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Capítulo 1: ver o verso e o anverso do objeto se

1.4 Ao revés da morte

No documentário de Machado as pessoas não morrem diante da câmera, nenhum cadáver é-nos mostrado, mas sentimos a presença da morte, revelada nas imagens das sepulturas, lápides, cruzes e flores no cemitério; nos cânticos e orações de encaminhamento da alma; nas leituras das certidões; nas falas dos entrevistados; nos objetos deixados; na negação da perda do outro.

Enquanto no documentário, Machado tece o desenho do luto sobre os relatos e elementos narrativos que a representam, no filme Cipriano a morte não está apenas nos elementos que a simbolizam, Machado a representa fisicamente. Bigail, a filha mais velha de Cipriano, não consegue aceitar a morte do pai: “pode ser que ele esteja morto, pode ser que esteja só sonhando”, mas a alma do velho vaqueiro já está aprisionada no cemitério em frente ao mar onde seu corpo deverá ser enterrado. Durante a vagarosa viagem empreendida pelos

39 Machado em palestra aos alunos de Imagem e Som na UFSCAR, na cidade de São Carlos, no dia 05 de maio

filhos para cumprir os últimos desejos do pai, os três encontram as velhas rezadeiras, os demônios e a morte personificada.

Machado, tal como em Um Corpo Subterrâneo, não esclarece ao espectador as causas da morte do personagem, sabe-se apenas que “um dia ele [Cipriano] acordou com medo... e calou-se, não falou mais”. 40 Essa informação nos dá uma breve pista de que sua

morte sucedeu no repouso do lar e significa ‘silêncio’. A morte do personagem que dá nome ao filme está diretamente associada à perda da linguagem, da expressão: ele já não se move, suas feições são impassíveis, ele não fala, os olhos estão abertos e vazios: “sua fisionomia expressa a verdade intolerável, incompreensível para a maioria, de que um dia acordamos e não sentimos mais nada ... o silêncio é mais radical que o suicídio?” (CURY, 2001, p. 3)

Figura 01 – A “morte” no filme Cipriano (still) Crédito: fotógrafa Maria Liljeblad

Diferentemente do personagem Cipriano, cujos movimentos e expressão cessaram, o ser-morte (ou, o que resiste à morte física) tem um corpo andrógino que dança na noite à espera do cortejo fúnebre, “moldando covas no ventre”. (CURY, 2001, p. 5) À espreita, coberto de cinzas, como para lembrar-nos da decomposição do corpo: “és pó e ao pó retornarás”;41 sem pelos, veste uma longa saia branca e porta uma faca. Os movimentos da

morte se configuram em uma dança vagarosa, enigmática e sensual – simultaneamente sedutora e aterradora. Sob a penumbra, o corpo se camufla na paisagem noturna; aos poucos a morte é revelada ao espectador: os primeiros planos são fragmentos de seu corpo, em seguida, a montagem alterna planos gerais e primeiros planos até chegar ao close up que ancora a

40 Trecho da fala do personagem Vicente, no filme Cipriano. 41 Citação da Bíblia Sagrada, em Gênesis (Capítulo 3, versículo 19).

conversa com Bigail. É possível, pelo menos na ficção, ‘encarar’ a morte. É essa mesma morte que avisa “o tempo já era previsto”; contudo, não se sabe determiná-lo. A morte, mesmo na ficção, é puro acaso.

Os diferentes modos de representar a morte escolhidos pelo cineasta, na ficção e no documentário, compõem o projeto de produzir dois filmes que falassem de morte: um na escuridão, o outro, à luz do dia. A relação entre os dois é temática, como já vimos, e modal: as cenas finais de Cipriano ocorrem no mesmo cemitério onde vemos Machado iniciar as imagens de Um Corpo Subterrâneo. Este não representa, portanto, uma simples viagem de norte ao sul do Estado, mas a volta (ou o caminho de volta) de ‘Cipriano’ ao sertão.

