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Apitos 106 : para que índio quer apito?

No documento Ana Paula da Silva (páginas 192-200)

O tema das estratégias indígenas, assim como a emergência de líderes índios no cenário colonial e pós-colonial, vale lembrar, tem chamado à atenção de pesquisadores de diferentes áreas (historiadores, antropólogos, críticos literários, juristas) em diversos países, por exemplo, do continente americano. Os debates e casos analisados por diferentes estudiosos nos permitem refletir acerca a atuação dos povos indígenas diante de situações desfavoráveis – particularmente, os processos de expropriação de suas terras, seus direitos e a exploração da mão de obra. Nesse movimento, destaca-se o protagonismo de diferentes lideranças indígenas ou de seus representantes, especialmente no século XIX, na busca por respostas oficiais para a resolução de seus problemas vivenciados em suas terras.

Entre distintas estratégias, chama a atenção o uso da diplomacia como trunfo, certamente não muito novo, dos índios em prol de seus direitos. Os povos indígenas, em variados países, atualmente buscam cada vez mais ampliar os instrumentos de luta, visando à conquista de representação em espaços na alta esfera do poder político, até então, exclusivos de representantes ligados a setores privilegiados da sociedade. Para isso, estão se apropriando de informações técnicas e particulares do campo diplomático, por exemplo, de persuasão e resolução de conflitos, discutindo dispositivos jurídicos internacionais (declarações e convenções) e se apropriando de variadas ferramentas do direito internacional, em fóruns, cursos específicos, a exemplo da Escuela Intercultural de Diplomacia Indígena107 (EIDI), na Colômbia – um espaço “dinâmico de formação de

106 Refiro-me à marchinha carnavalesca “Índio quer apito” de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira.

107 Conforme o site da EIDI, a escola é uma “proposta de Educação Popular”, baseada nos pressupostos da Pedagogia do Oprimido (Paulo Freire), interculturalidade, diplomacia e descolonização do saber (Aníbal Quijano). A escola é sustentada no diálogo de saberes e ação participativa – “ación colectiva indígena” –, proposta pelo Centro de Estudios Políticos e Internacionales (CEPI) da Facultad de Ciencia Política y Gobierno y de Relaciones Internacionales da Universidad del Rosario, y o Observatorio de

193 lideranças (homens e mulheres), assim como um viveiro108 de investigação onde se inquirem e debatem relevantes temas para as comunidades indígenas”109. Desse modo, a escola propõe, entre outros objetivos, criar “punto de encuentro” de desenvolvimento de capacidades jurídicas, de liderança e de participação política dos índios (representantes de diferentes povos indígenas) em instituições nacionais e internacionais, especialmente os avanços e limites da participação dos ‘diplomados interculturales’ na Mesa Permanente de Concertación Nacional y en los escenarios propios de los pueblos indígenas en Naciones Unidas, conforme o site da instituição.

No caso da Colômbia e da Venezuela, onde vivem os índios Wayuu que somam hoje 500 mil pessoas nos dois países, a figura tradicional do diplomata se inspira em grande medida no pütchipü´u, um personagem fundamental no direito consuetudinário dos Wayuu. Eles partem do princípio de que os conflitos existem em todas as sociedades, mas cada uma desenvolve mecanismos destinados a manter a ordem, a paz, a harmonia e a coesão social. Para isso, algumas sociedades criaram instituições como polícia, cadeia, tribunal, lei. Os Wayuu criaram um sistema jurídico singular onde quem se destaca é o pütchipü´u, o “mestre da palavra’, o “dono do verbo”, enfim um índio sábio, especialista no manejo da linguagem. Tem a fala envolvente, convincente, sedutora e o dom da clarividência, do bom humor. Sua função é usar tais qualidades para solucionar disputas familiares e conflitos intra-étnicos (Curvelo, 2002).

Os povos indígenas no Brasil, igualmente, diante da necessidade de recorrer a organismos internacionais para garantirem seus direitos, estão se apropriando da diplomacia indígena, uma arma-estratégia que tem concedido aos índios conhecimento, munição, contra governantes, empresas e outros agentes nas disputas com eles travadas.

