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ANTECEDENTES EUROPEUS DA HISTÓRIA BRASILEIRA

No documento GILBERTO FREYRE (páginas 62-86)

Ao Brasil, país descoberto e colonizado pelos portuguêses, dá-se às vêzes o nome de América Portuguêsa. E com êsse nome de América Portuguêsa é geralmente considerado extensão da Europa, tão português permanece êle nas suas principais caracte-rísticas, português ou hispânico, para não dizer ibérico. Também católico, e como tal um ramo ou variante da forma latina de Cristianismo ou de civilização.

Mas a verdade é que nem essas origens nitidamente portu-guêsas ou hispânica-s, nem as suas raízes católico-latinas, fazem do Brasil ,simples e pura extensão da Europa como a Nova Ingla-terra, da velha InglaIngla-terra, e ainda, como a Nova InglaIngla-terra, do Cristianismo evangélico ou protestante que veio a predominar na América do Norte. E isto pelo fato universalmente conhecido de que a Espanha e Portugal, embora convencionalmente Estados europeus, não foram nunca ortodoxos em tôdas as suas qualidades, experiências e condições de vida européias ou cristãs, antes, por muitos e importantes aspectos, parecendo um misto de Europa e África, de Cristianismo e Maometanismo.

Daí concordarem os geógrafos em que a península hispânica é uma zona de transição entre dois continentes; e daí ainda o dito popular, de que os nórdicos algumas vêzes fazem uso tão sarcás-tico: "a África começa nos Pireneus".

Durante oito séculos a península hispânica ou ibérica, foi dominada por africanos. Árabes e mouros deixaram ali fortes traços de si próprios. Ainda que alguns autores modernos,

espa-nhóis e portuguêses, como Unamuno, por exemplo, desejem a completa europeização da Espanha e Portugal, outros, como Ga-nivet, sustentam que é procurando o Sul - e o Sul é a África -que Portugal e Espanha encontram a chave do seu futuro e a explicação do seu ethos.

f:ste conflito de opinião vamos encontrá-lo entre autores estran-geiros que se dão ao estudo da história social tanto quanto dos problemas culturais dos povos hispânicos. Enquanto uns, como por exemplo, o alemão Schulten, acham que uma das tarefas da Europa seria anexar definitivamente a Espanha ao sistema de civi-lização européia, outros, à maneira de Maurice Legendre, vão ao ponto de dizer que o elemento africano é um dos melhores e mais originais ingredientes da Espanha, e menos para ser repudiado com vergonha do que para ser reclamado com orgulho.

Legendre é um dos autores que destacam a semelhança entre a península hispânica e a Rússia como zona de transição, que representam, entre dois continentes: "Elle (Espanha ou Ibéria) est à Ia rencontre de deux continents comme la Russie" (1 ). E não somente, poderíamos acrescentar, entre dois continentes; entre dois climas, dois tipos de solo e de vegetação, duas raças, duas culturas, duas concepções de vida, dois complexos ecológicos.

E, como na Rússia, as concepções e condições antagônicas de vida dos hispanos - espanhóis e portuguêses - não chegam nunca a um ponto de equilíbrio sem muito conflito. Mas sempre o processo de fusão, de acomodação, de assimilação, mostrando-se poder maior que o de oposição. De onde poder-se dizer que os portuguêses e os espanhóis, da mesma maneira que os russos, por mais de um aspecto da sua vida social e cultural, revelam-se com a dupla personalidade do Dr. Jekyll-Mr. Hyde, que muito psicólogo tem estudado em certos indivíduos e muito sociólogo tem observado em certos grupos.

Isto não impede que, sob outros aspectos, russos e hispa-nos sejam não somente mais dramáticos, porém psicologicamente mais ricos e culturalmente mais complexos do que os povos sem aquela duplicidade de alma, que lhes desenvolve especial capaci-dade não apenas parã suportar contradições ma:s para

harmo-(1) Maurice LEGENDRE, Portrait de l'Espagne, Paris, 1923, p. 49.

