• Nenhum resultado encontrado

Antonio José de Gouveia Freire Beltrão

No documento O CÁRCERE DOS INDESEJÁVEIS (páginas 135-143)

é bem desculpável, e ainda permitido aos desgraçados fazerem patentes a sua desgraça àquelas Pessoas que a Providência tem destinado para refúgio de infelizes.

Com estas palavras, o fidalgo Antonio José de Gouveia Freire Beltrão – nascido na Vila de Ançã, Bispado e Comarca de Coimbra, e o mais velho dos sete filhos de José de Gouveia de Almeida Beltrão, “fidalgo Cavaleiro da Casa de Sua

Majestade da Vila da Caropita, Bispado de Vizeu” – iniciou seu ofício ao secretário

de Estado da Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de Souza Coutinho, no qual relatava a injustiça que vitimara, a si e a sua mulher, levando-os a uma condenação de degredo na Amazônia portuguesa.

Encontramos Antonio José de Gouveia Freire Beltrão, em 1798, vivendo miseravelmente com sua mulher e filha em São Luiz do Maranhão. Há dois anos cumpriam uma pena de degredo que não tinha prazo previsto para terminar, estavam doentes e sobrevivendo às custas da caridade de particulares, “sem a qual

se veria obrigado a obrar coisas indecentes a sua qualidade e Nobreza”. Por estes

motivos rogava a intervenção de D. Rodrigo Coutinho junto a Rainha, para que esta lhes concedesse a revogação da pena de degredo ou uma licença, por dois anos, para irem ao Reino tratar das moléstias que os afligiam.

A triste história contada por Antonio José teve início em outubro de 1790, quando completou dezessete anos e adentrou o serviço régio, na qualidade de Cadete, no Regimento de Cavalaria da Praça de Almeida. Após algum tempo no serviço militar e por desejar, de acordo com suas palavras, “ser mais instruído nos

deveres” da profissão que escolhera, obteve uma licença real e passou a estudar

matemática na Universidade de Coimbra. Além de jovem, rico e nobre, dentro de pouco tempo, com os conhecimentos adquiridos, tranqüilamente galgaria os mais altos postos no Real Exército de Portugal. Um futuro próspero o aguardava, mas, como esquecer Rosa Joaquina?

Companheira de infância, Rosa Joaquina Rita Colaço Brandão, filha legítima do Dr. Joaquim Colaço Brandão, médico do Partido da Vila de Ançã, era aquela a quem Antonio José amava “extremosamente” desde a mais tenra idade. O decorrer dos anos trouxe aos dois a maturidade e o que parecia ser uma afeição singela entre crianças transformou-se em um grande amor. Foi esse amor desmedido que originou toda a desdita em que se viram, Antonio José e Rosa Joaquina, alguns anos depois.

Tomados por esta imensa paixão, acabaram “chegando ao excesso que

ordinariamente sucede”. Rosa Joaquina, “afiançada das repetidas promessas de Casamento que [Antonio José] Contínua e Constantemente lhe fazia”, se deixou

seduzir e ficou grávida. Esse evento deu início à seqüência de acontecimentos que levaram os dois amantes ao degredo no Maranhão.

O pai de Rosa Joaquina, ao tomar conhecimento do ocorrido, internou-a no Recolhimento do Paço do Conde de Coimbra, “sendo aí por Ordem Sua tratada

asperinamente”. Do outro lado, o pai de Antonio José, que sempre soube da relação

com todas as forças que foi capaz, casar o filho com uma prima “direita”. Entre Rosa Joaquina e a tal prima “honrada”, não havia outra diferença mais do que a primeira ser pobre e a outra rica.

Antonio José se viu atormentado com a situação em que se encontrava , por um lado sendo pressionado por seu pai a desprezar a sua honra e espírito cristão e casar-se com outra moça, e por outro, corroído pela angústia de ter que abandonar a mulher que amava e , se o fizesse,

deixava reduzida a última infelicidade uma menina, que não tinha outro crime mais do que o ter-me extremosamente amado desde a nossa infância, nem outro defeito maior do que o não ser rica, vendo que seria eu um monstro se faltasse a palavra de honra que lhe tinha dado, e com que ela se deixou persuadir.

Diante destas circunstâncias, Antonio José preferiu casar com Rosa Joaquina no dia 10 de janeiro de 1795. Apesar de não procederem a publicação dos proclamas, sabendo dos embaraços que poderiam advir deles, casaram diante do pároco da Vila e “com todas as mais solenidades que manda a Santa Igreja”. Certamente, esta atitude irrefletida e precipitada foi o maior erro cometido por Antonio José e Rosa Joaquina .