Nesse processo, eles estão se alinhando internacionalmente com diferentes povos da América do Sul, se articulando de forma inédita contra empreendimentos econômicos e políticas transnacionais de integração que impactam suas terras, vidas, formas de viver, afinal “Nossos problemas são praticamente idênticos aos dos indígenas de outros países” afirmou Marcos Apurinã, então presidente da COICA – Coordinación Indígena Redes y Acción Colectiva (ORAC) da mesma universidade. Todas as informações sobre a EIDI foram retiradas do site http://www.urosario.edu.co/diplomacia-indigena/la-escuela-EIDI

108 No original “semillero de investigación” – em minha tradução propus “viveiro”.

109 O futuro ‘diplomado intercultural’, na escola, se especializa em formação jurídica, política, econômica e internacional; tendo o acompanhamento permanente e a interlocução de professores e estudantes de disciplinas afins (estudos sociais, econômicos e culturais) de diversas partes do mundo (Universidad del Rosario/EIDI). Não há preocupação dos ‘diplomados indígenas’ e suas comunidades com a certificação no fim do curso, mas com os conhecimentos adquiridos.

194 Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o desenvolvimento (Aecid), realizaram a primeira “Oficina de Formação em Diplomacia Indígena”, em Cartagena (Colômbia), que contou com a participação das lideranças de nove países amazônicos (AMC, 2012). A organização de oficinas e as articulações indígenas em âmbito internacional evidenciam a relevância da diplomacia indígena para os índios na resolução de conflitos, na mediação em instituições nacionais e internacionais, sendo de extrema importância a aquisição de técnicas e conhecimentos do campo das relações internacionais. Os índios perceberam que o sucesso de suas articulações em organizações mais favoráveis aos diferentes povos111, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial do Trabalho (OIT), é necessário saber como funcionam essas instituições, estudar as estratégias mais favoráveis nas negociações com diferentes atores, buscando atuar diplomaticamente a favor dos seus povos.

Assim sendo, Cisneros (2013: 198) avalia que os povos indígenas, atualmente,

“reclaman ser sujetos de su propio desarrollo, de un desarrollo con identidad en el marco de las sociedades pluriculturales más acordes a la realidad del siglo XXI, lo cual plantea un saludable desafío a la concepción tradicional del Estado-nación”. A emergência da diplomacia indígena, como estratégia, sua “institucionalização”, remonta aos debates internacionais sobre os povos indígenas, estimulados na segunda metade do século XX112, no marco dos processos de descolonização e da luta por direitos humanos,

110 Em 2012, realizou-se a segunda oficina.

111 Segundo Cisneros (2013), embora os foros tenham se multiplicado e diversificado atualmente no âmbito regional, a ONU – suas distintas conferências e seus organismos – Direitos Humanos, Organização Internacional do Trabalho (OIT), Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), Organização Mundial da Saúde (OMS) –, continuam sendo os espaços mais relevantes onde se desenvolve a diplomacia indígena.

112 O mesmo é assinalado por outros autores como Ángela Santamaría (2008), por exemplo, ao analisar o surgimento da diplomacia indígena na Colômbia. Segundo a autora, a emergência da chamada “causa indígena” no país e dos direitos dos “pueblos indígenas”, em fins da década de 1980, são imprescindíveis para entender o processo de apropriação (de saberes e competências) que permitiram a autonomia de agentes sociais indígenas acerca das normas e instituições específicas das relações internacionais. Nesse contexto, os povos indígenas e seus direitos ganharam força no cenário político colombiano, possibilitando a emergência de líderes indígenas interessados na conquista (nacional e internacional) de espaços importantes de negociação, como por exemplo, na Organização das Nações Unidas (ONU).

195 do combate ao racismo e da discriminação (Idem). Além disso, Cisneros (2013) salienta, na história da diplomacia indígena, como antecedentes igualmente relevantes: a importância das representações indígenas e o surgimento de alguns documentos da ONU (mas também da OIT).