A situação da península hispânica como zona ~e transição entre a Europa e a África é certamente, sob muitos e importantes aspectos, igual à da Rússia, descrita pelo Prof. Hans KoHN como "área em que o Oriente e o Ocidente se encontram pela sua história e pela sua natureza." 0rient and Occident, Nova York, 1934, p. 76.

nizá-las. E esta capacidade é que os russos agora nos revelam de uma maneira impressionante e que é a mesma, diga-se, já reve-lada pelos portuguêses e espanhóis nas fases mais criadoras da sua história; e entre os primeiros, como entre os últimos, revelada sempre através dos mesmos e clássicos métodos pelos quais indivíduos e grupos acabam resolvendo os seus problemas mais íntimos de personalidade.

De acôrdo com os modernos sociólogos e psicólogos sociais americanos, são fundamentalmente três as soluções conhecidas para êsses conflitos: 1) rejeição, usualmente por repressão, de um elemento ou interêsse, e a seleção de outro que lhe seja oposto;

2) cisão da personalidade em duas ou mais divisões, cada uma voltada para um interêsse ou objeto particularmente seu; 3) inte-gração, ou equilíbrio, de elementos antagônicos.

Ou muito me engano ou cada uma dessas três soluções clás-sicas é fácil de encontrar em uma ou outra das diversas fases do desenvolvimento social e cultural dos espanhóis e dos 1portu-guêses. A fase, porém, entre tôdas, que mais nos interessa é a que imediatamente precede a descoberta do continente americano e a sua colonização pela gente ibérica. É verdade que a prepara-ção social e psicológica - preparação inconsciente - daqueles dois povos para tão enorme tarefa veio a custar-lhes oito séculos:

os oito séculos de contato dos cristãos de Portugal e de Espa-nha com os árabes e os mouros que dominavam a península.

Se houve, então, como diz Fernando de los Rios, épocas de luta e de intolerância, houve também "maravilhosos períodos de compreensão e de cooperação". "Basta recordar", escreve Rios, - "que os três cultos do século xm - o cristão, o mourisco e o mosaico - eram celebrados num mesmo templo: o da mesquita de Santa Maria la Bianca de Toledo"(2 ).

Por outro lado, os períodos da dominação ortodoxamente Católica de Castela sôbre a chamada "totalidade hispânica"

parecem ilustrar a solução - ou tentativ~ de solução - de coexistência de antagonismos étnicos e culturais pela rejeição ou repressão de vários elementos e seleção de um grupo étnico, ou de uma religião ou de uma cultura, tida como a perfeita ou orto-doxa: a Inquisição teria sido o instrumento mais poderoso usado pela Espanha para chegar a êsse resultado. Apenas nem a centra-lização castelhana nem a Inquisição puderam reprimir certas di-(2) Fernando de Los R.Ios, "Span in the Epoch of American Civi-lization", em Concerning Latin America11 Culture, 'Nova York, 1940, p. 24.

ferenças ou neutralizar completamente o processo de acomoda-ção, no campo cultural, ou o amalgamamento, no biológico e étnico. Os Mozárabes (cristãos que viviam sob o domínio mu-çulmano), os mudéjares (mouros que viviam sob o domínio cristão) e os cristãos-novos (judeus completa ou superficialmente convertidos ao Cristianismo) tornaram-se na Espanha, tanto como em Portugal, poderosos demais, e demasiado penetrantes, plás-ticos e fluidos, para deixarem que a vida social e cultural dos espanhóis e dos portuguêses fôsse dominada por um grupo único, nitidamente definido e que se considerasse a si próprio biologi-camente puro (sangre limpia) ou culturalmente perfeito, segundo o padrão europeu ou o africano de pureza ou perfeição.

Bem dramáticas foram as lutas entre os que tinham o Cris-tianismo latino como o seu ideal de perfeição e os adeptos faná-ticos de Maomé ou de Moisés. Mas o resultado geral do longo contato dos espanhóis e dos portuguêses com os árabes, os mouros e os judeus resultou antes em integração, ou equilíbrio, de elementos antagônicos do que em segregação ou diferenciação ostensiva de qualquer dêles; ou em choques violentos entre êles.

