará. A partir desse contato é iniciado “um trabalho do Angola Dobrada em Belém do Pará” (WALQUIRIA FAGUNDES, entrevista realizada em 2018).

O grupo Angola Dobrada foi criado aqui no Pará, no ano de 1996, funcionando em Belém e Ipixuna, onde era realizado um trabalho com crianças. “O Índio não morava em Belém, morava em Ipixuna. Então de quinze em quinze dias ele vinha pra Belém, pra fazer o treino. Se ele não viesse para cá, todo o grupo ia pra Ipixuna. Ou então eu ia fazer o treino sabe” (WALQUIRIA FAGUNDES, entrevista realizada em 2018). Walquira, uma mulher da década de 1996, já tinha uma posição importante em um grupo de capoeira, pois também tinha a responsabilidade de passar treinos. Nesse sentido, de certa forma ela quebrava alguns estereótipos do patriarcado de subordinação da mulher.

As “travessias” de Walquiria contribuíram para que ela ganhasse notoriedade no grupo, especialmente pelo responsável. Estar em contato com angoleiros/as de outros lugares contribuiu para que ela se destacasse, sendo uma das lideranças do grupo. Isso contribuiu, também, para que ela não fosse bem vista por outros integrantes. Era uma mulher conquistando a liderança em um espaço eminentemente machista. “Nosso mundo está cheio de homens e mulheres que não gostam de mulheres poderosas. Estamos tão condicionados a pensar o poder como coisa masculina que uma mulher poderosa é uma aberração” (ADICHIE, 2017, p. 33).

As vezes as faltas de respeito elas são muito mais invisíveis do que visíveis. Que na verdade, a capoeira angola ela vai copiar o macrocosmo no microcosmo [...] Pra mim a capoeira é um jeito de eu me fortalecer como mulher, sabe. Mas, dentro do mundo da capoeira, eu dizia que eu era como se eu fosse um homem, pros meus amigos da capoeira. Porque eu também não queria ter nenhuma relação com capoeirista, porque todo mundo pega todo mundo, não respeita as relações (WALQUIRIA FAGUNDES, entrevista realizada em 2018).

Na fala de Walquiria, é possível depreender “falta de respeito” como assédio, violência, discriminação, dentre outras situações que vivenciadas nos espaços de capoeira. Além disso, essa a “falta de respeito” muitas vezes não são percebidas porque foram

naturalizadas pelos nos discursos, gestos e ações. “As desigualdades só poderão ser percebidas – e desestabilizadas e subvertidas – na medida em que estivermos atentas/os para suas formas de produção e reprodução” (LOURO, 2014, p. 125). Nas situações permeadas por desigualdades e diferenças a angoleira Walquiria precisou construir formas de resistência.

Dentre as experiências vivenciadas na capoeira, a angoleira teve um encantamento com o canto (figura 33). “eu descobri o canto dentro da capoeira angola, então eu achava um máximo quando um mestre deixava eu cantar, permitia que eu cantasse” (WALQUIRIA FAGUNDES, entrevista realizada em 2018).

FIGURA 33 - Grupo Angola dobrada

Da esquerda para direita: Bia (pandeiro); contramestre Índio (gunga), Walquiria (médio) e Cristiano (viola). Fonte: Acervo Walquiria

A imagem é de uma roda de capoeira ocorrida no quintal de Cristiano (Carimbó), no ano de 1997. Nesta roda, Walquiria está entre o contramestre Índio e Cristiano tocando berimbau. A imagem é histórica, uma mulher que toca o berimbau entre dois homens, num período em que as mulheres ainda eram muito invisibilizadas na prática. O canto faz parte do ritual das rodas de capoeira, este era cantado por mestres ou capoeiristas mais experientes.

as letras louvam personagens históricos, cantam os grandes mestres de capoeira, falam de concepções de mundo, valores morais, códigos de conduta, delineiam uma visão filosófica, louvam a Deus, descrevem os usos, costumes e folclores da Bahia, apresentam fragmentos da história do Brasil e recontam lendas e provérbios populares (BARBOSA, 2005a, p. 87).

Mesmo com essa afirmação ética, há o paradoxo do preconceito, assédio, violência ou mesmo as formas mais tênues, sutis. As letras de algumas cantigas de capoeira históricas estão sendo ressignificadas, desconstruindo a carga de preconceito, machismo e violência que elas carregavam e agregando aspectos que valorizem o/a capoeirista e sua ancestralidade africana.

No ano de 1998, a angoleira Walquiria recebeu uma proposta de trabalho em Salvador e retorna pra Bahia, deixando o grupo. Nesse mesmo período o contramestre Índio passa por problemas familiares e retorna para Minas Gerais. Com o retorno de Índio à Minas, o grupo fica sem uma liderança aqui no Pará e encerra suas atividades. Mas a história de Walquiria não termina aqui. No período que foi para Salvador, ficou treinando na FICA com o mestre Walmir, também chegou a treinar com o mestre Moraes.

Ai, nessa eu tô lá em Salvador. Passei dois anos lá e ia voltar pra Belém. Nessa eu falei: Não, eu vou viajar. Vou dar uma volta e lá eu parei em Minas e fiquei 2 anos lá, treinando com o Índio, né. Ai, eu fiquei de novo lá, e ele com um trabalho lá, fiquei 2 anos com ele lá treinando direto mesmo sabe. Mas, ai quando eu voltei pra cá, você fica meio assim. Eu digo assim, eu sempre sai daqui e tentava sair de Belém e nuca consegui. Quando eu vejo, eu volto [risos] e ai chegou uma hora que eu disse: ah, não vou levantar essa bandeira de novo, e em Belém. Eu sozinha aqui, porque nessa época, ainda tava lá do Edmar. O Bira tava naquele negócio, e, se era aluno do João ou não era. Ah! E ai, eu me lembro que quando eu voltei, eu fui dar aula na universidade, em Soure (WALQUIRIA FAGUNDES, entrevista realizada em 2018). A trajetória de Walquiria na capoeira está ligada a diferentes aprendizados, os quais só foram possíveis através do contato com diferentes grupos e mestres de capoeira angola. Nesse ir e vir, e com o processo de partilha de saberes, ela ia conhecendo mais sobre a capoeira angola. Apesar da “vadiagem” estar submersa no seu corpo de angoleira, ela se afastou por um grande período da capoeira. Sua rotina acabou contribuindo para que ela deixasse de praticar inicialmente a capoeira.

Nesse percurso de angoleira, Walquiria acabou engravidando e foi se afastando ainda mais da capoeira. Hoje ela tem um casal de filhos e pretende voltar a treinar. Nessas idas e voltas, ela começou a treinar em um grupo de capoeira em Belém, mas se afastou novamente, também tentou treinar na UFPA, mas não conseguiu se adequar ao grupo. “Nas voltas que o mundo deu, nas voltas que o mundo dá. Quem viaja pelo mundo tem história pra contar102” Walquiria pretende retornar as atividades de capoeira, pois como ela cita “essa capoeira não me deixa nunca”.

As mulheres capoeiristas atendem ao chamado “levanta a saia, lá vem a maré” mergulhando no mundo da capoeira, constituindo experiências históricas de lutas e resistências ao desenvolver as ações de jogar, tocar e cantar. Embora na trajetória dessas mulheres capoeiristas as relações de gênero tenham sido paradoxais, pois elas enfrentam o sexismo e o machismo, elas conquistaram reconhecimento dentro e fora da capoeira, se tornando referências nas lutas por visibilidade, tendo como apoio as pautas feministas.

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