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Antecipação do futuro da humanidade

CAPITULO 5 – O DESTINO DO GÊNERO HUMANO

5.4. Antecipação do futuro da humanidade

A possibilidade do progresso não é garantia de que este, de fato, ocorrerá. Resta perguntar se há um critério de decisão quanto ao juízo sobre o curso da espécie humana na história. Os juízos precisam ser conectados a algum dado sensível para que a reivindicação de sua realidade objetiva possa ser confirmada. Por conseguinte, para antecipar a história do gênero humano no que diz respeito à sua destinação, é preciso apresentar alguma realidade factual como prova e evidência de que o gênero humano efetivamente realizará a sua destinação. A filosofia da história deixa de buscar recurso à natureza como providência para fundamentar a garantia do progresso para o melhor, e passa a alicerçar-se na referência aos dados sensíveis observados na natureza humana.

Ao perguntar sobre a aplicabilidade da teoria para a prática, Kant pergunta se há na natureza humana disposições que nos permitam dizer que a espécie está em progresso constante de saída do mal para o melhor (TP, AA VIII: 307). A ponte entre teoria e prática

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se apoia no sentimento de um dever moral inato ao homem como membro da série de gerações, considerando que cada geração traz consigo o sentimento do dever de atuar sobre a sua descendência para que esta se torne melhor. Com base nessa máxima do dever,

[...] poderei, pois, admitir que, dado o constante progresso do gênero humano no tocante à cultura, enquanto seu fim natural, importa também concebê-lo em progresso para o melhor, no que respeita ao fim moral do seu ser, e que este progresso foi por vezes interrompido, mas jamais cessará (AA VIII: 308-09).

Mas o que nos autoriza a esperar pelo melhor? Kant considera como indício a sensação de ânimo provocada pela hipótese de que, no futuro, as coisas possam ser melhores. O ânimo humano é receptível à ideia de progresso, impulsionando os homens à atividade de empreenderem suas forças na realização de um plano de progresso, ainda que a realização do bem que se espera implique um sacrifício cuja recompensa não seja colhida pela geração presente, mas se estenda ao bem das gerações futuras. Com efeito,

[...] no triste espetáculo não tanto dos males que, em virtude das causas naturais, que oprimem o gênero humano, quanto antes dos que os homens fazem uns aos outros, o ânimo sente-se, porém, incitado pela perspectiva de que as coisas podem ser melhores no futuro e, claro está, com uma benevolência desinteressada, pois já há muito estaremos no túmulo e não colheremos os frutos que em parte temos semeado. (AA VIII: 309)

O regozijo desinteressado com a expectativa do progresso para o melhor no mundo indica uma predisposição no ânimo humano que, em todas as épocas, continuará impelindo os homens a contribuir com o progresso para o melhor. Embora os seres humanos possuam uma sensibilidade moral para com o dever de progredir para o melhor, Kant observa que, em se tratando de seres finitos, “lidamos com seres que agem livremente, aos quais se pode, porventura, ditar de antemão o que devem fazer, mas não predizer o que

farão” (SF, AA VII: 83). Se não for possível antecipar que efeito resultará de uma

predisposição humana, a expectativa do progresso para o melhor continuará sendo somente uma hipótese. Ora, a realidade objetiva de um juízo sintético a priori da história não pode ser confirmada com base nas predisposições humanas, mas depende da sua referência a

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alguma realidade factual enquanto algo que se apresente de modo efetivo na história dos homens (Anth, AA VII: 329). A simples possibilidade de progresso não basta para antecipar os rumos da espécie humana na história. Para que se possa dizer o que há de acontecer, há que recorrer-se a exemplos que provem uma tendência para o melhor no gênero humano como um todo.

Em O conflito das faculdades, Kant trata da necessidade de apresentar um dado sensível em referência ao qual se possa provar a efetividade do juízo sintético a priori da história: “[...] o gênero humano (em geral) progride constantemente para o melhor” (SF, AA VII: 79). A realidade prática de um juízo a priori da história pode ser antecipada, à medida que este possa ser exemplificado num fato concreto da história da humanidade. Para dar sentido objetivo ao juízo de que o gênero humano, no seu todo, tende para o melhor, há que se apresentar como referência um acontecimento que, na história da humanidade, testemunhe um passo efetivo do gênero humano como um todo em favor do melhor. Para servir como prova, tal acontecimento deve caracterizar-se como um evento produzido no gênero humano de tal modo, que as suas condições não tenham sido determinadas por alguma particularidade, mas por uma condição que não dependa de fatores temporais. Por isso, tal evento não será visto em si mesmo como a causa do progresso, mas como indicativo de uma causa capaz de operar no gênero humano em qualquer tempo. Sendo assim,

