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CAPÍTULO 3 – A NATUREZA MISIONERA A SERVIÇO DA NAÇÃO

3.2. Apipé: o nó górdio argentino

Para os viajantes, um dos maiores símbolos que representava a luta entre homem e natureza em Misiones era a barreira do salto Apipé. O problema do domínio desse obstáculo da natureza era considerado pelos viajantes como o maior desafio para a navegação do

323 Ibid., p. 24. 324

127 Paraná. O salto também representava uma barreira para a expansão do processo civilizatório em Misiones, o que colocava a região numa situação de isolamento geográfico do resto da Argentina, já que mesmo o rio que representava a principal ligação com Buenos Aires apresentava um obstáculo difícil de ser vencido. 325

Para Hernández, tal obstáculo representava o nó górdio argentino. A comparação com o antigo feito de Alexandre, o Grande, era dotado de alta representatividade. Da mesma maneira que o antigo imperador macedônico logrou dominar a Ásia ultrapassando tal obstáculo, era somente com o domínio do Apipé que poderia ser possível submeter efetivamente toda a região de Misiones ao domínio argentino. 326

Lista possuía um olhar diferenciado a respeito do Apipé ao contestar a opinião dos outros viajantes. Para ele, era um “arrecife denominado imprópriamente «salto»”. 327 Personagem ligado diretamente ao governo de Buenos Aires, não deixou de indicar sugestões para o problema da navegabilidade nesse ponto do Paraná. Para o viajante, a situação era simples, devia se importar vapores mais adequados na tarefa de poder vencer tal obstáculo, citou os estudos do marinheiro estadunidense Hunter Davidson, 328 que corroborariam com o seu argumento de que apenas com a importação de vapores e uma melhoria na sinalização do Apipé resolveria o problema:

El Gobierno Nacional podria, cuando más, para garantir en todo tiempo el libre transito de ese punto, hacer colocar algunas boyas que señalen al navegante las sinuosidades del canal.

Segun el citado Sr. Davidson, los vapores más convenientes para la navegacion del Alto Paraná, serian los que se construyesen teniendo en vista el tipo de los que se usan en el rio Mississipí [...]

La adquisicion de dos ó tres vapores de esta clase seria poco dispenciosa y con ellos se daria un gran impulso al naciente comercio de Misiones.329

Realizar obras de implosão para eliminar as restingas ali existentes era uma empresa de alto custo para a época. Embora os outros viajantes recomendassem tais procedimentos, Lista sugeriu a via menos custosa de se investir na importação de vapores. O fato de estar

325 ABÍNZANO, op., cit., p. 17.

326 HERNÁNDEZ, op., cit., citação presente no prólogo escrito por Federico D. Daus. 327 LISTA, 1883, p. 7.

328

Marinheiro estadunidense que após lutar ao lado dos confederados na Guerra de Secessão, radicou-se na Argentina, onde teve um papel de peso na constituição da Marinha Argentina, tendo inclusive realizado expedições pelo Alto Paraná.

329

128 ligado diretamente ao governo pode indicar o quanto tinha de conhecimento a respeito do erário público. 330

Apesar de também ser um funcionário do governo, Hernández considerava a eliminação dessa barreira como fator primordial para o estabelecimento da civilização em Misiones. À parte de não desdenhar o salto como fazia Lista, o considerava como “[...] la

barrera mas poderosa á la conquista del territorio Misionero por la civilizacion y el comercio.” 331

Tal como Lista, Hernández indicou sugestões para o governo no que tocava à problemática do Apipé. No entanto, a sua sugestão era totalmente contrária à de seu colega. Para ele, o governo detinha a capacidade de realizar a obra, inclusive apontou a soma de 50.000 pesos para o seu custeio. 332

Ao relatar o Apipé, Holmberg novamente fez menção a Thomas Jefferson Page. Segundo os estudos do marinheiro estadunidense, o Apipé não era um obstáculo intransponível. Sendo assim Holmberg intencionava seguir o exemplo de Page e ultrapassar o obstáculo com a força do vapor no qual estava a bordo. 333 No entanto, o comandante do vapor comunicou ao viajante que seria impossível atravessar o obstáculo, e a expedição, por fim teve que seguir por terra até Posadas. 334 Tal imprevisto fez com que o viajante registrasse designação pejorativa para o Apipé em seu relato, denominando-o como a: “Bestia Negra del

Alto Paraná” 335

Ambrosetti conseguiu ultrapassar o salto com o vapor San Javier, mas o viajante não deixou de mencionar o fato da embarcação ter sofrido uma avaria no mesmo salto pouco tempo antes. 336 O seu relato sobre a subida ganhou ares de epopeia, era um claro intuito de enaltecer o domínio sobre o obstáculo que oferecia a natureza naquela altura:

Ya llegamos al Salto, la voz del vaqueano, á toda fuerza se hace oir, el manómetro señala 86 libras y despues 90 de presión. Los foguistas echan leña y más leña, y el vapor, aumentando su marcha, temblando todo, empieza á subir desesperado, luchando á brazo partido con aquella masa de agua que atropela enfurecida, mostrando á ambos lados grandes remolinos de espuma al chocar bramando contra las masas negras de rocas, que se levantan amenazantes á ambos lados del canal.

