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PAÍS REATORES ATUAIS REATORES EM CONSTRUÇÃO TOTAL

4 Participação do Brasil no Regime Internacional de Não-Proliferação de Armas Nucleares

4.1 Antecedentes da posição brasileira

No capítulo anterior, estudamos a evolução da tecnologia nuclear no Brasil, verificando que, mesmo que de forma inconstante, o país desde a década de 50 tem buscando investir no desenvolvimento dessa área, como forma de garantir o domínio desse conhecimento sensível em suas diferentes aplicações. Inicialmente encarado como mero exportador de minérios atômicos, aos poucos o Brasil foi adquirindo as estruturas para os centros de pesquisa do país, sendo formadas as primeiras gerações de pesquisadores nacionais. Durante o regime militar, a tecnologia nuclear foi eleita como uma das áreas estratégicas necessárias para o desenvolvimento econômico e social do país. Nesse período, o país deu início aos grandes projetos que buscavam permitir a autonomia na geração de energia nuclear (inclusive na produção de combustíveis) e, eventualmente, colocar o Brasil entre as nações no “limiar” da nuclearização, alavancando assim seu status internacional. A estratégia adotada pelo país pendeu entre a a aquisição de equipamento e a transferência de tecnologia de fornecedores externos, e o desenvolvimento autóctone.

A partir da década de 90, as constrições internacionais, a crise econômica que assolou o país e a percepção de que o Brasil precisava readquirir sua credibilidade internacional levaram a uma relativa estagnação dos projetos nucleares brasileiros, os quais só ganharam novo fôlego durante o governo Lula. Verificamos que, na realidade, o governo parece ter investido boa parte do primeiro mandato construindo o consenso interno em torno do programa nuclear brasileiro, dando-lhe novo impulso mais precisamente em seu segundo mandato. Vimos ainda que essa recuperação não foi isenta de recuos, sendo ainda cedo para afirmar que o país decidiu levar a frente uma política nuclear de longo prazo. Vejamos agora se há similaridades no comportamento doméstico do país nessa área e seu posicionamento assumido perante o regime de estudo.

Argumentamos que a política externa brasileira para o regime internacional de não-proliferação desde a redemocratização do país em 1985 é caracterizada por um elemento de continuidade, consistente na adesão “resistida” ao referido regime. A despeito das mudanças de gestões e partidos políticos ao longo de mais de 25 anos, a política externa do Brasil nessa área, em maior ou menor grau, procurou inserir o país no regime de forma crítica, buscando abrir espaços de autonomia para o país. Essa política tem se dado basicamente por duas linhas argumentativas: a demanda pela desnuclearização geral e completa, e defesa do direito inviolável ao desenvolvimento da tecnologia nuclear (HERZ; MISSARI, 2012). Essas linhas mestras foram gestadas ainda na época da Política Externa Independente e ganharam diferentes variações durante as últimas décadas.

Dessa maneira, ainda no governo João Goulart, o Brasil buscou assumir uma posição crítica e autônoma em relação ao dois pólos da Guerra Fria, propugnando o desarmamento geral e também nuclear, como forma de atenuar as tensões advindas do embate internacional latente. Assumindo um discurso terceiro-mundista, o país demandava que os vastos recursos despendidos na corrida armamentista fossem redirecionados para o desenvolvimento social e econômico de países menos desenvolvidos e a construção de uma ordem jundial mais justa (CÔRREA, 2007).

Nesse sentido, umas das medidas mais significativas tomadas por essa gestão foi a proposta do chanceler Afonso Arinos de Mello Franco para a criação da Zona Livre de Armas Nucleares da América Latina (ZLAN-AL), como visto anteriormente. As ZLANs viriam a se tornar um dos instrumentos que compõe tanto os aspectos de desarmamento quanto de não-proliferação do referido regime internacional. Para o Brasil, sua eventual adoção seria uma forma de afastar o risco de uma corrida armamentista em seu entorno estratégico e restringir o raio de ação das potências nucleares. O governo Goulart capitaneou ainda em 30 de abril de 1963 a “Carta dos Cinco Países”, declaração conjunta de nações latino-americanas em favor da ZLAN-AL, atendendo aos interesses nacionais e ao mesmo tempo contribuindo ao nascente regime internacional de não-proliferação (FRANCO, 2008).

Com o golpe de 1964 e a chegada dos militares ao poder, o novo chanceler Vasco Leitão da Cunha assumiu com a missão de realizar uma “correção de rumos” na política externa brasileira, deixando de lado a política terceiro-mundista do

período anterior, considerada uma negação do país à sua identidade de membro da sociedade ocidental, bloco ao qual o Brasil deveria alinhar-se no conflito mundial (CERVO, 2010). Esse novo comportamento levou ao país a assumir uma posição de relativo distanciamento de iniciativas multilaterais, em especial aquelas com viés não- alinhado, que buscava contestar a ordem bipolar. Nesse contexto, o projeto da ZLAN da América Latina passou a ser capitaneado pelo México, tendo deixado de constar como um dos propósitos de Brasília: inicialmente, o novo governo colocou a segurança do continente contra uma possível ameaça nuclear soviética sob a responsabilidade dos EUA.