[...] importa, pois indagar um acontecimento que aponte de modo indeterminado quanto ao tempo para a existência de semelhante causa e também para o ato de sua causalidade no gênero humano, permitindo assim inferir a progressão para o melhor. (SF, AA VII: 84)

Esse acontecimento é exemplificado em referência à opinião pública mundial que acompanhou as conquistas da Revolução Francesa com uma participação externa que apresentava em sua disposição de ânimo um “sentimento de entusiasmo” pela conquista da constituição republicana, o que não pode ter outra causa a não ser uma disposição moral no gênero humano. O entusiasmo manifestado pelo público mundial mostra uma tendência do

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gênero humano para o melhor, pois, mesmo com uma participação externa, a disposição do público como um todo manifestou um envolvimento no processo de conquista da constituição republicana. Esse caso específico, em que se constatou uma disposição presente no gênero humano como um todo em favor da república, não somente indica uma tendência do gênero humano como um todo ao progresso para o melhor, como também prova, mediante um exemplo na história, que o gênero humano, em sua disposição de ânimo, efetivamente realizou um progresso moral para o melhor (AA VII: 85). Tal exemplo de progresso enquanto amostra de uma disposição de ânimo, mantém-se viva na história da humanidade à medida que traz à tona, em todas as gerações, uma vivacidade que revela a sua disposição para o melhor. Nas palavras de Kant, “[…] semelhante fenômeno não mais

se esquece na história da humanidade, porque revelou na natureza humana uma disposição

e uma faculdade para o melhor [...]” (AA VII: 88).

O acontecimento fundamental não está nas grandes transformações e nos grandes feitos, mas no modo de pensar dos espectadores que manifestaram a sua participação ao abrirem o seu pensamento publicamente e tomarem partido, mesmo sem interesse próprio e sem estarem envolvidos nesse jogo de grandes transformações, e até sob o perigo de que a posição assumida pudesse lhes acarretar alguma desvantagem. Essa participação universal manifestada no entusiasmo, que não está enxertado no interesse próprio, indica uma disposição moral no gênero humano. O entusiasmo é decorrente de uma disposição moral, à medida que as transformações em curso são reconhecidas como realização dos princípios da liberdade do ser humano. O elemento central que entra em evidência é o homem, enquanto ser livre, que quer estar na condição de dar a si mesmo a sua lei em conformidade com a razão, considerando-se a si mesmo como autor de uma ordem que garante o direito. A história do progresso humano não dependerá mais da natureza ou da providência, mas é afiançada como uma tendência presente na natureza do próprio ser humano. O mecanismo da natureza, como garantia de que o homem obrigatoriamente tomará o caminho que promove o progresso para o melhor, cede lugar à ideia do esclarecimento do homem enquanto agente prático. O entusiasmo mostra uma disposição moral e não apenas natural, provando assim o caráter moral da espécie. E, à

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medida que seja possível apresentar uma referência sensível (um acontecimento na história da humanidade) como prova do progresso do gênero humano para o melhor, torna-se possível também antecipar a história da humanidade no seu todo. Não se trata apenas de esperança, mas de uma tendência que torna o progresso irretrocedível (Anth, AA VII: 324). Diferentemente de um juízo teleológico, que é apenas reflexivo e não determina algo sobre a realidade, ou de um juízo do dever, que expressa o que deve acontecer, os juízos da história contam com uma prova que permite fazer afirmações sobre o curso das coisas no mundo. Assim, podemos antecipar uma história de progresso da espécie humana.

Note-se que, em resposta à pergunta pelo progresso, a via de uma história a

priori do gênero humano está circunscrita ao sumo bem político. Enquanto fim último a ser

alcançado pelo gênero humano como um todo, o sumo bem político é a condição que assegura aos seres humanos um terreno propício para que se desenvolvam as suas predisposições e se viabilize a possibilidade para que todos possam autodeterminar-se segundo o princípio da liberdade. Justamente pelo fato de que não se espera por uma atitude ética particular, mas porque se trata de assegurar um comportamento coletivo ético, podemos contar com uma cultura ética que se incorpora nas inter-relações dos homens em vista da realização de um fim mútuo. O papel da política em si não consiste em produzir a forma mais agradável de viver, mas em garantir ao cidadão o seu direito à liberdade nas relações externas. O fim último da política, a paz entre indivíduos e Estados, por si só não resulta no sumo bem como objeto total e completo da vontade, mas é o terreno que precisa ser preparado para que o gênero humano se encontre em condições de realizar uma aproximação ao sumo bem. Enquanto garantia do direito à liberdade, a ordem política assegura ao homem a condição necessária (a liberdade) para que possa realizar a humanidade em sua pessoa. Uma vez que humanidade é a forma pela qual se unificam a virtude e o bem-estar nos relacionamentos entre os homens, podemos dizer que a condição de exequibilidade do sumo bem é reconduzida a uma filosofia da história que aponta uma sociedade cosmopolita. Isso não quer dizer que a exequibilidade do sumo bem se esgote na ação política, pois, em vista do seu fim último, a política não requer a moralidade e, por conseguinte, também não se ocupa da unidade entre virtude e felicidade compreendida no

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sumo bem.

