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2. MORALIDADE E PROGRESSO TÉCNICO

2.3 ANTROPOCENTRISMO PRÁTICO

Fizemos empréstimo do termo antropocentrismo prático, usado inicialmente por Dominique Bourg, a fim de devolver ao homem a centralidade da qual, embora tenha tentado, nunca pode se livrar. Não se trata aqui de celebrar o homem enquanto criatura perfeita ou salvadora; trata-se, na verdade, de reconhecer seu lugar diferenciado no mundo.

Bourg distingue dois tipos de antropocentrismo: um especulativo e um prático. Em sua versão especulativa, mesmo quando as narrativas tentam atribuir culpa ao homem por desrespeito ou desafio à natureza, por assim dizer, o homem ainda está no centro, é figura decisiva para a narrativa e para as ações envolvidas em tal fenômeno. No que chama de

antropocentrismo prático, aponta para a posição central, insuperável, que o homem ocupa em relação àquilo que pode fazer e dizer. Se o argumento se provar legítimo, podemos estar falando de uma revisão radical da ecologia política.

A moralidade é necessariamente um artifício humano e seu único agente possível é o homem6. Esta é a única criatura capaz de ponderar sobre os interesses, necessidades e propósitos alheios, e a única com disposição para agir de acordo com as conclusões a que chega7. Nesse sentido, a moralidade tem origem humana, ainda que sua finalidade não seja exclusivamente humana. Seria esta então antropogênica, e não antropocêntrica. A expansão da esfera de consideração ética tem garantido essa reforma nos padrões morais ao longo do tempo.

Curiosamente, entretanto, quando nos referimos a outros entes naturais, o cerne da discussão se altera. Expandir a comunidade moral para além do homem requer clareza sobre as diferentes experiências no mundo entre as espécies e ainda sobre quem ou “o quê” de fato pode ser autenticamente beneficiado pela consideração moral, e, possivelmente, legal. Na tentativa de superar o homem enquanto centro, os movimentos ecológicos tentam defini-lo apenas pela continuidade entre este homem e as coisas naturais. Tal ideia de continuidade chega a ser de certa forma irônica, uma vez que, em todo seu processo histórico, o homem pretendeu e executou justamente o contrário.

De início, é importante se dar conta de que: (a) a realização da moralidade só pode acontecer através de seu único agente possível, o homem; (b) o antropos ocupa consequentemente um papel central (antropocêntrico), o de criador e agente da moral; (c) o

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Moral agents are individuals who have a variety of sophisticated abilities, including in particular ability to bring impartial moral principles to bear on the determination of what, all considered, morally ought to be done and, having made this determination, to freely choose or fail to choose to act as morality, as they conceive it, requires. (REGAN, 1983, p. 151)

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Cf. Antropogenia/Antropocentria. Disponível em http://www.anda.jor.br/2010/09/06/antropogenia- antropocentria/. Acesso em 15 de março 2011.

papel central do homem no âmbito moral não exclui a possibilidade de extensão de benefícios morais a outros entes naturais.

Tais constatações podem parecer óbvias, mas a crítica radical ao antropocentrismo é uma constante dos movimentos ecológicos. Se pensarmos que, sob determinados aspectos, o antropocentrismo é uma barreira insuperável, o argumento convencional de tais discursos, ecocêntrico, vem abaixo. O discurso ambiental moderno pretende relativizar a ideia do sujeito de direito e do paciente moral8 para além do humano. O antropocentrismo abordado pelos teóricos das éticas ambientais é entendido de forma negativa e como obstáculo a ser superado. Nesse sentido o foco moral da concepção ética tradicional no ocidente (ética antropocêntrica, baseada no homem) deveria ser deslocado para o indivíduo senciente9 (ética senciocêntrica) ou para todos os seres viventes (ética biocêntrica). Provavelmente essas sejam as propostas ético-ambientais mais relevantes atualmente para nossa relação com o mundo natural. Todas divergem quanto ao critério utilizado para definir “quem deve morrer primeiro” 10, ou seja, quem está dentro ou fora da comunidade moral (homem, indivíduo senciente ou seres vivos).

