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Ao encontro das casas: construção e delimitação do campo

Capitulo I: Da literatura ao campo

2.1 Ao encontro das casas: construção e delimitação do campo

24 Esse ponto é geralmente entoado no momento de aclamação dos exus, para punir os faladores: os

linguarudos, quem fala o que não deve, o que não pode e o que não sabe, o início diz o seguinte: o saco

da veia já rasgou/ toma cuidado com a língua do falador (...) . O saco da veia já rasgou me remete a

expressão muito popular que diz: fulano tem o fato furado – significando dizer que aquela pessoa é fofoqueira e fala demais, tem a língua solta.

25 Onde é o campo? O campo é só o espaço físico delimitado pelo pesquisador para desenvolver sua

pesquisa ou o campo extrapola esse espaço definido? O pesquisador faz o campo também nas conversas com os seus colegas, em casa com os textos que ele dialoga? Encaro o campo em todas essas dimensões, apesar de neste momento, denominar de campo o espaço proposto para o contato in loco com os sujeitos.

No início do ano de 2006, solitariamente visitei o Centro Espírita Oxalá26 no bairro Potengi, para observar o serviço de caridade da Preta Velha Tia Maria do Rosário no atendimento da comunidade em seu entorno. Enquanto a entidade recebia os consulentes na sua capela, fiquei conversando com Damião, o ogã da casa. Contava-lhe sobre o trabalho que pretendia desenvolver. Nossa conversa se alongava e ele me falou de um terreiro existente nas imediações, mais lá embaixo descendo a rua. Seguindo sua orientação, e com a ajuda de algumas pessoas, cheguei até o Centro Espírita Oxum Opará.

Era o mês de janeiro, uma segunda-feira. A mãe-de-santo estava ocupada dando consultas. Fui até a frente da casa e chamei. Uma moça veio atender. Explicou a ocupação da mãe-de-santo e informou que os toques aconteciam nas terças-feiras. Como estava muito tarde, passava das 21:00 horas, precisei ir embora. Fiquei de retornar para conhecer melhor o espaço, fazendo-o apenas no mês de agosto do mesmo ano, onde passei a freqüentar os trabalhos, elegendo-a como uma das casas para a pesquisa.

O Centro Espírita Ogum Beira-Mar, foi o segundo terreiro escolhido. Soube por alguns colegas na Universidade, da existência de um rapaz chamado Chiquinho, funcionário do Restaurante Universitário, que pertencia a um terreiro. Posteriormente, fiquei sabendo de sua função de pai pequeno naquela casa. Fomos apresentados e, de imediato, ele me convidou para assistir uma sessão em sua casa, os seus exus iriam ser apresentados. Aceitei o convite e junto a alguns colegas, embarquei rumo ao Conjunto Nova Natal, no extremo norte da cidade. Havíamos combinado de avisar por telefono no momento em que chegássemos ao Bar Visual, como recomendado por ele. O Centro Espírita tem uma difícil localização, ficando complicada uma descrição do caminho para um desconhecedor do bairro Lagoa Azul. O caminho percorrido do ponto de ônibus até o centro leva em torno de 20 minutos de caminhada.

Inicialmente, por conta da localização dessa casa, resisti em incluí-la na pesquisa. Alguns aspectos particulares se destacaram como: não tocar para as pombas giras no momento ritual dedicado aos exus, preferindo invocá-las apenas no momento dedicado aos senhores mestre da Jurema Sagrada. Essa particularidade é usada como meio para a doutrinação dessas entidades evidenciando, num primeiro plano, algo singular não encontrado em outra casa. Geralmente as moças são convocadas duas vezes ao fim da gira dos exus e novamente na Jurema, mas no Centro Espírita Ogum

Beira-Mar o espaço indicado para elas era ao lado dos mestres. A primeira visita a essa casa ocorreu em março de 2006, retornando algumas poucas vezes nesse ano, passando a freqüentá-la mais intensamente em abril de 2007.

No processo de escolha do campo, pretendi incluir uma casa da Zona Sul, mas algumas dificuldades se apresentaram. O pai-de-santo contatado não estava realizando as suas atividades por causa de problemas de saúde e, na ocasião, a sua mãe também estava com a saúde fragilizada. Dessa maneira, sai em busca de outro terreiro. Tive a idéia de sair pelo bairro das Quintas, em direção ao bairro do Bom Pastor, próximo a favela do Japão, pois referências colhidas pelo Projeto Religiosidade na Cidade, apontam essa região como espaço onde, entre as décadas de 1940 e 1970, acomodou uma grande quantidade de terreiros. Eles encontraram uma região propícia para se expandirem. Atualmente, encontra-se casas com mais de 50 anos de existência.

Apesar das muitas advertências: não invente de ir, é muito perigoso lá, certo dia saltei numa parada de ônibus na Av. Bernardo Vieira, me dirigi para o outro lado da rua e adentrei numa das vias estreitas que descem para a favela do Japão. Uma das pessoas que subia a ladeira, ao meu encontro, me informou que havia um terreiro na rua dos Paiatis (av. 12) e dirigi-me para lá. Ao descer a ladeira íngreme, a paisagem descortinava o mundaréu de casas, amontoadas, descendo ladeira abaixo às margens do antigo riacho das Quintas, hoje transformado numa enorme vala por onde o esgoto daquelas redondezas se acumula e desce direto para os manguezais às margens do Rio Potengi.

