• Nenhum resultado encontrado

3 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: REPERCUSSÃO SOCIAL COMO FATO

3.1 Lei Maria da Penha e a Violência Doméstica contra a

3.1.1 Antecedentes históricos à Lei Maria da Penha

Um antecedente legislativo à lei nº 11.340/06 ocorreu em 1995 com a publicação da lei nº 9.099/95 que introduziu a aplicação de penas não privativas de liberdade a certos crimes considerados de menor potencial ofensivo; o objetivo era desafogar o Poder Judiciário para que pudessem se dedicar, com mais ênfase, aos crimes mais graves, como o homicídio, o tráfico de drogas, o estupro, o crime organizado, o sequestro e outros.

Assim, os delitos menores acabavam atrapalhando o andamento dos processos dos crimes de maior lesividade. Em resposta a essa questão, a Constituição Federal estabeleceu em seu art. 98, I, que:

A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.

Todavia, o Poder Legislativo não elaborou de imediato uma lei nacional para atender o referido dispositivo constitucional, e somente após 7 anos da promulgação da Constituição, foi publicada a lei nº 9.099/95 que definia as infrações de menor potencial ofensivo, estabelecia regras para transação penal cuja pena não ultrapassasse um ano, desde que não houvesse previsão de rito especial.

Vale ressaltar que a maioria dos crimes julgados nos juizados especiais são lesões corporais de natureza leve, considerados de menor potencial ofensivo por não ultrapassar a pena de 2 anos, deixando de considerar a gravidade objetiva do dano, como nos casos de violência doméstica em que os danos são muitas vezes irreparáveis.

Nesse sentido, o caso em que a mulher que sofria violência doméstica com lesões corporais, recuperasse a saúde no prazo de 30 dias e não apresentasse nenhuma seqüela, era considerado o delito de menor potencial ofensivo com pena de 6 meses a 1 ano de reclusão, devendo ser julgado pelos juizados especiais, com pena restritiva de direitos ou multa e,

ainda, podendo ser convertida em cestas básicas ou prestação de serviços à comunidade – o que era um absurdo.

Com o surgimento da lei nº 11.340/2006 a violência doméstica não é mais considerada crime de menor potencial ofensivo, não sendo permitido a aplicação da lei nº 9.099/95, que foi instituída sob o prisma masculino e não na perspectiva de gênero, pois não leva em consideração a conduta delitiva de um homem contra uma mulher.

Com base nesses fundamentos, Cavalcanti (2008, p. 176) mostra que os juizados especiais, ao julgar conflitos conjugais, estão longe da ideia original de julgar litígios entre dois homens, enfatizando que:

A consequência dessa formulação que exclui o paradigma de gênero tem sido principalmente: (a) a banalização da violência doméstica; (b) a completa inobservância da participação da vítima e dos seus direitos e (c) o arquivamento maciço dos autos operados pela renúncia do direito da vítima de representar criminalmente. [...] Significa dizer que esta lei é imprópria para o julgamento da violência conjugal.

Ademais, o fato do despreparo de agentes públicos e de desconhecimento no campo da violência doméstica tem concorrido para uma atitude que banaliza esta violência, pois é necessário conhecer o funcionamento do seu ciclo e as suas sequelas, para uma melhor distribuição da justiça.

Ao se permitir que a violência doméstica seja considerada um crime de menor potencial ofensivo não se reconhece as consequências que podem surgir como o medo, grau de comprometimento emocional, ameaças constantes, violência sexual e muitas outras que acompanham as mulheres no âmbito familiar, que devem ser consideradas violações aos direitos humanos. Antes da Lei Maria da Penha, não existia nenhum dispositivo que tratasse de medidas de proteção à vítima, conforme exigido na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, em seu art. VII, item d, in verbis:

Art. 7º – Os Estados-Partes condenam todas as formas de violência contra a mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar- se em:

d. [...] adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade.

A Lei Maria da Penha veio justamente atender os reclamos da sociedade e das convenções internacionais de direitos humanos quando retirou do campo de aplicação da lei nº 9.099/95 os delitos oriundos da violência doméstica praticada contra a mulher, fazendo referência expressa em seu art. 1º, in verbis:

Art. 1º – Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Várias foram as discussões a respeito da constitucionalidade da Lei Maria da Penha, em face do princípio da igualdade, pois estaria privilegiando a mulher em detrimento do homem, por permitir um tratamento diferenciado a esta. Todavia, tal argumento não pode prosperar porque a Lei Maria da Penha está dando cumprimento às diretrizes constitucionais e aos tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil, conforme se infere o artigo supracitado. Cavalcanti (2008, p. 86) enfatiza que:

[...] a própria lei reconhece que o Estado brasileiro tem obrigação assumida quando da ratificação dos tratados internacionais citados, de promover o amparo das mulheres vítimas da violência doméstica e criar mecanismos eficientes para viabilizar sua ampla proteção. [...] as iniciativas de ações afirmativas, que esta nova Lei é um exemplo, visam a corrigir a defasagem entre o ideal igualitário predominante e/ou legitimado nas sociedades democráticas modernas e um sistema de relações sociais marcado pela desigualdade e hierarquia.

O art. 14 da Lei Maria da Penha estabelece que a União, Estados e Distrito Federal poderão criar varas especializadas para o julgamento de ações provenientes da violência doméstica e familiar contra a mulher, permitindo ainda, que qualquer pessoa possa registrar nas delegacias de polícia, denúncia sobre delitos em que haja lesão corporal, em virtude de ser considerada ação penal pública incondicionada após o advento dessa lei. Nos demais casos de violência doméstica que acarrete lesão patrimonial, moral, psicológica ou sexual, a ação penal é condicionada à representação de acordo com o Código Penal. É bom ressaltar que recentemente foi criada a vara especializada que tem como objetivo julgar os casos que envolvam violência contra a mulher.

Em fevereiro de 2007, a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) convidou organizações não-governamentais (ONGs) e instituições universitárias para apresentarem propostas para a criação de um Observatório de Monitoramento da Implementação e Aplicação da Lei Maria da Penha, o qual foi criado em maio 2007 com a finalidade de monitorar a implementação e aplicação da lei junto à delegacia, judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, executivo e a rede de atendimento à mulher, como também de procurar suprir a omissão que existe no país quanto à falta de dados e estatísticas sobre a violência contra as mulheres. Trata-se de uma ferramenta pioneira para monitorar a aplicação de uma norma com as peculiaridades da Lei Maria da Penha.

Vale ressaltar que com a criação do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Doméstica contra as Mulheres, em agosto de 2007 (BRASIL, 2008b), na abertura da II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres uma das ações a serem implementadas nos próximos 4 anos é a Consolidação da Política Nacional de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres e Implementação da Lei Maria da Penha; apesar de ter amplitude nacional, o Estado de Sergipe é uma das entidades federativas que não está dentro das prioridades de atuações do referido pacto.

A partir dessa lei a violência doméstica e familiar contra a mulher passa a ser considerada crime, devendo ser instruído através de um inquérito policial, encaminhado ao Ministério Público, e julgado nos Juizados Especializados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; ainda proíbe que o agressor seja punido através de penas pecuniárias, amplia as penas de 1 para 3 anos, e determina que as mulheres sejam encaminhadas a programas e serviços de proteção e de assistência social quando sofrerem violência doméstica.