Os árabes juntaram à língua portuguêsa e à espanhola rico voca-bulário de arabismos, fato êste que leva a conclusões socioló-gicas nada desprezíveis. Uma delas é que, em ambos os idiomas, os arabismos parecem dominar o vocabulário latino quando se trata de têrmos científicos e técnicos de importância, relacionados com a agricultura ou com a indústria extrativa. E certas expres-sões populares, como "trabalhar como um mouro", parecem explicar por que esta ou aquela parte da península considerada de "solo fértil" pelos autores árabes é considerada árida pelos cristãos. Um detalhe significativo é que na língua portuguêsa a palavra para a árvore que dá a azeitona, oliveira, é de origem latina, enquanto a palavra azeite, de uso corriqueiro, e que serve para designar o produto comercial extraído daquela planta, é de origem árabe.

Outros exemplos poderíamos destacar de como árabes e lati-nos, cristãos e judeus, católicos e maometanos fizeram da cultura espanhola e da portuguêsa ou, antes da cultura hispânica (porque se trata realmente de subculturas), das línguas e dos tipos étni-cos da Espanha e de Portugal, produtos mais ou menos harmô-nicos, mais ou menos contraditórios, de uma espécie de cooperação paradoxalmente competidora entre diferentes capacidades huma-nas, e talvez étnicas, e ainda, entre talentos diversos, culturalmente especializados; e até entre disposições antagônicas.

A diversidade regional proveniente das condições peninsu-lares do solo, da situação geográfica e do clima deve igualmente ser tomada em consideração por quantos se interessam pelos antecedentes do Brasil. Antecedentes europeus que não foram puramente europeus mas também africanos infiltrados na Europa hispânica; que não foram puramente cristãos mas também judaicos e maometanos; que não foram somente agrários (como poderia parecer pela importância dos senhores de terra nos primeiros dias de Portugal) mas também militares; que não foram somente indus-triais ( como poderia sugerir o esfôrço técnico dos árabes e dos mouros) mas marítimos e comerciais, pelo lado dos nórdicos e dos judeus. Antecedentes notáveis não apenas pela capacidade para o trabalho duro, contínuo e monótono de uns, e pela sua incli-nação, para a vida sedentária de campo, como pelo espírito de aventura e de cavalaria romântica de outros.

Na história dos espanhóis e dos portuguêses, a diversidade das condições físicas apenas cede em importância à dramática diversidade dos elementos culturais e étnicos; e por ela é que se explica que fôrças enormes postas no sentido de uma absoluta uniformidade de cultura, de caráter e de vida - como a violenta centralização do poder político em Lisboa, ou em Madri, a In-quisição, a Companhia de Jesus, e, já muito depois da desco-berta do Brasil, a ditadura, a um tempo eficiente e brutal, do Marquês de Pombal - não pudessem destruir entre os portu-guêses as diferenças, a variedade, o espontâneo vigor popular e regional.

Decerto que essas fôrças uniformizadoras foram necessárias ao desenvolvimento da Espanha e de Portugal como potências colonizadoras, tanto mais que havia bastante vitalidade social em cada uma delas para não se tornarem estritamente ortodoxas ou católicas no sentido religioso ou social que queriam os jesuítas ou que pretendeu a Inquisição; e para não perderem, tampouco, sob a pressão de governos fortemente centralizados, a sua diver-sidade regional de vida e de cultura. E foi ainda boa coisa que nem sempre essas fôrças uniformizadoras agissem de acôrdo, mas às vêzes se mostrassem antagônicas e entrassem em choque ou competição. Bom para a conservação de certas e sadias diferen-ças ou antagonismos que a Coroa estivesse contra a Igreja, por exemplo; e que a Companhia de Jesus estivesse às vêzes contra a Inquisição. Porque houve um período em que os próprios judeus tiveram os jesuítas como protetores contra a poderosa Inquisição. E o fato é que embora nominalmente expulsos, os judeus não desapareceram nunca da vida portuguêsa.

Aubrey F. G. Bell, que tão profundamente estudou a his-tória cultural dos portuguêses, é quem nos cita de um viajante polaco, Sobieski, estas palavras, escritas em 1611: "Há em Por-tugal muitos judeus, em tão grande número que várias são as famílias portuguêsas de origem judaica. Embora tantos dêles fôssem queimados ou expulsos, muitos vivem ocultos entre os portuguêses" (3).

