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Antecedentes jurídicos e interesses econômicos em torno da contrarreforma

4. A QUEM SERVE A CONTRARREFORMA DO ENSINO MÉDIO BRASILEIRO (LEI N O 13.415/17)

4.2 Antecedentes jurídicos e interesses econômicos em torno da contrarreforma

A reforma do Ensino Médio teve início com a discussão do PL nº 6840 em 2013 e o seu Substitutivo, a Medida Provisória nº 746/16 e o Projeto de Lei de Conversão nº 34/16. A medida que reconfigurou, de cima para baixo, o ensino médio. Seus defensores no governo e fora dele justificavam que o modelo atual era o responsável pela evasão escolar nem garantia a empregabilidade da juventude, que a escola média não atraía os estudantes e que a rigidez e o número de disciplinas eram os responsáveis pelo desinteresse dos alunos. As concepções de acumulação e de produção flexíveis, típicas do toyotismo, chegaram com força ao ensino médio brasileiro. A partir de agora era preciso flexibilizar o currículo e esvaziar os conteúdos das metanarrativas humanistas.

No texto da Lei 13.415, sancionado em fevereiro de 2017, deixa uma grande lacuna acerca do conjunto de conhecimentos básicos que devem constar na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) a serem aprovados pelo Conselho Nacional de Educação. O que vem a ocorrer vinte e dois meses depois da lei sancionada. As incertezas e preenchimento retardatário de lacunas da lei correspondem em grande medida as disputas nas quais a mesma está inserida. De um lado, o grande capital, multinacionais e seus organismos multilaterais, do outro, trabalhadores em educações e estudantes secundaristas, filhos da classe trabalhadora, nos quais se incluem também estudantes das chamadas classes médias.

Pouco mais de um ano após ter sido sancionada, a contrarreforma, influenciada pelas políticas do imperialismo para a educação, recebeu o patrocínio da ordem de US$ 250

milhões de um dos principais organismos multilaterais do grande capital, o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), empréstimo que foi aprovado pelas duas casas do Congresso brasileiro no dia 17 de abril de 2018. Em 18 de abril, foi publicada no Diário Oficial da União a Resolução N° 4/2018, do Senado Federal, que autoriza o governo brasileiro a pegar um empréstimo de US$ 250 milhões com o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), para o financiamento parcial do ―Projeto de Apoio à Implementação do Novo Ensino Médio‖.

Aqui, faz-se necessária uma digressão sobre a importância do endividamento do Estado para o processo permanente de acumulação primitiva de capital e controle externo do Brasil, seu ordenamento jurídico e sua educação, como elemento de reprodução social, pelo imperialismo.

A dívida pública, isto é, a alienação [Veräusserung] do Estado — tanto despótico como constitucional ou republicano — marcou com o seu selo a era capitalista... A dívida pública torna-se uma das mais enérgicas alavancas da acumulação original. Como com o toque da varinha mágica, reveste o dinheiro improdutivo de poder procriador e transforma-o assim em capital, sem que, para tal, tivesse precisão de se expor às canseiras e riscos inseparáveis da sua aplicação industrial e mesmo usurária. Na realidade, os credores do Estado não dão nada, pois a soma emprestada é transformada em títulos de dívida públicos facilmente negociáveis que, nas mãos deles, continuam a funcionar totalmente como se fossem dinheiro sonante. (MARX, 1984, p. 288)

Endividado, o Estado é alienado para o capital, no caso, o capital imperialista. Para Marx, o sistema colonial serve de estufa para ativar artificialmente, para acelerar a acumulação capitalista através do sistema de endividamento público. (idem, p. 286). Como esse pressuposto geral funciona exatamente em nosso caso particular, em nossa época, com as singularidades da nossa contrarreforma e seu generoso empréstimo? O governo federal se endivida com os organismo multilaterais do grande capital internacional que dita as regras da educação no Brasil e estreita em lato senso os laços de dependência externa do país. Simultaneamente o Estado transfere o capital tomado de empréstimo com o BIRD, em troca de supostos serviços educacionais estabelecidos e autorizados na contrarreforma, para o grande capital da educação com matriz no Brasil. Esse último aspecto, está na outra ponta da acumulação capitalista gerada pela contrarreforma às custas do empobrecimento também em

lato senso da população brasileira, empobrecimento pedagógico, cultural, econômico, que

compromete o futuro das novas gerações e do país.

Engatilhado nesse processo de endividamento do Estado brasileiro com o Bird para a execução da contrarreforma, correndo no âmbito do mercado mundial, outro processo gigantesco se maturou. Cinco dias depois da publicação da Resolução N° 4/2018 no Diário Oficial da União, em 23 de abril, a Kroton, anunciou a compra do controle da Somos

Educação (que até 2015 se chamava Abril Educação, pertencia ao grupo Abril, da Revista Veja), da Tarpon Gestora de Recursos, por R$ 4,57 bilhões (mais R$ 1,7 bilhão para grupos societários minoritários), a maior transação financeira da história da educação básica no país.

