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Capítulo II – Antropologia pós-moderna: a emergência de um novo

4. Antropologia da ciência: os novos campos de pesquisa antropológica

Nas últimas três décadas, a sociologia do conhecimento científico têm voltado seu enfoque à análise de processos de construção de saberes e práticas sociais cotidianas, em uma posição antagônica às pesquisas tradicionais, concentradas nos resultados das investigações científicas. Nessas pesquisas de caráter etnográfico, é a ação cotidiana de cientistas em seus respectivos campos de atuação que se torna o próprio objeto de pesquisa. Essa perspectiva elaborada a partir de questões internas e externas à instituição social das ciências suscita novas possibilidades de pesquisa e reflexão para cientistas sociais.

É nesse âmbito que a antropologia da ciência, também chamada de etnografia da ciência, ou de antropologia do conhecimento irrompeu como uma maneira peculiar de submeter a própria prática científica como objeto cognoscível,

identificando questões particulares como o local ocupado pela ciência e pelos seus praticantes na cultura contemporânea, o seu crescente distanciamento da intelegibilidade geral, o ceticismo crescente quanto à autoridade científica e à possibilidade de existirem pesquisas isentas de juízo de valor. Acrescente-se que nas duas últimas décadas, a antropologia do conhecimento científico vem abrindo uma nova linha de pesquisa a partir do uso da abordagem etnográfica e da observação participante, não sobre comunidades tradicionais, mas sobre laboratórios científicos, instituições e grupos sociais urbanos em suas práticas cotidianas.

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a antropologia da ciência parte da tese de que a ciência é construída pelos homens, e não dada pela natureza. Os trabalhos de Bruno Latour, Karin Knorr-Cetina, M. Lynch, H. Garfinkel, S. Woolgar retratam o que acontece entre os cientistas em ação, observando, a partir das práticas adotadas dentro de cada respectivo contexto estudado, como o conhecimento é construído.

Mediante o emprego da etnometodologia, a antropologia da ciência estuda de maneira detalhada as práticas que compõem a produção de fatos sociais, enfatizando como essas práticas buscam garantir validade e legitimidade. Latour e Woolgar escreveram Laboratory Life (1979), considerado o primeiro clássico da antropologia da ciência contemporânea. Neste texto, os autores examinam os vários tipos de práticas lingüísticas que ocorrem em um laboratório de pesquisa científica, que além da comunicação oral e da geração de textos escritos envolvem "dispositivos de inscrição". Este último termo se refere a qualquer instrumento que forneça um registro simbólico, que pode ser um número, um gráfico, uma posição de ponteiro em uma escala, etc. O laboratório é o local de "organização da persuasão

através da inscrição literária". A realidade (como por exemplo a síntese de uma substância) é construída com ajuda dos dispositivos de inscrição, e todo fato científico é concebido como sendo uma "construção social".50

Pode-se afirmar, diante de tais considerações, que o conhecimento científico e técnico ocorre sempre em um contexto de tradições de pensamento e de trabalho, autoridades que controlam as fronteiras do legítimo e do ilegítimo, e crenças e consensos descritos, algumas vezes, como "paradigmas", e outras como o "componente tácito" do conhecimento (Schwartzman, 1997).

Importante ainda destacar a dupla dimensão da antropologia da ciência: a disciplinar e a meta-disciplinar. A citação abaixo, além de delimitar esse enfoque dicotômico, também apresenta a principal característica dessa abordagem etnográfica:

Enquanto a primeira dimensão pode ser apreendida quase intuitivamente como o estudo das ‘culturas científicas particulares’ que não são outra coisa que subculturas, portanto partes daquilo que nos vai contemplar mais especificamente o reino dos conceitos e das noções inerentes a um pensamento disciplinarmente domesticado, graças a um processo de socialização no interior dessas culturas. Contudo o toque característico da abordagem etnográfica – sem o qual ela não se diferencia da própria epistemologia, como disciplina filosófica –, está, a meu ver, no envolvimento total do pesquisador na prática da disciplina investigada, a ponto de tornar-se um ‘falante’ da linguagem científica veiculada pelos ‘nativos’ da comunidade da disciplina a par de um compromisso definitivo com a ‘empiria’, a saber, com o fato cultural, seja ele ‘datado’ ou ‘epistemológico’”. (Cardoso de Oliveira, 1988, p. 175)

Como se percebe dessa citação extraída do posfácio do texto Sobre o

pensamento antropológico, há toda uma preocupação no desenvolvimento da

50 “A ‘antropologia da ciência’ ajudou a romper as barreiras que tanto a epistemologia quanto a sociologia

tradicionais haviam erigido entre o mundo social, carregado de valores, conflitos, ideologias, mitos e imprecisões, e o mundo da ciência, idealizado como o reino na lógica, da razão, da técnica e da eficiência. Vista no seu que-fazer quotidiano, a pesquisa científica não seria mais nem menos ‘racional’ do que qualquer outra atividade humana. Os conhecimentos obtidos não derivam de uma lógica ou razão atemporais, nem de generalizações e abstrações obtidas diretamente da observação sistemática dos fatos. Eles surgem como construções provisórias e tentativas, desenvolvidas em um processo gradual de decisões oportunísticas, negociações e, em muitos casos, a imposição dos pontos de vista de uns sobre os dos demais.” (Schwartzman, 1997)

prática dessa abordagem etnográfica proposta. Isto porque apesar desses problemas de ordem prática não aparecerem quando a etnografia é feita sobre a própria antropologia - uma vez que o referencial lingüístico é compartilhado pelo antropólogo que propõe a meta análise –, se porventura uma outra disciplina seja enfocada pelo antropólogo, este sentirá a necessidade de incorporar a linguagem científica da disciplina objeto de pesquisa de modo que o habilite a compreender e compreender-se perante aquele universo estranho. Nesse âmbito pode ser colocada a questão da “epistemologia prática”, onde Geertz relaciona a “comensurabilidade de estruturas conceituais de uma comunidade de discurso para outra” (Geertz apud Cardoso de Oliveira). Exemplo disso poderia ser a necessidade do antropólogo estar familiarizado com a linguagem forense ou jurídica para que, assim, pudesse realizar uma antropologia do direito.