Tentaremos ilustrar melhor o argumento com um quadro sistemático de tais proposições éticas:

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REGAN, 1983

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“Todo e qualquer interesse originado pela condição sensível e consciente de uma natureza é um interesse senciente. Experiências de dor e prazer são a referência básica a partir da qual um ser senciente configura padrões emocionais para interagir com o ambiente natural e social, que também aos animais aparece em permanente mudança. Para sobreviver e alcançar o próprio bem, os animais desenvolvem sua mente particular a partir das experiências de dor e de prazer, de bem-estar e de mal-estar, formando conceitos dos quais dependem para ordenar seus movimentos em busca do provimento biológico, social e afetivo. A mente de cada animal tem uma configuração específica (própria de sua espécie biológica) e uma forma de expressão peculiar a cada indivíduo”. (FELIPE,2008)

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TIPO Sujeito Moral Paciente Moral Tradição/Escola

Ética Antropocêntrica Homem Humanidade Grega, Hebraica

Ética Senciocêntrica Homem Animais Sencientes Utilitarista

Ética Biocêntrica Homem Organismos vivos Holística

Para efeito didático, não listamos as possíveis ramificações de tais éticas. O que estamos tentando frisar aqui, de qualquer forma, é que ainda que os pacientes morais mudem, se expandam ou se contraiam, o homem ainda é o sujeito que pode ou não fazer valer tais propostas, por assim dizer. Por hora, tal análise é suficiente para embasar nosso argumento sobre a inevitabilidade humana no centro de diversos processos.

Finalmente, o que o discurso ambiental moderno tem reclamado como o fim do antropocentrismo mais parece com um refinamento do mesmo, o homem continua no centro, mas de forma mais consciente, não no sentido consciencioso do politicamente correto atual, mas numa perspectiva mais inteligente, prática e responsável.

Ainda, se o antropocentrismo posiciona o homem no centro como provedor de sentido a todas as coisas, o especismo então o revela enquanto um ente moralmente superior por conta unicamente da espécie.

É Peter Singer quem populariza o termo especismo (do inglês speciesism), citado pela primeira vez por Richard Ryder em 1973. Com tal termo, ambos queriam apontar que a espécie não era critério suficiente de relevância moral e por isso não serviria para excluirmos os animais de nossa esfera de consideração. O termo especismo era, desde o início, uma analogia ao termo racismo, já que a esta altura, em termos gerais, já se era aceito que raça também não mais configurava um critério de relevância moral. Portanto, assim como a discriminação a partir da raça era chamada de racismo, a discriminação a partir da espécie foi chamada de especismo.

O termo especismo é importante para revelar a questão da chamada ética animal, pois provoca o deslocamento da moralidade de seu foco tradicional e traz a reflexão de que pode ser possível pensar numa consideração moral para além da espécie humana. Entretanto, deve ser analisado com as devidas ressalvas. O termo especismo sempre foi usado em analogia a racismo e sexismo, uma vez que hoje é politicamente correto não tomar raça e sexo enquanto critérios de inclusão ou exclusão moral. Ainda que exista diferença de cor entre as pessoas, em nenhum momento isso estabelece algum tipo de característica relevante para se atribuir moralidade diferenciada. O mesmo acontece com o sexo, já que o fato de ser homem ou mulher não deve, a priori, atribuir privilégios ao paciente moral. Assim, racismo e sexismo não são eticamente relevantes porque o que está em jogo não é a semelhança de cor ou de sexo e sim de interesses. O desenvolvimento da moral, nesse sentido, permitiu que seres humanos com características diferentes, mas com interesses semelhantes (portanto passíveis de compreensão), fossem tratados com igual consideração. Essa é a base do que Singer (2006) chamou de igual consideração de interesses.