Imediatamente, o pai de Antonio José iniciou uma perseguição ao filho, acompanhada da grave acusação, inclusive na presença da Rainha, de este ter contraído um matrimônio clandestino. A Igreja denominava “matrimônios clandestinos” aqueles que se realizavam sem a presença do pároco e de duas testemunhas. Desde o Concílio de Trento (1545-1563), a Igreja empenhava -se em combater esta forma de contrato matrimonial:

Aqueles, que sem estar presente o pároco, ou outro sacerdote com licença do mesmo pároco, ou do Ordinário, e duas ou três testemunhas se atreverem a contrair matrimônio, o Santo Concílio os declara inábeis para por este modo contraírem; e semelhantes contratos os dá por írritos, e nulos, como com efeito pelo presente decreto os irrita e anula. Além disto manda, que o pároco, ou outro sacerdote, que com menor número de testemunhas, e as testemunhas que sem pároco, nem sacerdote assistirem a

semelhante contrato, e também os mesmo contraentes, sejam castigados gravemente a arbítrio do Ordinário.252

Sobre os casamentos clandestinos, em 1651, o Estado português entendeu que a punição prevista pela Justiça Eclesiástica não era suficiente para esse tipo de delito e, em colaboração com a Igreja, ordenou que,

Qualquer pessoa, de qualquer qualidade e condição que seja, que, da publicação desta em diante contrair matrimônio, que a Igreja declarar por clandestino, pelo mesmo caso, eles e os que nele concorrerem e intervierem, e os que no tal matrimônio forem testemunhas, incorrerão no perdimento de todos os seus bens, que serão aplicados a meu Fisco Real, e serão desterrados para uma

conquista destes reinos, nos quais não entrarão com pena de

morte; e não havendo herdado a herança de seus pais, ao tempo que o matrimônio clandestino for contraído, o pai e mãe o possam deserdar; e qualquer povo possa acusar este crime, depois de declarado o tal matrimônio por clandestino no Juízo Eclesiástico.253

Com esta séria incriminação e sem poder se defender, por ordem régia, Antonio José foi preso “sobre suas homenagens” e remetido ao Castelo de São Jorge no dia 21 de janeiro de 1795, ou seja, onze dias após o seu casamento. Decorridos oito dias de prisão, sem quebrar a homenagem concedida pela Rainha, foi metido em ferros e pesados grilhões e conduzido à Coimbra “como se fosse um

facinoroso”.

Ser preso “sobre suas homenagens” expressava ter feito promessa solene ou juramento de fidelidade ou de executar algo. Portanto, a segunda prisão de Antonio José contrariava inteiramente o texto do título 120 do Código Filipino que ordenava: “os fidalgos de solar ou assentados em nossos livros, (...) e os cavaleiros fidalgos ou

confirmados por nós, (...) não sejam presos em ferros, (...) serão presos sobre suas

252 O sacrossanto, e ecumênico Concílio de Trento em latim e português, 2 vols. Lisboa, 1807, pp.235-237, apud

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de Casamento no Brasil Colonial, p. 112.

253 SILVA, José Justino de Andrade e. Coleção cronológica da legislação portuguesa compilada e anotada por

(...) (1648-1656). Lisboa, 1856, pp.88-89, apud SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de Casamento no

homenagens, (...) no castelo da cidade ou vila onde o feito for ordenado”.254

Os matrimônios clandestinos eram da alçada da Igreja e à Justiça Eclesiástica cabia a responsabilidade das averiguações, cujo resultado era comunicado posteriormente à Mesa do Desembargo do Paço. Sendo assim, o caso de Antonio José foi enviado ao Bispo Regedor de Coimbra, que consumiu onze meses em minuciosas apurações e ao final, apesar das mais de cem testemunhas arroladas no processo, Antonio José foi julgado inocente pela Relação Eclesiástica de Coimbra, recebendo total absolvição e ordem para que fosse imediatamente libertado.

Entretanto, assim não se procedeu. Inconformado, o pai de Antonio José recorreu a outras instâncias e juízos, executando inquirições em locais onde ele nunca foi conhecido; em cujas inquirições eram testemunhas “os seus mesmos

criados, e compadres homens que pelo respeito, conveniência e temor são em todo o sentido de fácil corrupção”. Além disso, estrategicamente, procurou enxovalhar a

reputação da mulher de seu filho, enquanto este estava na prisão do Aljube, mandando um de seus irmãos, “com um criado atrevido”, saltar os muros e arrombar as portas do quintal da casa de Rosa Joaquina, para que ao saírem fossem vistos, “tendo então testemunhas que vissem sair aqueles vultos para provarem que ela era

uma prostituta, e indigna de ocupar o lugar de sua filha”.

