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Capítulo 3: A integração regional

3.3 A integração regional proposta

3.3.1 Antecedentes históricos do Mercosul

Os antecedentes históricos da criação do Mercosul podem ser rastreados ao fim dos ciclos autoritários no Brasil e na Argentina, o que permite aos dois países se aproximarem e buscarem a cooperação ao invés de escalarem suas diferenças e desconfianças, como faziam até ali (GRANATO, 2015). Paulo Visentini (2013) irá considerar essa aproximação como uma aliança estratégica de aspecto político, que se materializa pela primeira vez na assinatura do Acordo de Cooperação para o Desenvolvimento e a Aplicação para Usos da Energia Nuclear, em 1980, e se fortalece na inauguração da Usina de Itaipu dois anos mais tarde. Com a redemocratização dos dois países, na segunda metade da década de oitenta, e o contexto de crises econômicas exacerbadas nos dois países, com inflação disparada e dívida externa no teto, ambos os países possuíam desafios semelhantes: “encontrar uma nova estratégia de desenvolvimento que abarcasse [...] a modernização industrial, investimentos, mecanismos anti-inflacionários e efetiva negociação da dívida externa” (GRANATO, 2015, p. 75).

Assim, se ensaiaram já na década de 1980 os primeiros acordos de cooperação e integração econômica entre os países, respaldados pelas burguesias industriais desses países, almejando a construção de um mercado comum baseado em protocolos setoriais da indústria para uma integração gradual e simétrica (GRANATO, 2018b). Nesse momento, de aproximação bilateral entre Brasil e Argentina, o interesse econômico na união pode ser considera o motor do diálogo, mas não da maneira responsiva e determinante de uma globalização neoliberal. Até aqui, a parceria entre os países era considerada estratégica para superação de obstáculos comuns à periferia do capitalismo.

Contudo, a virada para a década de 1990 apresenta novas nuances ao Estado brasileiro. A eleição de Fernando Collor (1990-1992) introduz a agenda neoliberal às contas públicas brasileiras, o que alterará a orientação da parceria bilateral com a Argentina. A prioridade da pauta comercial bilateral é definida pelos dois países quando estes assinam a Ata de Buenos Aires, que cria o Grupo Mercado Comum. Naquele mesmo

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ano, na primeira reunião desse grupo, o Paraguai e o Uruguai já se fizeram presentes e discutiu-se a formação de um bloco multilateral com os quatro países (BARNABÉ, 2012a). É importante destacar que ao mesmo tempo EUA e México iniciavam as negociações bilaterais para o acordo comercial que viriam a formar o NAFTA e o regionalismo europeu, que contava com doze países envolvidos em 1990, já discutia união monetária e união política do bloco, assumindo em 1993 o título de União Europeia. Portanto, o momento do globo era de regionalismos.

Entre 1991 e 1994 o Mercosul tal como conhecemos é constituído através do Tratado de Assunção (1991), o Protocolo de Las Leñas (1992) e o Protocolo de Ouro Preto (1994). Aqui torna-se claro que as pretensões do bloco são comerciais, já que se definem o caráter de mercado comum a ser perseguida pelos membros, com direito a tarifa externa comum. Por mais que o objetivo de liberalização comercial e de uma relação especial de trocas com os EUA estivesse presente, não se pode ignorar os aspectos políticos que o Mercosul carrega ainda na década de 1990, uma vez dotado de “mecanismos para afiançar a democracia, a estabilidade política e a paz, bem como tentar estabelecer um padrão de relacionamento com os EUA alicerçado na confiança e no fomento do interesse comum” (BRICEÑO-RUIZ, 2013, p. 199).

Um aspecto que frequentemente passa despercebido quando se discute a formação do bloco é o papel relevante exercido pelas burocracias estatais dos países envolvidos. Mesmo que o contexto estivesse marcado pelo discurso de redução dos setores públicos, o movimento das burocracias de Brasil e Argentina nesse momento são decisivos e ilustram o que Oszlak (2003) comenta sobre a integração regional necessitar de capacidade burocrática por parte dos países envolvidos. Segundo as palavras do próprio Celso Amorim (2009, p. 7), que foi também ministro das relações exteriores de Itamar Franco (entre 1993-1994),

nesse momento crítico em que os países estavam fazendo uma abertura comercial muito grande para o mundo, foram principalmente, as burocracias de Estado que perceberam que, apesar dos riscos que poderia haver naquela abertura, havia também uma oportunidade para a integração, desde que nós soubéssemos aproveitar aquele momento, que já era caracterizado por certa abertura em relação a terceiros países, para fazermos uma abertura mais rápida entre nós mesmos.

Katz (2006) apud Fuser (2017) aponta que além dos auspícios de funcionários públicos, também tiveram papel relevante no desenvolvimento do processo empresas multinacionais e capitalistas sul-americanos, revelando quem possui interesses em uma integração a esses moldes.

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Além disso, em balanço de 20 anos do funcionamento do bloco, Barnabé (2012a) apontará como os principais pilares de sustentação do Mercosul: (i) os valores democrático como exigência primeira para os avanços integracionistas; (ii) o consenso como procedimento na tomada de decisões; (iii) a intergovernamentalidade como forma institucional do bloco; (iv) o gradualismo no processo de implantação de prazos, objetivos, procedimentos e condições previamente estabelecidos para condução do processo; (v) reciprocidade e isonomia nos compromissos assumidos pelos países- membros; e (vi) flexibilidade que se mostra evidente quando há a preocupação em garantir as soberanias nacionais e se recusa a supranacionalidade enquanto forma institucional.

Dessa maneira, o que se nota no papel voluntarista exercido pelas burocracias estatais, pelos discursos valorativos da parceria estratégica e das práticas negociadas, gradualistas e baseadas no regime democrático e deliberativo observadas na constituição e funcionamento do bloco, o Mercosul possui raízes no cálculo estratégico e racional observado na aproximação bilateral entre Argentina e Brasil no final dos anos 1980. Com os pilares do bloco fincados em bases estratégicas, os governos desses países durante a década de 1990 dão forma ao Mercosul sob a égide neoliberal, definindo quais seriam suas prioridades e institucionalidade. Dessa maneira, é uma forma de fortalecimento regional ainda que dentro das regras do jogo naquele momento, advindas do centro do sistema internacional (neoliberalismo).

Portanto, pode se falar em um interesse endógeno pela integração regional presente na formulação do Mercosul, ainda que adaptados aos zeitgest neoliberal daquela conjuntura. O Mercosul não foi somente consequência regional de uma globalização liberalizante que atendia meramente aos interesses hegemônicos dos EUA, mas uma maneira encontrada por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai de participarem do fenômeno denominado por Ianni (1996) de globalismo, cooperando em aspectos comerciais e produtivos mesmo estando na periferia do globo em um contexto neoliberal.