Singer propõe ainda que façamos um esforço maior e estendamos esse princípio para além de nossa própria espécie; o interesse de um porco em não sentir dor, por exemplo, é semelhante ao interesse humano de também não sentir tal dor11. Nesse caso, ainda que com características diferentes, diferentes espécies partilhariam interesses semelhantes que, a priori, não deveriam ser hierarquizados arbitrariamente. A espécie, nesse caso, não configuraria relevância moral quando nos referimos à preservação de um interesse fundamental.

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Singer extrai essa argumentação de Jeremy Bentham, filósofo utilitarista do século XVIII, que num comentário, sobre a escravidão dos africanos pelos ingleses, disse algo que ficaria para sempre marcado na literatura da ética animal: “Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos dos quais jamais poderiam ter sido privados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser humano seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do os sacrum são motivos igualmente suficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade de falar? Mas, para lá de toda comparação possível, um cavalo ou um cão adulto são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, do que de um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim; que importância teria tal fato? A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas, sim, se são passíveis de sofrimento.” (BENTHAM apud SINGER, 2006, p. 67)

Singer retira então o foco da espécie, do antropos, da racionalidade, enfim, e define como critério de consideração ética a sensibilidade; no sentido de se ter a capacidade de sofrer ou de sentir prazer e, de certa forma, se importar com isso. Essa é a base do que chamamos de senciência. O autor relativiza, de qualquer forma, o objeto da ética para uma perspectiva senciocêntrica (ao invés de antropocêntrica).

O reconhecimento de interesse ao não-humano é um grande passo para o estabelecimento das perspectivas ecológicas no campo político. Nesse caso ainda é um feito maior, pois, não se trata apenas de uma intuição naturalista indecifrável na vida pública, mas se trata agora praticamente de “dar nome aos bois”, na medida em que começamos a falar de características específicas, e indiretamente de uma hierarquia dos seres. Falar numa hierarquia de seres vivos é algo que, por diversas vezes, soa no mínimo contra-intuitivo no âmbito da ética animal. Afinal, quem somos nós para definir tal hierarquia? Essa pergunta, ainda que aqui apenas com função retórica, pode ter uma resposta que talvez não agrade muito: Somos nós os seres com aparato tecnológico suficiente para interferir e destruir parte bastante significativa da vida terrestre, e ainda, somos nós os únicos com aparato moral para se importar com isso. Somemos isso a uma necessidade prática e real de se lidar com aproximadamente 1.750.000 espécies ao redor do planeta, com características e, em diversos casos, interesses diferentes. Andamos aí sobre uma linha fina e frágil composta por uma mistura de técnica, ética e ecologia, e todo cuidado é pouco se quisermos avançar nesse caminho.

Antes de qualquer coisa devemos entender que uma vez que estabelecemos novos critérios para sermos eticamente inclusivos, por assim dizer, escolhemos mais uma vez quem está fora da comunidade moral e mesmo que a escolha não tenha sido feita através da espécie, numa análise geral esta ultima acaba por vir à tona mais uma vez. Quando se escolhem novas características para definir moralidade, escolhem-se também as espécies que possuem tais

características. O padrão pode ter sido refinado, mas a hierarquização de espécies ainda está presente 12.

Observemos também que a abordagem do movimento de defesa animal tenta definir o problema frequentemente apontando para o que o homem não é, ou seja, em termos morfológicos, ele não é diferente de outros animais (difere apenas em grau e não em tipo, como nos mostra o legado darwiniano). Mais realista seria definir o problema apontando para o que o homem é, ou seja, um animal cujo processo vital é negar sua bestialidade através de técnicas. Num sentido prático, o que o diferencia dos outros animais não é apenas a autovalorização de sua espécie, mas o reconhecimento prático de seu potencial perante o mundo.

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Tal constatação não deve ser necessariamente moralizada. A constatação da hierarquia não necessariamente exclui a possibilidade de uma extensão da moralidade para não-humanos.

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