Tendo em mãos os depoimentos, das inquirições e da suposta conduta da nora, José Beltrão voltou à Corte. Poucos dias depois, o coronel do regimento de Antonio José recebeu ordem para executar a sua baixa do serviço régio e o Corregedor de Coimbra para transferi-lo da prisão do Aljube para a cadeia da Corte; ordem que se estendeu a sua mulher.

Rosa Joaquina e Antonio José deram entrada na cadeia do Limoeiro no dia 13 de dezembro de 1795, permanecendo por cinco meses – tempo em que José Beltrão assistiu ao filho com dez mil réis por mês – até o embarque para o Maranhão, no dia 16 de maio de 1796. Somente quando chegaram na colônia foi que souberam, pela carta de guia, que haviam sido degredados sem tempo determinado e, de acordo com o desabafo de Antonio José,

254 Também gozavam desses privilégios os desembargadores, os doutores “em leis ou cânones, ou em medicina”,

com estudos feitos em universidade ou academia, os cavaleiros das Ordens Militares de Cristo, Santiago e Avis, os escrivães, da Fazenda e Câmara, e suas esposas, o mestre em artes, o licenciado, o bacharel e o advogado. Estavam excluídos alguns postos militares, como capitão, alferes e sargento, mesmo que tivessem privilégio de cavaleiros. Ordenações Filipinas – Livro V, Título 120 “Em que maneira os fidalgos e cavaleiros e semelhantes pessoas devem ser presos”, pp. 402-405.

sem crime mais que a vontade dos meus Parentes, e o que é mais cruel, sem ter o que comer vendo-me na precisa necessidade de andar feito pobre mendigo pedindo esmola de porta em porta para tratar da minha infeliz companheira e da nossa inocente filha; vendo- nos todos três mortos de fome nus e quase sempre doentes, fazendo-me meu Pai todas estas violências para ver / o que nunca verá / se eu faço alguma ação em que assentem bem os rigorosos castigos que ele me tem dado, e que desejaria prolongar até um infinito, se pudesse furtar a Deus este atributo da divindade, como para ver se pode deserdar-me, e ainda mesmo desnaturalizando-me, uma vez que eu daqui o não posso contradizer, e fazer patente a minha Justiça.

Ao final do ofício, Antonio José resumiu todo o seu infortúnio: havia estado preso por dezoito meses, em Coimbra e Lisboa, e sido degredado para o Maranhão pelo único crime de ter se casado contra a vontade de seu pai, o qual arquitetou inúmeros artifícios que contribuíram para que o seu primogênito e, portanto, imediato sucessor do seu morgado, fosse mandado para um “País tão remoto, sem lhe dar

alimentos, ou providência alguma para poder viver”.

Para reforçar a sua petição, Antonio José anexou os atestados que comprovavam o débil estado de saúde e a miséria em que se encontravam. O Dr. José Gomes dos Santos, médico do hospital militar da cidade de São Luis, garantiu que Rosa Joaquina estava

acometida de várias e diferentes moléstias nas suas prenhosas partes; acrescendo de umas hemorróidas cegas e internas, que a tem atormentado muito desde os primeiros dias, que desembarcaram para este novo Continente; concorrendo muito a grande necessidade e uma indigência em que vive com seu marido sujeitando-se a ir passando com esmolas, ou pequenos donativos, que lhe fazem algumas pessoas particulares.

Por sua vez, o cirurgião-mor do regimento militar, Manoel da Cunha, acrescentou que, tanto um como outro, padeciam de várias enfermidades porque o clima era “contrário as suas constituições, e (...) também a necessidade que passam

por falta de terem com que se possam sustentar, e seguir uma boa dieta nos curativos das suas moléstias, e jamais poderão lograr perfeita saúde neste país”.