Antes da operação bilionária, a Kroton já era o maior grupo privado do planeta no ramo educacional, que se apresenta como o grupo ―Saber Serviços Educacionais‖. Em 2017, obteve um faturamento de 7 bilhões de reais. Agora, segundo a própria empresa, o grupo emprega 36 mil trabalhadores. A mega holding ampliou seus negócios em Escolas, Soluções Educacionais, livros Didáticos, Educação Básica, Ensino pré-vestibular e para Concursos, Cursos de inglês, formação de Professores e etc. É dona das editoras Ática, Scipione e Saraiva, 130 mil escolas e a cerca de 30 milhões de alunos em todos os estados da federação. Hoje é a principal companhia no segmento de educação básica e pré-vestibular Brasil, é dona dos sistemas de ensino SER, Anglo, pH, Maxi, Motivo, GEO, Sistema de Ensino Técnico, o Anglo Vestibulares, a rede de escolas pH, o Colégio Anglo 21, o Colégio Motivo e o Centro Educacional Sigma, o modelo de ensino O Líder em Mim, a rede de escolas de inglês Red Balloon, além da AlfaCon Preparatórios para Concursos. Em outras palavras, se a Kroton já era o maior tubarão do ensino privado mundial, agora ela se converteu em um Megalodon.

Madalena Guasco Peixoto, coordenadora da Secretaria-Geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) ―ligou os pontos‖, em seu artigo ―O Bird, a Kroton e os tentáculos privatistas sobre a educação‖:

Nada é à revelia. O relatório do Banco Mundial, no ano passado, defendendo, em outras palavras, a apropriação da educação pelo mercado, e o empréstimo de US$ 250 milhões que esse mesmo banco parece se dispor a dar ao País, embora tenha dito que o problema do ensino brasileiro não é falta de investimentos, trazem, por trás, um mesmo entendimento: para o setor privado, para o capital financeiro, para os grandes interesses internacionais, a educação brasileira é extremamente lucrativa. O fato de que, juntas, Kroton e Somos formam uma companhia com receita líquida anual de R$ 7,5 bilhões e valor de mercado de cerca R$ 29 bilhões, é prova disso. Lucram os empresários, os rentistas, o capital internacional. Sofre a educação brasileira. 44

E como sofre. Nunca sofreu tanto. O governo Temer tratou de demolir uma série de políticas educacionais públicas anteriores. Acabou com o Pacto pela Alfabetização na Idade Certa - PNAIC, através da Portaria MEC nº 1094, de 30 de setembro de 2016 45. Acabou com o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego, Pronatec, criado em 2011, por

44 PEIXOTO, Madalena Guasco. O Bird, a Kroton e os tentáculos privatistas sobre a educação. 27 abr 2018. Disponível em: <http://www.cartaeducacao.com.br/artigo/o-bird-a-kroton-e-os-tentaculos-privatistas-sobre-a- educacao/ > Acesso em 04 mar 2019.

45 Portal do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação do MEC. Portaria MEC nº 1094, de 30 de

setembro de 2016. Disponível em:< https://www.fnde.gov.br/acesso-a-

informacao/institucional/legislacao/item/9529-portaria-mec-n%C2%BA-1094,-de-30-de-setembro-de-2016.> Acesso em 5 mar 2019.

meio da Lei nº 12.513. O Pronatec distribuía ―bolsas formação‖ para o programa de Educação Profissional e Tecnológica (EPT), ampliando as redes públicas municipais, estaduais e federal de escolas técnicas e comprando vagas no ―sistema S‖ (Serviço Nacional de Aprendizagem: Senai, Senac, Senar e Senat) e em escolas privadas de educação profissional e tecnológica credenciadas, como o ―Sistema de Ensino Técnico‖, da Kroton-Somos Educação. Os governos Lula e Dilma criaram centenas de escolas técnicas federais. Segundo o Portal da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, vinculado ao MEC, ―de 1909 a 2002, foram construídas 140 escolas técnicas no país. Entre 2003 e 2016, o Ministério da Educação concretizou a construção de mais de 500 novas unidades referentes ao plano de expansão da educação profissional, totalizando 644 campi em funcionamento.‖ 46 Todavia, ao passo que multiplicou por três o número de escolas públicas profissionalizantes e técnicas no país, os governos do PT também incentivaram o empresariamento da educação desse nível, sem o qual nem políticas de renúncias fiscais, talvez pudessem ter ampliado ainda mais esses números em favor do ensino público. Temer acabou com o Pronatec, mas primeiro reduziu drasticamente o orçamento.