Embora não se possa esperar do gênero humano uma revolução de ânimo moral, o envolvimento e a participação no aumento da cultura e no progresso civilizatório de modo desinteressado por todo benefício particular pressupõe um caráter moral. De acordo com o que Kant diz na Antropologia, quanto mais é promovido o aumento da cultura, tanto mais se fazem perceber e sentir entre os seres humanos os males que causam uns aos outros, pelo que se sentem constrangidos a submeter o seu senso privado à conformidade com o senso geral. A conformidade dos indivíduos ao senso comum autoriza o exercício da coerção civil, a que os homens se submetem mediante a consciência de que se trata de leis dadas por eles mesmos, gerando um sentimento de enobrecimento e de participação de uma mesma espécie (Anth, AA VII: 329). Esse modo de pensar suscita o sentimento de conformidade à destinação da espécie humana, sendo o desprezo por todo desvio de tal modo de pensar (como falta de caráter) um sinal de que a espécie no seu todo tem um caráter bom. Com efeito, o progresso no modo de pensar adequado ao caráter da espécie, enquanto disposição para a submissão do senso particular ao senso comum, expressa uma consciência ético-social que evoca um princípio de legitimidade para suas regras. A legitimidade das regras às quais todos se submetem tem de ser avaliada com relação ao que é comum a todos os homens, a saber, sua humanidade. Tomando-se aqui o conceito de humanidade de acordo com o que nos apresenta a Antropologia, podemos dizer que a legitimidade dessas regras tem como princípio de orientação a unificação do bem físico com o bem moral. Independentemente de um progresso do gênero humano quanto a sua disposição de ânimo moral, podemos esperar que, numa perspectiva cosmopolita, a via da legalidade produzirá os efeitos que são conformes ao caráter moral da espécie.

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CONCLUSÃO

De acordo com o procedimento de resolução dos problemas da razão pura, podemos afirmar que a realidade objetiva dos juízos sintéticos a priori em geral tem como condição de possibilidade sua interpretação e seu sentido em referência a um domínio de dados sensíveis. No caso dos juízos práticos, há que perguntar-se por sua exequibilidade no domínio das ações executáveis pelo agente humano, sendo, portanto, a sua realidade objetiva sinônimo de exequibilidade. Conforme mostramos, essa condição não é preenchida pela doutrina do sumo bem moral, pois, ao apoiar-se na imortalidade da alma e na existência de Deus como postulados da razão prática, Kant conduz a um conceito transcendente de sumo bem, inexequível pelo agente humano. Tratando-se de um juízo da razão pura, sem uma referência sensível, permanecemos sem garantia de que a doutrina do sumo bem moral não seja um discurso vazio de objeto e sem sentido prático para o agir humano. Para alcançar um sentido prático, a ideia do sumo bem tem de ser interpretada em referência ao domínio das ações executáveis pelo agente humano. Na resolução dessa questão, mostramos que o sentido moral do sumo bem é abandonado na filosofia tardia de Kant e perguntamos em que sentido a ideia pode tornar-se apta para o uso na vida dos homens. Com efeito, a partir da Antropologia, abre-se uma via para que os conceitos da razão, fundados sobre o conceito de liberdade, possam ser interpretados e aplicados. A fim de encontrar um modo de tornar os conceitos práticos aptos para o uso na vida dos homens, Kant toma como domínio de referência sensível a natureza humana de um ponto de vista pragmático. O estudo da natureza humana sob uma perspectiva pragmática nos fornece elementos que ampliam o conjunto de dados sensíveis, com referência aos quais se podem interpretar as ideias práticas em geral bem como atribuir-lhes sentido. Assim, a

Antropologia permitiu-nos encontrar um domínio de dados sensíveis em referência aos

quais se pôde interpretar a ideia do sumo bem, atribuindo-lhe sentido. Tomando como fio condutor a teoria de uma semântica transcendental, procuramos sustentar que, no Kant tardio, há uma modificação na interpretação e no sentido da ideia do sumo bem, não se

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tratando mais do sumo bem moral e sim do sumo bem moral-físico. Essa modificação de sentido se confirmou em referência aos dados sensíveis apresentados pela antropologia.