Com este longo relato, atestados e súplicas, Antonio José colocou, a si e a sua família, nas mãos de D. Rodrigo de Souza Coutinho , buscando alcançar a clemência régia.255

Entretanto, José de Gouveia de Almeida Beltrão, mesmo depois de todo esse tempo, não perdoara o filho. Tão logo soube da petição de Antonio José intentou embargá-la encaminhando um requerimento a D. Maria I, no qual lembrava que este havia sido, por determinação régia, “perpetuamente exterminado para o Maranhão,

nos Estados da América” ao celebrar um “Matrimônio Clandestino com uma mulher de insignificante, e inferior qualidade”, e ainda, que as razões expostas pelo filho não

eram verdadeiras e seu perdão seria uma ofensa para si e para todos da sua família, “ao entrar desde já em Linha de família um filho, que pela sua inconsideração se fez

indigno das honras, das quais é participante a mesma família”.256

Apesar dessas amarguradas palavras, José Beltrão ainda pediu a rainha que se fosse de sua vontade e

na obrigação que tem todo Vassalo de a servir, e ao Público, que o dito seu filho continue o serviço militar, com a Patente que Vossa Majestade se dignar dar-lhe, no Regimento da Capitania, em que atualmente se acha; tanto para merecer no futuro o Real perdão, como para de alguma forma Lavar a mancha, que Lançou sobre uma família distinta, e ilustre, que se interessa em servir dignamente a Vossa Majestade.

Tendo em vista todas essas considerações, D. Maria I retornou a petição de Antonio José à Secretaria de Estado ordenando que não fosse atendida.257

Poucos meses depois, em setembro de 1798, o governador e capitão-general do Maranhão e Piauí, D. Fernando Antonio Noronha, confirmou ao Secretário de Estado que não deixaria o cadete Antonio José Beltrão sair da Capitania, conforme as determinações recebidas. Nesta oportunidade, D. Ferna ndo teceu críticas sobre o comportamento de Antonio José na colônia, sendo esta a primeira vez que alguém não envolvido em sua história se manifestou a seu respeito:

255 Resgate – AHU/MA, Doc. 7836 de 02 de janeiro de 1798. Toda as citações feitas até este parágrafo constam

deste documento.

256 Resgate – AHU/MA, Doc. 7952 [ant. 19 de maio de 1798]. 257 Resgate – AHU/MA, Doc. 7952 [ant. 19 de maio de 1798].

O desamparo em que aqui desembarcou juntamente com sua Mulher, comoveu ao coração destes habitantes, que alguns voluntariamente se juntaram entre si, e lhe fizeram uma mesada de trinta e tantos mil réis por mês, não correspondendo, porém gosto a este donativo, e levando uma vida a mais debochada, e

extravagante, lhe suspenderam este socorro; por escandalizar

aqueles mesmo, que contribuíram para a sua subsistência.258

No mês seguinte, D. Diogo de Souza, então governador e capitão-general do Maranhão e Piauí, se reportou a D. Rodrigo de Souza Coutinho esclarecendo que não tinha conhecimento dos antecedentes do caso, mas, assim mesmo, solicitava uma ajuda de custo para o cadete Antonio José, devido a sua indigência, e, da mesma forma, encaminhava um requerimento do mesmo.

Neste segundo requerimento, Antonio José retoma a sua súplica por perdão do degredo, discorrendo novamente sobre a injustiça do mesmo, uma vez que seu delito foi procurar uma “companheira eterna para a sua vida, uma mulher com quem

por força de Amizade procurou ligar-se, com o vínculo sagrado do Matrimônio na forma do Concilio, e Leis”; acrescentou que acredita va ainda não ter conseguido a

graça régia porque seus apelos não chegavam ao conhecimento do real trono, acusando as pessoas que o cercavam de estarem conspirando contra ele e a favor de seu pai.259

Mais de um ano decorrido, em novembro de 1799, um terceiro requerimento foi enviado para D. Rodrigo de Souza Coutinho. Antonio José Beltrão, incansavelmente, buscava o perdão da sua pena; desta feita argumentou que ignorava os motivos que o levaram ao degredo, que somente havia casado contra a vontade de seu pai com uma mulher que , “apesar de não ser Fidalga não é contudo

Vil, antes sim Nobre, filha de um homem formado em Medicina não falando nos seus Ascendentes, em cuja família se acham três Avôs com o Foro”, e que agora tinha

dois filhos, ambos inocentes das loucuras de seus pais.

Como das outras vezes, Antonio José não teve resposta para a sua solicitação, aliás a resposta que lhe coube foi anotada na margem esquerda da primeira página: ”Para se guardar que não tem resposta”. 260

258 Resgate – AHU/MA, Doc. 8109 de 12 de setembro de 1798. Grifo nosso. 259 Resgate – AHU/MA, Doc. 8153 de 25 de outubro de 1798.

Esta foi a última notícia que encontramos de Antonio José e Rosa Joaquina. Os rastros do casal terminam neste terceiro requerimento; inferimos, pela resposta registrada nele e a disposição de José Beltrão em deserdar o filho, que eles permaneceram no Maranhão “por toda a vida”.

No documento O CÁRCERE DOS INDESEJÁVEIS (páginas 135-143)