Figura 02 – foto still do Cemitério São José em Cajueiro da Praia (acima)

Figura 03 – Frame da sequência final do filme Cipriano, no mesmo cemitério.

As duas narrativas se complementam e constituem-se em “duplo”, uma a face da outra ou uma como o avesso da outra: plano espiritual / plano terreno; vida após a morte/ morte após a vida; alma/corpo; escuridão/luz; terra/mar e mar/terra; dentro/fora e fora/dentro; presença/ausência; finitude/eternidade; horror/beleza. A bipolaridade dos elementos nas narrativas está intrinsecamente ligada à viagem. Ambos os filmes trabalham com percursos. Na ficção, a família sai de sua casa no interior piauiense em direção ao litoral (dentro/fora); no documentário, a partida é do mar e, deste, adentra-se o Estado, rumo ao sertão (fora/dentro). O início e o fim são diametralmente opostos e em cada narrativa um toma o lugar do anterior, em complementaridade.

Estas jornadas podem ser equiparadas a mais dura e, ao mesmo tempo, bela, marca da jornada humana, a finitude da existência, marcada pela simultânea riqueza ilimitada dela mesma: no ser (no vir-a ser do sujeito), há o invisível, os traços dos ancestrais; na vida, há o concreto, o (re) conhecível; no pós-morte, há o não palpável, as lembranças e os objetos que significam um conceito sobre o morto.

As heranças históricas, que garantem os precedentes assim como a perpetuação de uma existência, estão incrustadas nas narrativas de Machado através da contínua alusão às relações pai/filho por ele feitas. Em Cipriano tem-se esta relação como pano de fundo na composição do luto e dos ritos fúnebres do protagonista homônimo; em Sertãomundo de Suassuna, o escritor fala do pai morto quando ele era ainda criança; e em O Artesão da Palavra, vê-se Vilaça tecer os comentários sobre o filho morto. Mas é no documentário O Retorno do Filho (2009) que a relação pai/filho torna-se emblemática das noções de herança e de permanência do/no outro.

Dois anos depois de Um Corpo Subterrâneo, Machado dedica-se a transpor para o cinema a relação afetiva e poética que une o escritor Alberto da Costa e Silva a seu pai, o poeta piauiense Da Costa e Silva, morto em junho de 1950. No documentário O Retorno do Filho, Alberto, morando hoje no Rio de Janeiro, faz uma viagem de retorno à cidade natal de seu pai, Amarante, no Piauí. A montagem alterna imagens das cidades do Rio de Janeiro e de Amarante; este recurso quebra as distâncias espaciais e temporais entre os dois corpos, aproximação que os relatos unem ainda mais intensamente: ouvimos de Alberto a admiração por este pai poeta que sonhava ser um dia diplomata. Alberto não só virou poeta como o pai, como exerceu durante muitos anos o cargo de diplomata brasileiro. Um reforço nos traços e laços, que atestam o renascimento de Da Costa e Silva na figura do filho, através de seus genes e/ou ideais.

Machado, como vimos, está constantemente retomando temas e procedimentos na construção do quebra-cabeça que constitui seu o projeto poético: “A criação é, sob esse ponto de vista, um projeto que está sempre em estado de construção, suprindo necessidades e os desejos do artista, sempre em renovação”. (SALLES, 2006, p. 59) O diretor fala na atualidade de um novo projeto envolvendo o filme Cipriano: ele pretende fazer uma reedição do filme sem diálogos e trilha musical, apenas com imagens e som-ambiente. Neste sentido, a cada novo filme ou a cada reedição, o cineasta recupera um corpo-obra ‘morto’ e confere-lhe movimento/vida: expressão, linguagem.

Aqui, na revisão da biofilmografia do diretor podemos observar dois temas recorrentes em sua obra: o par morte/luto e a viagem, onde ao duplo cabe acontecer. Sobre essas balizas, portanto, Machado tece a rede de procedimentos e estratégias de abordagem de Um Corpo Subterrâneo, sobre a qual nos deteremos agora, tendo como norteadores principais os documentos de processo diretamente relacionados à produção do documentário.