Diante da pergunta pela referência sensível da ideia do sumo bem, torna-se inevitável o enfraquecimento do sumo bem moral, e, a partir da transformação dos postulados em regras do “como se”, perdem-se as condições transcendentes que pretendiam propiciar a esperança de sua possibilidade como objeto transcendente. Essa mudança de sentido dos postulados na forma “como se” encontra-se já no texto sobre a Religião, sendo confirmada na Doutrina da Virtude, e também em textos como “Anúncio a um acordo próximo de paz perpétua na filosofia”, “O fim de todas as coisas” e, de modo decisivo, em trechos do “Opus postumum” (I e VII Convolut), que datam de dezembro de 1800 até fevereiro de 1803. Sem a afirmação dos postulados práticos como objetos, o sumo bem moral não é um objeto exequível, tornando-se necessário reformular o sentido prático dessa ideia da razão. E, no que se refere à relação da moralidade com a felicidade, podemos ver que, já na Doutrina da Virtude, a felicidade própria está desacoplada da moralidade.

Ora, enquanto ideia da razão prática o sumo bem é um conceito para o qual se espera encontrar uma aplicação prática; assim, o que se abandona é a resolução intentada pela doutrina do sumo bem moral, permanecendo ainda a ideia da razão como um problema a ser resolvido. Uma vez que, como objeto incondicionado da razão prática, o sumo bem contém em seu conceito a virtude e a felicidade, é preciso atentar para que não se perca esse aspecto na sua interpretação e aplicação. Para satisfazer o objeto total e completo de uma vontade que é, ao mesmo tempo, racional e sensível, o sumo bem tem de reunir a felicidade e a moralidade. Na resolução desse problema, procuramos mostrar que, na filosofia tardia de Kant, a doutrina moral do sumo bem é abandonada, sendo dada uma resposta em referência aos dados sensíveis apresentados pela antropologia. Com a ampliação do domínio de dados sensíveis práticos pela via da antropologia, tornou-se possível interpretar e conceder sentido ao sumo bem sem perder a perspectiva da unificação entre virtude e felicidade.

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agente humano, fornecendo um domínio de dados sensíveis em referência aos quais encontramos um sentido para o uso dessa ideia na vida dos homens. Esse sentido é alcançado quando se pergunta pelo conceito de humanidade em referência aos dados sensíveis observados no comportamento humano, que nos apresenta o homem como ser que naturalmente se dirige e empenha em produzir o seu bem-estar e, ao mesmo tempo, como ser dotado de uma sensibilidade moral. O modo de pensar adequado à humanidade refere- se, aqui, a uma existência humana que não se limita à noção clássica de humanidade fundada na forma pura de dignidade humana, mas leva em conta a condição sensível do homem. Há uma reformulação no modo de compreender a virtude, que não mais afasta o ser humano de sua natureza sensível e, desse modo, deixa de ser um conceito que diz respeito apenas ao caráter inteligível do ser humano. A virtude adquire um sentido mais amplo, aplicando-se à dimensão sensível do ser humano, que naturalmente se ocupa na busca pelo seu bem-estar. Mas não se trata de uma forma de virtude que pudesse estar simplesmente a serviço das inclinações. O conceito de virtude se torna apropriado ao ser humano sensível, cumprindo um papel no que diz respeito à realização da verdadeira humanidade no homem. Nesse sentido, o papel fundamental da virtude está relacionado ao bem viver enquanto adequação do bem-estar à forma de humanidade nos relacionamentos. Ao invés de afastar o homem de sua condição sensível, a virtude dirige-se à realização do bem-estar na tarefa de conduzir a um modo de promover um tipo de bem-estar que, ao mesmo tempo, convirja a uma forma de sociabilidade adequada à humanidade. Em sua tarefa, a virtude aplica-se a fomentar a prática de costumes que propiciam uma forma de sociabilidade que produz o bem-estar relacional e também se aplica à vigilância, para evitar que o homem enverede por formas possíveis de bem-estar na sociabilidade que causem dano à sua humanidade. Tanto a virtude quanto o bem-estar são aspectos fundamentais da humanidade no ser humano, e o caminho para a satisfação com a vida. Já não se espera mais a realização do sumo bem moral, mas alcançar uma forma de viver segundo o sumo bem moral-físico, no qual a virtude e o bem-estar se unificam numa perspectiva imanente. Essa unificação, conforme mostramos, é exequível no modo de vida em sociedade que produz o bem-estar através do compartilhamento mútuo nos relacionamentos entre os homens. Essa forma de orientação como princípio de vida é o que corresponde a um modo

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de vida adequado ao modo de pensar que é humanidade.

Kant exemplifica uma forma de sociabilidade segundo o modo de pensar que é humanidade, considerando os aspectos empíricos do comportamento humano numa boa refeição em boa companhia. A boa companhia, prolongada pela refeição, cumpre com o

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