• Nenhum resultado encontrado

3 PROGRAMA DELEGACIA LEGAL

3.1 Antecedentes históricos: avaliação política das estratégias de segurança dos

No Estado do Rio de Janeiro, diversas foram as estratégias utilizadas pelos governos na definição de uma política de atuação da polícia no período compreendido entre 1982 e 1998, caracterizado pelo movimento pendular entre a repressão indiscriminada e a aplicação dos direitos humanos desconectada à mensuração dos resultados objetivos, todas elas com baixos investimentos na estrutura do sistema de segurança pública. Após o período ditatorial, o ano de 1982 é um marco histórico do processo de redemocratização do país, quando, após 16 anos, novamente ocorre eleição direta para governadores estaduais, prefeitos, vereadores,

44

deputados estaduais e federais. O estado elege como seu governador Leonel de Moura Brizola, inimigo do regime que se erodia.

Em 1982 a polícia fluminense, liderada pelo então governador Chagas Freitas, tinha como hábito a repressão e alvo as camadas mais vulneráveis da sociedade, excluídas do processo de modernização e desenvolvimento do país. A célebre foto do Jornal do Brasil (Figura 13), de 29 de setembro de 1982, que mostrava a ação de policiais nos morros da Coroa e Cachoeira Grande, no bairro do Engenho Novo, subúrbio da Cidade do Rio de Janeiro, com seis homens negros amarrados pelo pescoço, supostamente bandidos, conduzidos como os antigos escravos, morro abaixo, retrata a violência dessa instituição, que incorria na aplicação arbitrária da força contra a sociedade (HOLLANDA, 2005).

“É mole de ver / Que em qualquer dura / O tempo passa mais lento pro negão / Quem segurava com força a chibata / Agora usa farda / Engatilha a macaca / Escolhe sempre o primeiro negro pra passar na revista [..]” Todo camburão tem um pouco de navio negreiro – Intérprete: O Rappa: 1994.

A estigmatização das classes inferiores e negros como criminosos era a tônica das instituições policiais, as quais deveriam utilizar como norte o princípio constitucional de igualdade. O início dos anos 80 é o marco nacional do aumento da violência no país, influenciando as ações de segurança pública baseadas em uma perspectiva penal e repressiva, conforme as ações militares dos anos de ditadura. Uma nova visão surge em contraposição a esta, percebendo o crime como um desvio próprio de uma sociedade excludente, cabendo ao Estado a intervenção na raiz destes males8.

8

A análise simplista de correlacionar violência e pobreza já era criticada por diversos autores no início dos anos 80, época em que esta visão passa a ser revista, requalificando os estudos sobre violência e criminalidade no Brasil (SOARES & SENTO-SÉ, 2000, p. 15).

45

Figura 13 - Capa Jornal do Brasil de 29/09/1982: "Batida policial nos morros de Rio de Janeiro".

Fonte: Jornal do Brasil, 29/09/1982.

O governo Brizola traz consigo uma nova ordem administrativa, relegando a um papel coadjuvante a segurança pública no estado, a partir da visão da educação como prioritária no processo de eliminação da causas da exclusão social. Não obstante os parcos investimentos de recursos públicos em políticas de segurança, novas diretrizes de atuação para as instituições policiais fluminense foram definidas, com arrefecimento das ações junto às comunidades carentes e atenção rigorosa aos direitos civis, sociais e individuais, buscando desassociar a imagem da polícia ao imaginário social de violência e de abuso de autoridade, fortalecida no período militar. Sua gestão traz ainda mudanças profundas na organização das polícias, extinguindo a Secretaria de Segurança Pública e promovendo ao status de Secretaria de Estado as polícias militar e civil, objetivando autonomizar as instituições e romper com a hierarquia militar consagrada (HOLLANDA, 2005).

O foco da tentativa de mudança do formato institucional das polícias foi na reestruturação da polícia militar e a valorização dos seus policiais, devido ao seu papel constitucional de policiamento ostensivo e a conseqüente maior proximidade da sociedade, o que levou a Polícia Civil fluminense a utilizar uma postura de insubordinação frente às diretrizes governamentais. Este posicionamento deveu-se a insatisfação com a remuneração, a

46

relegação da polícia civil nos investimentos públicos e o seu aparelhamento, além da visão contrária à estratégia governamental de ‘defesa dos criminosos’ (idem).

Segundo seus críticos, a preocupação excessiva com os direitos humanos, ao fim e ao cabo, constituiu uma estratégia permissiva e complacente com a criminalidade, resultando na sua consolidação como poder nas comunidades carentes. Além disso, a reprodução do conteúdo normativo da Declaração dos Direitos Humanos foi algo totalmente descolado da realidade, ocasionando uma compreensão distorcida do paradigma da contenção pelos policiais, assumindo uma postura de negligência e passividade não condizentes com o seu papel formal de intervenção na vida social (idem).

Em 1986 há uma sensação generalizada de insegurança, levando a violência e a criminalidade a assumirem centralidade no debate político. Neste contexto, Moreira Franco assume o governo em 1987, prometendo instituir a ordem no estado e acabar com a violência em apenas seis meses, como se a mesma fosse uma patologia de possível extirpação com a aplicação de um simples remédio. Este governo reedita o paradigma repressivo, percebendo a questão dos direitos humanos como elemento potencializador do crime, partindo para o enfrentamento ao munir o Estado das tradicionais estratégias de contratação de policiais, compra de armas e munição (idem).