Quando nos séculos xv11 e xvm se tornou moda entre os homens da melhor sociedade usar óculos para se darem assim ares de sábios e de cultos, muito judeu astuto, dos sefárdicos, pro-curou disfarçar o seu nariz semítico debaixo de tais óculos. E tanto cristão como judeus não parecem ter usado em Portugal anéis com pedras preciosas senão para mostrar o seu desprêzo pelo trabalho manual. :B.ste costume ainda sobrevive no Brasil.

A ostentação de nobreza pelos aristocratas portuguêses, fôssem cristãos ou judeus - porque os judeus de Portugal e de Espanha constituíram antes uma aristocracia do que uma plutocracia -algumas vêzes exagerou-se em formas grotescas, como, por exemplo, a de se associarem três aristocratas pobres para o uso de uma mesma e única roupa de sêda, tendo dois dêlcs que ficar cm casa sempre que o terceiro saía com a indumentária de luxo.

Certo viajante refere-se a médicos judeus que para se dis-farçarem melhor em cristãos, e melhor esconderem a condição judaica, prescreviam, na América Portuguêsa do século XVII, o uso da carne de porco aos seus clientes. E todos êsses judeus se faziam notar pelos seus cuidados com o vestuário, mesmo os que trabalhavam de carreiros, ou faziam outros serviços humildes., como os vendedores sefárdicos de "pan de Espaiía", em Esmirna.

Não raro era o próprio rei de Portugal quem protegia os judeus do seu reino contra a rigorosa observância das leis em vigor, leis inspiradas mais num ideal de pureza religiosa do que de pureza racial. :E.sse ideal de pureza religiosa veio a ter consi-derável importância política na fundação e no desenvolvimento do Brasil como Colônia politicamente católica de Portugal.

Assim é que houve tempo no Brasil em que, à chegada de navios, iam frades ao encontro dos passageiros vindos de fora,

1 não para saber da sua -nacionalidade, nem para verificar a ordem dos seus papéis ou examinar a sua saúde física, mas para indagar da sua saúde religiosa. Eram cristãos? De pais c!istãos? E até

(3) Aubrey F. G. BELL, Portugal of the Portuguese, Londres, 1915, p. 4.

que ponto ortodoxos? Como se fôssem autoridades de imigração ao serviço, ao mesmo tempo, do Estado e da Igreja, tais frades defendiam o país, não de doenças contagiosas ou de criminosos, mas de infiéis e de hereges. O herege era considerado inimigo político da América Portuguêsa: se fôss·e judeu teria que se dis-farçar em cristão-nôvo, embora secretamente continuasse judeu;

se protestante teria que se disfarçar em católico. · Parece, entre-tanto, que, quando eram ricos os judeus, verificava-s.e conside-rável contemporização ou acomodação no ajustamento dessas diferenças religiosas. Foram os judeus elemento de notável in-fluência na vida cultural e social de Portugal, não somente pela sua atividade comercial e pela sua capacidade para alargar os contatos cosmopolitas dos aventureiros cristãos lusitanos no co-meço dos seus empreendimentos marítimos, mas por outros mo-tivos ou razões. Não devemos, contudo, esquecer que, para tais empreendimentos, os portuguêses foram particularmente favore-cidos pela sua situação geográfica, e que desde os primeiros tempos grandemente influiu ,sôbre êles o mar. Alguns autores, referindo-se à porção do Oceano Atlântico que fica entre a costa ocidental de Portugal e a linha que vai dos Açôres à Madeira, dão-lhe o nome de "mar lusitano"; e diz Dalgado, especialista em geografia climática, que, tomado como um todo, o "mar lusi-tano" tem mais correntes do que qualquer outro mar da Europa - fato êste, acrescenta, que explicaria "a quantidade e a varie-dade de peixes que aí se encontram"(4). Kohl, outro espeqia-lista no as,sunto, há mais de meio século chamava Portugal "a Holanda da península ibérica", que também foi a comparação feita por Fischer, autor de um mapa que fixa a configuração da península hispânica.