330

Tal empreendimento foi realizado apenas na década de 1980, com a construção da Represa Binacional de Yacyretá, financiada por Paraguai e Argentina.

331 HERNÁNDEZ, op., cit., p. 41. 332 Ibid., p. 66.

333

HOLMBERG, op., cit., p. 77-78. 334 Ibid., p. 82.

335 Ibid., p. 77. 336

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Varios pasajeros acompañados por el comisario del vapor Don Pedro Deffis, desde arriba de la toldilla contemplábamos aquella avalancha líquida que rueda con furor por ese extenso plano inclinado, siguiendo inmóviles y mudos la marcha impetuosa pero lenta del vapor.

Quince minutos despues el San javier flotaba en aguas tranquilas. Habiamos pasado el Salto de Santa Maria de Apipé, que rujia á los lejos, el mismo que en viaje anterior había arrastrado el San Javier chocándolo contra las rocas que le abrieron un ancho rumbo. 337

Ambrosetti dizia que somente com o domínio desse obstáculo seria possível que as forças da civilização atuassem sobre os misioneros. O fato de Misiones estar relativamente isolada pela dificuldade de navegação do Paraná acarretava que o ambiente se tornasse hostil à civilização e propenso à barbárie. O controle do Apipé poderia agir na transformação desse ambiente e integrar os misioneros ao rol da civilização argentina:

Vuelvo á repetir, es simple sección del Alto paraná desde Ituzaingó á Posadas es la única barrera que presenta la navegación del caudaloso rio, que una vez limpiado, aunque sea en parte, de sus obstáculos actuales, abrirá las puertas del progreso á esa inmensa zona de Misiones, sacudiendo la inercia forzada de sus habitantes, que hoy en su mayor parte solo producen lo estrictamente necesario para vivir, porque no sabrian que hacer con el exceso de sus produtos. 338

Basaldúa não era favorável a uma intervenção direta no Apipé. Para ele, era importante a valorização dos atributos positivos do salto. Sua beleza por si só era um espetáculo que inclusive poderia fomentar a indústria do turismo. Para além de usar artifícios românticos para descrever o salto, o colocava numa escala de comparação com a natureza dos Estados Unidos: “[...] el Mississipi en toda la extensión de su largo curso, no ofrece un

espectáculo que aproxime siquiera del bellísimo que tenemos ante la vista”.339

Basaldúa defendia uma posição similar à de Lista no que tocava ao emprego de vapores mais preparados para transpassar o obstáculo. No entanto, não era defensor da ideia da importação defendida pelo outro viajante. Para ele, os próprios empresários argentinos detinham a capacidade para a realização de tal tarefa, inclusive enfatizando a possibilidade comercial para os investidores privados. Nesse caso, mencionou uma vez mais seu

“compatriota basco” Domingo Barthe, além do croata-argentino Nicolás Mihanovich: 340

337 Ibid., p. 34. 338 Ibid., p. 37. 339

BASALDÚA, op., cit., p. 28.

340 Há que ressaltar que, assim como Basaldúa, os dois empresários citados eram estrangeiros naturalizados argentinos. Para ele, se tratava dos “nuestros grandes armadores”, mas ainda assim é marcante a origem europeia de ambos.

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“Cuando Barthe, Mihanovich ú outro cualquiera de nuestros grandes armadores se decidan á construir vapores de rápido andar [...] todos ganaremos: las empresas, dinero; los pasajeros, comodidade y placer; y el Territorio de Misiones, población y riqueza.” 341

Embora não fosse favorável a intervenção direta no Apipé, Balsadúa fez uma ousada sugestão de uma construção de um canal que pudesse criar um desvio para que assim fosse evitada a passagem das embarcações pelo salto:

La apertura del Canal entre Trinchera San Miguel, lago Ú-bera y el Pueblo de Ituizaingó producirá estos tres benefícios:

1º Reducir é la cuarta parte, á veinte kilómetros, la distancia de ochenta kilómetros que recorren hoy los barcos contorneando el Rincón de Santa María.

2º Evitar los peligros que ofrece el paso de los Rápidos del Carayá y del Apipé, especialmente en las épocas de bajante, en cuyo paraje la violencia de la corriente es tan grande que la rotura de la cadena del timón, la detención de la máquina, ó una mala guiñada, estrellarían el vapor contra las rocas de la islã de los Pájaros. 342

A domesticação do Apipé era de fundamental importância para o exercício do processo civilizatório em Misiones. Para os viajantes, a intervenção humana no salto se daria de duas formas: pela via da intervenção direta, eliminando as restingas que atrapalhavam a navegação do Paraná, ou pelo emprego de vapores mais potentes que pudessem transpassar o obstáculo sem maiores problemas. A questão central residia na problemática da dominação do salto. Nesse sentido, a valorização da natureza misionera como um componente civilizador era válida apenas através da intervenção humana. De acordo com uma perspectiva utilitarista, a natureza era vista como civilizadora na medida em que pudesse facilitar a incursão da civilização e pudesse prover o homem de riquezas.