Segundo dados do Portal da Transparência, o montante gasto pela União com as parcerias estaduais e municipais, o Sistema S e as escolas privadas passaram de R$ 4 bilhões, em 2011, para pouco mais de R$ 142 milhões neste ano. Sob a gestão Temer os recursos do programa caíram de R$ 1,37 bi em 2016 para R$ 283 milhões em 2017.Nos últimos anos, o corte radical nos recursos do Pronatec reduziu para menos da metade as vagas nos cursos técnicos. O Governo Bolsonaro já sinalizou que o Pronatec será extinto a partir de 2019.47

No lugar do Pronatec, Temer coordenou o Plano Nacional de Qualificação de Capital Humano (já sabemos o que isto significa) e uma nova versão do Pronatec, para tentar ―elevar a qualidade da mão de obra do país‖, o Mediotec, destinado exclusivamente para alunos do ensino médio, suspendeu a criação de escolas técnicas federais, restringiu também o repasse dos recursos para os governos estaduais e a compra de vagas em empresas do ramo, como a ―Somos Educação‖. No mesmo anúncio, o governo, através do então ministro da Educação, o empresário Mendonça Filho (DEM), divulgou a liberação de recursos na ordem de R$ 850 milhões, dos quais, R$ 700 milhões para o Mediotec e R$ 150 milhões para um programa de fomento as Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral (EMTI), criado pelo Ministério da

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Portal da Portal da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, 02 mar 2016. Disponível em: < http://redefederal.mec.gov.br/expansao-da-rede-federal > Acesso em 02 mar 2019.

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MAZZINI, Leandro. Pronatec encolhe antes de ser extinto. Diário do Comercio Industria & Serviço. 02 jan 2019. Disponível em:< https://www.dci.com.br/colunistas/coluna-esplanada/pronatec-encolhe-antes-de-ser- extinto-1.769897> Acesso em 02 mar 2019.

Educação (MEC) por meio da Portaria nº 1.145, de 10 de outubro de 2016. 48. Depois de retirar mais de um bilhão de reais do ensino técnico nacional, a gestão Temer encena o lançamento de um novo programa com investimentos bem inferiores para uma formação de qualidade miserável destinado aos filhos da classe trabalhadora. Como bem critica a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação:

o formato pedagógico do ―novo‖ Ensino Médio – sobretudo sua orientação para a formação técnica de baixa qualidade (cursos de qualificação profissional, tipo eletricista, estética corporal, entre outros) – caminha na direção de um verdadeiro apartheid educacional, pois claro está que se pretende estabelecer diferentes tipos de escolas para diferentes públicos, com perspectivas distintas de futuro (leia-se: oportunidades desiguais para as classes sociais). 49

Tudo se relaciona com tudo, desde o aprofundamento do apartheid social, o genocídio da juventude (sobretudo pobre e negra), a redução da maioridade penal, todos esses fenômenos fazem parte de uma totalidade que se combina com a maior ofensiva orquestrada contra o ensino público brasileiro, que está sendo devorado por uma nuvem de gafanhotos do grande capital. A situação é resumida assim pela coordenadora da Contee:

Resumindo, tem-se que, após congelar por 20 anos os investimentos em educação no País, a opção do governo federal foi buscar empréstimos internacionais para pagar seu projeto de privatização do ensino no Brasil, abrindo as portas para a interferência direta do Banco Mundial. Vale lembrar que se trata da mesma instituição financeira internacional segundo a qual os gastos com educação no país são muito elevados, os resultados ineficientes e as soluções seriam precisamente as ―parcerias público-privadas‖ — ou, sem eufemismos, a venda da educação brasileira.

Está-se falando da privatização da escola pública com a total anuência do Estado, que se coloca inteiro a serviço do capital. Enquanto isso, a educação privada, que deveria ser somente uma opção democrática, sem disputar espaço e recursos públicos com a educação pública e gratuita, segue num processo intenso e perverso de mercantilização, financeirização e oligopolização do qual a compra da Somos pela Kroton é o mais recente e escabroso exemplo.

A chamada ―reforma do ensino médio‖ obedece a um plano traçado por setores monopolistas do empresariado para ampliar seus lucros apropriando direta ou indiretamente do filão do ensino médio que ao contrário do ensino superior, concentra ainda na rede pública quase 85% dos alunos. É por isso que fazem parte dos pressupostos da Lei 13.415/2017 as parcerias público-privadas apresentadas constantemente como soluções para os resultados medíocres frente aos supostos ―gastos elevados‖ em educação constatados pelas agências multilaterais do grande capital.

48 FNDE-MEC. Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral (EMTI). Disponível em:< http://www.fnde.gov.br/programas/programas-suplementares/ps-ensino-medio/ps-emti > Acesso em 02 mar 2019.

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CNTE. ―Avaliação sistemática da BNCC e da Reforma do ensino médio‖. Disponível em:< http://www.cnte.org.br/images/stories/2018/Avaliacao%20sistematica%20reforma%20ensino%20medio.pdf > Acesso em 02 mar 2019.

4.3 A Lei nº 13.415/2017: funções econômicas, pressupostos, orientações pedagógicas e