Nesse dia, visitei três centros. Num deles, não tive a oportunidade de falar diretamente com o responsável. Nos outros sim, escolhendo a terceira casa para desenvolver a pesquisa: o Centro Espírita Xangô Mafilomã, localizado no bairro das Quintas, bem na divisa com o bairro do Bom Pastor. Segue abaixo a localização dos Centros Espíritas escolhidos e sua distribuição pela cidade, tomando o campus central da UFRN como ponto de referência:

Definidos os terreiros integrantes da pesquisa, a estratégia seguinte foi aplicar um questionário com os pais-de-santo dessas casas. A intenção foi de aproximação, estabelecer contatos com os dirigentes, ao mesmo tempo em que ia conhecendo o terreiro e seus integrantes.

Até esse primeiro momento, considerava essas pessoas como informantes, pois não tinha garantias quanto à obtenção do consentimento perante os dirigentes das casas, especialmente pelo pouco tempo de contato. Mas, na medida em que os laços foram se estreitando, mediante as visitas empreendidas nas sessões semanais, nas visitas formais, informais27 e no contato com outros membros da casa, o tipo de relação que fui construindo permitiu a minha inserção no campo e consequentemente a execução deste projeto.

A idéia de levar um roteiro para conduzir a conversa foi sendo abolida. Passei a adotar freqüentemente visitas informais, dando-me subsídios para encaminhar os temas pretendidos. De repente, percebi o envolvimento das pessoas com as minhas especulações, quando os assuntos tratados pela minha pesquisa eram livremente mencionados por eles. Óbvio que o termo “livremente” trás uma pretensa idéia de espontaneidade, como se a presença do pesquisador não causasse nenhum tipo de interferência ao meio. A cada contato, sentia-me na obrigação de informar sobre os objetivos do meu trabalho. Essa foi a maneira encontrada para estabelecer uma relação mais próxima, trazendo os sujeitos para entender e compartilhar das minhas questões. Acredito que deixei as pessoas mais familiarizadas com os encaminhamentos da pesquisa. Por isso, não só os pais-de-santo, meus principais colaboradores, como os filhos-de-santo passaram a contar suas experiências sem imposições da minha parte, assim como eu não me furtava de relatar as minhas também.

Por várias vezes me interpelaram. Os conteúdos dessas conversas geralmente tinham como temática: a organização da casa; os saberes religiosos, as relações travadas com os outros (religiosos ou não) e também sobre o mundo espiritual, demonstrando qual o interesse dessas pessoas. Aproveitava essas oportunidades para levantar questões priorizadas por minha pesquisa.

O registro em áudio das conversas se mostrou, em alguns momentos, bastante profícuo. Em outras situações tornou-se inconveniente, dado o desconforto com a

27 As visitas formais foram executadas através de contato prévio. Ao contrário desta, a partir da vivência

cotidiana e a abertura permitida, as visitas informais foram realizadas sem a necessidade de marcar horário.

presença do gravador. Em algumas ocasiões, lembrava-me de pedir para gravar, mas temia a quebra da conversa, impedindo sua continuidade. Por isso, as visitas informais foram estratégias criadas para tentar manter uma relação mais cúmplice em campo e é preciso dizer, indo além da obrigação de produzir um trabalho acadêmico. Colocando- me dessa forma em contato com as pessoas, aprendi a admirá-las e a considerá-las como muito próximas, considerando a peculiaridade das relações construídas com cada sujeito em campo. Não me interessava buscar relações comunicativas equiparadas, igualitárias, pois acredito que estas só existam na ordem do ideal. Meu interesse na pesquisa era estabelecer uma intimidade, construir uma relação de confiança (GEERTZ, 1978; CRAPANZANO, 1991a; SILVA, 2006).

Nos terreiros escolhidos, pude me envolver com os exus, dançar, cantar, beber e conversar com eles, principalmente com as pombas giras. Bater de ombros, saravado por Seu Tranca Rua. Convidado a bailar no meio da gira acompanhado por Dona Maria do Esculacho, moça despachada. Presenciar as provocações de Dona Maria Molambo desafiando a yiá (mãe-de-santo) do centro onde ela está, neste caso, assentada. Presenciar as bruxarias e sortilégios de Maria Padilha. Pude ouvir as entidades e percebê-las como sujeito, mesmo sendo através do vínculo que a une ao seu cavalo.

Foram nesses lugares que teci minhas teias, construí as minhas relações, onde vi olhares distantes e desconfiados se desmancharem em sorrisos e cobranças afetuosas:

pensei que você tivesse esquecido da gente! Cada lugar, como foi mencionado

anteriormente, possui suas especificidades assim como foi construída de maneira própria às relações e o modo de me colocar em cada um desses ambientes. Assim, procurei traçar perspectivas gerais sobre como eu planejei as minhas investidas e também como o campo foi construído. A seguir, caracterizo as casas escolhidas buscando, na medida do possível, com exemplos diferentes, fazer uma comparação entre elas.

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