Após os seis meses de governo, o prometido não ocorreu. Nenhuma estratégia foi capaz de dar respostas positivas aos crescentes índices de violência, tampouco de dissipar o sentimento de insegurança entre a população. Entre 1987 e 1990 os índices continuaram a subir, sendo que alguns indicadores chegaram a apresentar uma aceleração maior no ritmo de crescimento, e os criminosos começam a mostrar o seu poder de fogo, por meio do tráfico de armas e de drogas, e capacidade de cooptação das populações deixadas à margem da sociedade. A polícia mostrava-se cada vez menos preparada para enfrentar os problemas crescentes, e criava-se na sociedade fluminense, principalmente carioca, a disseminação do medo e do sentimento que se caminhava a passos largos para a anomia e a guerra civil (SOARES & SENTO-SÉ, 2000).

Em 1991 reassume o governo Leonel de Moura Brizola, determinando uma nova inflexão na política de segurança do Rio de Janeiro. O tráfico de drogas consolidava seu

47

poder, principalmente na capital, e a percepção da violência pela população era cada vez mais intensa, ressonando da população, mais especificamente da classe média, o apelo por ações mais duras, mesmo que em detrimento dos direitos humanos, como é possível observar nas palavras de Soares & Sento-Sé:

[...] Insegura, intuindo estar à mercê da vitimização a qualquer momento e

submetida a um verdadeiro bombardeio pelos meios de comunicação, a opinião pública passa a aceitar cada vez mais acriticamente a peroração de setores conservadores que ridicularizavam as intervenções favoráveis à adoção de políticas comprometidas com os pressupostos do Estado de Direito e com o respeito aos direitos humanos. Através de estratagemas retóricos pouco sofisticados, mas suficientemente eloqüentes para uma platéia em estado próximo à histeria coletiva, difunde-se o discurso que identificava o respeito aos direitos humanos à ineficiência e à permissividade com o crime organizado (SOARES & SENTO-SÉ, 2000, p.18)

A disseminação da visão de inoperância se solidificou ainda mais em 1992, quando ocorreu na cidade a ECO-92, momento em que o Exército assumiu o policiamento ostensivo do Rio de Janeiro em virtude da presença de autoridades e chefes de Estado. Como afirmam Soares & Sento-Sé (idem, p.19), “o ambiente ordeiro e tranqüilo que marcou os dias do encontro ficou gravado na memória da opinião pública e foi atribuído exatamente à presença das tropas do Exército nas ruas”, o que resultou em uma rejeição cada vez maior ao governo e a insatisfação quanto à política de segurança adotada. Este processo culminou com a Operação Rio, uma grande intervenção federal com a participação das forças do Exército, que tomaram para si o encargo de realizar o policiamento ostensivo na capital no ano de 1994, o que não resultou, porém, em queda significativa dos indicadores de criminalidade violenta (GAROTINHO et al, 1998).

Uma nova mudança ocorre com a eleição de Marcelo Allencar para o Governo do Estado, trazendo de volta o enfrentamento como diretriz principal das estratégias de segurança pública do Estado, ilustrada pela nomeação do General Nilton Cerqueira para o seu comando, homem ligado aos órgãos de repressão do Exército durante o regime militar. Com o general a Secretaria de Segurança Pública é retomada e junto a ela a opacidade dos dados referentes à

48

segurança, tratados como segredo de Estado, e a instituição da condecoração por bravura9, mais conhecida como ‘premiação faroeste’, que tornaram-se símbolos desta gestão.

Nas palavras do Coronel Helmo Dias, Subsecretário Operacional da Secretaria de Segurança à época, responsável pelo planejamento do combate ao crime e pela análise de dados coletados, nota-se claramente a nova estratégia: “A política de segurança do Estado é o

enfrentamento. Antes, os policiais do Rio estavam ausentes de suas áreas de atuação. A ordem, agora é o enfrentamento. É a nossa missão constitucional” (CERQUEIRA, 2001, p.69).A gratificação faroeste fazia a cada dia mais vítimas, e os policiais se transformavam em caçadores de recompensas. Os direitos humanos não eram respeitados, desrespeitando os cidadãos residentes em áreas carentes e a inviolabilidades de suas residências, na crença que o barraco em uma favela não era domicílio (idem).

Ao final deste governo, em 1998, os índices de criminalidade pouco se alteraram, não representando mudança significativa em sua rota crescente. Neste momento, a Segurança Pública passa a ter cada vez mais destaque no processo eleitoral, e Anthony Garotinho vence as eleições colocando a temática como prioritária em seu programa de governo. Este programa apresenta um amplo e ambicioso plano de segurança para o estado, pautado na necessidade de compatibilização entre o respeito aos direitos humanos e a eficiência policial, tendo como principais projetos a unificação das policiais militar e civil, o programa de treinamento e qualificação profissionais, a criação do Instituto de Segurança Pública (ISP) e reforma estrutural da polícia civil por meio do Programa Delegacia Legal (SOARES, 2000). Todo esse plano e, em maior profundidade o Programa Delegacia Legal, serão analisados nas seções seguintes, identificando suas características principais e seus processos de formulação e implementação.

9 Esta premiação condecorava os policiais que se destacavam no enfrentamento aos criminosos,

recebendo honras militares e gratificações, tendo como critério básico o número de bandidos mortos. Segundo Luiz Eduardo Soares, subsecretário de Segurança nos anos de 1999 e 2000, “era o incentivo à violência policial travestida de eficiência”.

49

3.2 Um novo plano para a segurança do Estado do Rio de Janeiro: a Política de