Como visto no Capítulo 2, foi no período do regime militar que o Brasil começou, ainda que de forma inconstante, a desenvolver uma política nuclear para o país. Nesse sentido, passa a ter destaque em sua política exterior o segundo elemento mencionado da resistências brasileira ao regime: a defesa do direito ao desenvolvimento da tecnologia nuclear nacional. No campo das negociações para a ZLAN-AL, o Brasil continuou a ter significativo impacto, agora como uma espécie de “efeito moderador” do projeto: enquanto a proposta mexicana para o futuro tratado previa a abdicação unilateral, ampla e irrestrita aos artefatos nucleares pelos países da região, a chancelaria brasileira apresentou uma série de condicionantes que, em conjunto, buscavam maximizar os compromissos de segurança em favor do país e limitar ao mínimo as concessões ao direito ao desenvolvimento nacional (tema que passou a ser intensamente debatido no âmbito doméstico nos anos seguintes). Dentre essas demandas, que viriam a ser incorporadas ao conceito das ZLANs, cabe destacar duas condições para a entrada em vigor do futuro tratado: ratificação de todos os países da região e NSAs de todas as potências nucleares para os signatários do documento (WROBEL, 1993). Dessa maneira, verifica-se que Brasília procurou não fazer concessões nas negociações internacionais sem efetivamente garantir compromissos formais das grandes potências e de seus satélites vizinhos de que um episódio como a crise cubana de 1962 não iria se repetir.

Nesse período, esses dois elementos se materializaram na oposição do país ao principal documento do regime internacional em estudo, o Tratado de Não- Proliferação de Armas Nucleares (TNP). Na qualidade de nação que foi colocada no “andar de baixo” do edifício legal que dividia o mundo em países proibidos de desenvolver armas nucleares e um seleto clube ao qual a posse desses arsenais era

autorizado, o Brasil passou a ser um forte crítico do tratado. Esse pensamento foi melhor expressado pelo diplomata João Augusto de Araújo Castro (ex-chanceler do governo Goulart), que caracterizou o TNP como instrumento central da política de “congelamento do poder mundial” voltada para a imobilização do quadro político- estratégico internacional resultante do final da II Guerra Mundial e consagrada na carta de criação da Organização das Nações Unidas (CASTRO, 1971).

O pressuposto dessa crítica brasileira, que foi gestado no regime militar, é a percepção de que o domínio da tecnologia nuclear é a chave para o desenvolvimento nacional e para a entrada do país no círculo das nações desenvolvidas. Lima nos esclarece, no entanto, que essa oposição durante o governo militar não se fundamentava na injustiça inerente à divisão artificial da comunidade internacional, mas sim pela tentativa (até hoje relativamente bem-sucedida) de impedir que o Brasil possa participar do “jogo de poder” internacional e eventualmente alcançar um status superior nessa ordem por meio da tecnologia nuclear (LIMA, 1986). Com o passar dos anos, essa oposição ao TNP (e seus documentos derivados) propagou-se nos demais setores da sociedade brasileira, encontrando ressonância até os dias de hoje entre diferentes atores governamentais e formadores de opinião do país (HERZ; MISSARI, 2012).

Acreditamos que Lima, em seu estudo sobre as contradições aparentes nas políticas externas dos chamados “países semiperiféricos” (i.e. potências médias ou emergentes) nos apresentou uma análise oportuna da política nuclear brasileira nesse período. Para ela, o Brasil pode ser incluído na referida categoria de países, os quais se caracterizam por terem passado por um processo mais profundo de industrialização a partir da década de 70, destinado a produção de bens para complementar a divisão internacional de trabalho. Esses países via de regra são marcados por um alto grau de integração comercial, industrial e financeira à economia mundial, por vezes tornando-se lideranças regionais. Esse modelo de inserção provoca distorções no desenvolvimento tecnológico e produtivo, gerando capacidades e vulnerabilidades distintas de acordo com o tema analisado. Para assim satisfazerem seus interesses individuais, países semiperiféricos tem de adotar estratégias diferentes em cada um dos setores de sua política externa (LIMA, 1990).

No tocante à política nuclear, o país adotou durante o regime militar uma estratégia dúplice, consequência de seu interesse em avançar na referida tecnologia e da

falta de incentivos para a adesão ao TNP e ao regime internacional de não-proliferação como um todo: como vimos no Capítulo 2, em seu âmbito interno o Brasil resolveu agir unilateralmente, desafiando a pressão internacional por adoção de salvaguardas internacionais e proibição de produção de armas nucleares, dando continuidade aos seus próprios projetos autônomos. No tocante ao regime, o Brasil seguiu o caminho de nações como Índia, Israel e, inicialmente, China e França (mencionados no capítulo I). Esses países optaram por tornarem-se “caronas”, recusando-se a assumir os encargos do sistema proposto, mas mesmo assim beneficiando-se deste. No caso brasileiro, isso se traduziu, por exemplo, em cooperações técnicas com a AIEA e com o próprio benefício de um sistema internacional mais seguro (LIMA, 1990).

Como explicar, nesse contexto, a assinatura do Acordo de Bonn, que previa a cooperação nuclear mediante a submissão às salvaguardas da AIEA? Segundo Lima, esse é um claro exemplo da tensão entre autonomia e dependência imanente às relações internacionais dos países semiperiféricos: por um lado, o Brasil à época tinha as condições político-diplomáticas para resistir de forma clara à adesão ao referido complexo de regras, mas a percepção no país é de que lhe faltavam os requisitos comerciais e tecnológicos para o desenvolvimento autóctone, sendo o Brasil obrigado a procurar um tradicional fornecedor de produtos nucleares do mundo desenvolvido e aceitar o escrutíneo internacional em suas instalaçãoes para realizar seus objetivos de desenvolvimento nacional (LIMA, 1990).

4.2 Governos Sarney e Collor: ABACC e a reconstrução da credibilidade