Dalgado descreve Portugal como "o plano inclinado ociden-tal da península ibérica, pois que é a larga porção da sua super-fície exposta aos ventos oceânicos, do lado ocidental, que lhe dá o clima diferente que tem" (5 ). Diferente não apenas do ponto de vista da geografia física, mas do ponto de vista cultural e

histó-rico. Porque a história étnica e cultural de Portugal, a composi-ção profundamente heterogênea da sua populacomposi-ção, o seu cosmo-politismo comercial e urbano em oposição ao seu conservantismo agrário ou rural, tudo condiz com o Portugal "plano inclinado ocidental da península ibérica", de que fala Dalgado.

( 4) D. G. DALGADO, The C/imate o/ Portugal, Lisboa, 1914, p. 33.

(5) p. G. DALGADO, The Climate o/ Portugal, Lisboa, 1914, p. 42.

Para certos antropologistas, os iberos teriam sido os pnm1-tivos habitantes da península ibérica, havendo quem os descreva como mongolóides. Mas a verdade é que tantos foram os grupos invasores que se estabeleceram em Portugal - os ligúrios, os celtas e os gauleses, os fenícios, os cartagineses, os romanos, os suevos e os gôdos, os judeus, os mouro;;, os alemães, os fran-ceses, os inglêses - que seria difícil achar um povo moderno

de remoto ou próximo passado étnico e cultural mais heterogêneo.

E deve-se acrescentar que antes mesmo da descoberta e coloniza-ção do Brasil já a populacoloniza-ção de Portugal -se havia também mesti-çado ao contato de numerosos negros(6 ) que ali penetraram como escravos domésticos, e ainda ao contato de índios orientais, que tanto se fizeram notar pela sua habilidade como entalhadores e e banis tas.

Não surpreende, pois, a diversidade de tipos antropológicos e culturais que se vê entre os portuguêses. Alguns estudiosos do ethos português dão os fenícios, os cartagineses e os judeus como os primeiros animadores do espírito de iniciativa marítima que floresceu em Portugal, do século XIV ao século xvn. E admitem que os romanos tenham dado aos portuguêses a estrutura fun-damental da sua linguagem e de algumas das suas instituições sociais; e, por outro lado, que os mouros tenham deixado muito traço da sua influência, não somente nas instituições sociais, na linguagem, na música e nas danças de Portugal, mas também na sua cultura material - na arquitetura, na técnica industrial, na cozinha, na vestimenta popular.

A presença e a influência em Portugal dos cruzados fran-ceses e inglêses, com o seu espírito de aventura e o ,seu desprêzo pelo trabalho agrícola; a presença e a influência dos judeus, com o seu espírito comercial, e, como todos os judeus sefárdicos, com o seu desdém por qualquer espécie de trabalho manual, que com-pensavam com o seu excessivo entusiasmo pelas profissões inte-lectuais e burocráticas; as vitórias portuguêsas sôbre os mouros;

as conquistas dos portuguêses na Ásia e na África e a oportu-nidade, para a gente senhoril ou simplesmente cristã, de empregar no serviço da terra ou nas artes manuais a negros, a índios orien-tais e a mouros - todos êsses fatôres juntos parecem ter

desen-(6) L. A. Rebelo da SILVA, Memória sôbre a População e a Agricultura de Portugal desde a fundação da monarquia até 1865, Lisboa, 1865, p. 60.

volvido em grande parte da população portuguêsa o espírito de a ventura e os preconceitos aristocráticos que se descobrem nos primeiros portuguêses que emigraram para a América.

Na América Portuguêsa êsses preconceitos manifestaram-se em gôsto pela ação militar, em amor ao fausto, à ostentação e também às ocupações burocráticas ou ao parasitismo, em ativi-dades de escravocratas, dirigidas no comêço contra os índios, mas logo depois concentradas na importação de negros para as planta-ções quase feudais que alguns dos primeiros colonos portuguêses chegaram a fundar no Brasil. Felizmente para Portugal e para o Brasil, a aquisição dêsses novos hábitos não destruiu inteira-mente nos portuguêses de boa e antiga linhagem rural - nos chamados portuguêses velhos, que haviam de ser o elemento humano básico da colonização agrária do Brasil - o seu tradi-cional amor da agricultura. Homens como Duarte Coelho e os Albuquerques trouxeram de Portugal para o Brasil, além do espírito de avent_ura, um lúcido sentimento de continuidade social e o gôsto pelo trabalho longo, paciente e difícil.

Tinham êles o amor das árvores e da vida rural. Eram, por tradição, senhores rurais ou plantadores. Duarte Coelho descen-dia da nobreza agrária do norte de Portugal. O mesmo sucedescen-dia com sua mulher, D. Brites, que veio a ser a primeira mulher chefe de govêrno, na América. Da mesma região vieram para o Brasil numerosas famílias que acompanharam Duarte e D. Brites, algu-mas de parentes próximos do donatário ou de sua mulher. Vieram homens de prol e vieram lavradores. Os camponeses daquela região - região norte-atlântica - são em geral considerados pouco inteligentes; mas religiosos, com gôsto pela música, com rompantes de alegria, pacientes e pés-de-boi no trabalho.

Os portuguêses do velho tronco rural que vieram para o Brasil no século xv1, ficariam, entretanto, incompletos ou unila-terais sem os chamados "inimigos da agricultura", cujos traços predominantes foram o espírito de aventura, o amor das novi-dades, a clarividência, o espírito comercial e urbano, o gênio prático. Os plantadores portuguêses, ,com o seu profundo amor à terra e o seu conhecimento da agricultura, foram mais de uma vez enganados ou explorados no Brasil por aquêles compatriotas que se davam antes à aventura comercial e tinham a paixão da vida urbap.a - muitos dêles, provàvelmente, judeus. De certo ponto de vista, porém, êsse antagonismo foi benéfico para a Amé-rica Portuguêsa. Com o seu espírito de comércio os judeus urbanos tornaram possível. a industrialização da agricultura da cana doce no Brasil e o êxito da comercialização do açúcar

bra-sileiro. Por isto mesmo, êsse antagonismo não deve ser olhado, pelos que estudam a história colonial do Brasil, unicamente como um mal - admitido que fôsse um mal - mas como um estímulo à diferenciação e ao progresso.

Um dos melhores intérpretes da história econômica de Por-tugal, Antônio Sérgio, deixa claro, num dos seus ensaios, que a classe dos comerciantes portuguêses, estabelecida no litoral, teve, com a cooperação do rei, papel mais importante do que os pro-prietários aristocráticos do interior na formação de uma política nacional, ou antes, internacional, de animação à aventura marí-tima, com sacrifício das necessidades ou interêsses do interior do país. :Êste fenômeno foi também cuidadosamente estudado por J. Lúcio de Azevedo, talvez a maior autoridade no que diz res-peito à história , econômica de Portugal (7). E não faço senão resumir o que sugere Sérgio e o que explica Azevedo quando destaco a importância da precoce ascendência das classes comer-ciais na economia ou na vida de Portugal. Não é essa precoce ascendência fato para ser desdenhado nunca pelo estudioso, dos antecedentes europeus da história social do Brasil.

Como lembra Antônio Sérgio, Lisboa acabou por ser o pôrto marítimo onde se fazia a junção do comércio do norte da Europa com o comércio do sul; e devido àquela tendência para o .comércio marítimo e à importância dada pelos portuguêses aos portos de mar é que o problema de povoar a parte sul de Por-tugal, onde a agricultura sempre dependera de difícil e custoso serviço de irrigação, foi cedo abandonado. Desde que o prin-cipal comércio da Europa, a êsse tempo, era, como bem sabemos, de produtos orientais, os comerciantes portuguêses de Lisboa, alguns dêles judeus ou descendentes de judeus, logo tiraram van-tagem da situação geográfica da cidade, e também do fato de não ser o feudalismo em Portugal tão poderoso como em outros países da Europa, para se tornarem senhores da política nacional.

Transformaram essa política em corajosa aventura. A ventura cos-mopolita, comercial e, ao mesmo tempo, imperial. Aventura reali-zada através de esforços científicos, ou quase científicos, para descobrir novas rotas de comércio, novas terras e novos mercados para serem explorados. A ventura animada pelo ideal de Por-tugal cristão - oficialmente cristão - de converter populações pagãs ao Cristianismo. Essas populações seriam, ao mesmo tempo,

(7) J. Lúcio de AZEVEDO, Épocas de Portugal Eco11ômico, Lisboa, 1929.

No documento GILBERTO FREYRE (páginas 62-86)

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