A história da diplomacia indígena no cenário internacional ocorreu com intervenções tanto na Sociedade das Nações, fundada em 1919, como na sua sucessora, a ONU, criada em 1945. O chefe Cayuga Deskaheh esteve na Sociedade das Nações (1923), representando as Seis Nações dos Iroqueses. Na ocasião, ele se apresentou com um passaporte iroquês e com uma carta endereçada ao secretário geral da ONU, cujo objetivo era “pedir justiça”, explica Cisneros (2013). Após um ano, outra liderança, o Maori T. W. Ratana viajou à Londres e lá protestou contra o não cumprimento do Tratado de Waitangi113 (1840), voltado para a propriedade das terras maoris na Nova Zelândia. A participação dessas lideranças fora de extrema importância para, anos depois, sensibilizar e colocar na pasta da instituição a temática indígena (ou temáticas indígenas). Por último, Cisneros destaca o interesse da OIT pelos povos indígenas (desde 1921, com a discussão sobre os “trabajadores aborígenes”), consolidado, acredito, com a Convenção 169 (1989) que trata dos direitos fundamentais dos “povos indígenas e tribais”, reconhecendo internacionalmente: os direitos de autonomia e controle de suas instituições; a manutenção dos jeitos de ser e viver, o desenvolvimento econômico; propriedade de terra e dos recursos naturais existentes; tratamento penal e assédio sexual; prevendo, a chamada obrigação estatal de consulta (posterior direito de consulta prévia), entre outros (OIT, 1989). nativos. Ângela Santamaría é coordenadora da Escuela de Interculturalid de Diplomacia Indígena da Universidad del Rosario.

113 O Tratado de Waitangi, nome alusivo à cidade onde foi assinado a convenção, em 6 de fevereiro de 1840, na Nova Zelândia, entre os Maori e a Coroa britânica. Escrito em duas línguas (indígena e inglesa), o texto é breve, com apenas três artigos, garantindo: art. 1 – a soberania da Inglaterra sobre a Nova Zelândia; o art. 2 – afiança aos chefes indígenas a continuidade da chefia e o direito inalienável de suas terras e riquezas; por último o art. 3 – concede aos Maorios mesmos direitos que os colonos britânicos. As informações aqui expostas foram retiradas do site http://www.newzealand.com/br/feature/treaty-of-waitangi/.

114 Cabe lembrar que os povos indígenas e seus direitos foram discutidos em outras reuniões, por exemplo, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (chamada de

196 não apenas por contemplar os direitos desses povos que foram minorizados, mas fundamentalmente por ser resultado dos processos de negociação e luta. (Cisneros, 2013). A DNUDPI garante o direito à autonomia e à livre determinação; à terra, aos territórios e recursos naturais existentes, à participação política, o direito à consulta e ao consentimento prévio, livre e informado, direito a reparação pelo furto de suas propriedades, direito de manter suas culturas, entre outros. A DNUDPI é, na visão de Cisneros, uma “pedra angular” para a diplomacia indígena atual, não somente porque é o mais importante instrumento internacional para os índios, mas por ser um “programa de ação, solidez, coerência e direção dos múltiplos e diversos povos indígenas. Podemos dizer hoje que a diplomacia indígena115 tem como marco programático cada um dos enunciados da Declaração” (Cisneros, 2013: 206).

Em linhas gerais, Cisneros, de modo contundente, analisa a participação de lideranças indígenas, masculinas e femininas – afinal as mulheres são (talvez, coloca o autor) um dos segmentos da diplomacia indígena mais ativo e importante, pois têm o papel de promover seus valores e direitos – nas discussões acerca de diferentes dispositivos jurídicos, fundamentais para a emergência da diplomacia indígena (cada vez mais se institucionalizando), para contextualizar a sua história também. O autor, conforme já dito, sustenta que a diplomacia indígena tem suas raízes fincadas longa e penosamente nos processos de colonização (em diferentes continentes: América, Ásia, África, Índia). Para Cisneros (2013: 199), a diferença de outros tipos de diplomacia, a dos índios tem fundamento na categoria política de povos indígenas, resultado da colonização e marginalização de outros povos.

A segunda característica da diplomacia indígena diz respeito à experiência de negociação dos índios, diante da imposição de novas realidades (imposta pelo colonizador). Com os poderes coloniais, negociou-se o respeito às suas identidades – o Eco-92, Rio-92), realizada no Rio de Janeiro em 1992, cujos desdobramentos culminaram na realização da Conferência das Nações Indígenas sobre o Desenvolvimento Sustentável – também conhecida como a Rio+20 –, realizada na mesma cidade, 20 anos depois (2012); Quarta conferência sobre a Mulher (Pequim, 1995); na Cúpula Social (1995), na Conferência sobre o Racismo (Durban, 2001) e o posterior Exame de Revisão de Durban (Genebra, 2009), entre outros.

115 Cisneros (2013) destaca, ainda, a atuação dos povos indígenas em busca de maior participação, efetiva e plena, nas discussões relacionadas às mudanças climáticas. No Brasil, diversas lideranças têm alertado governantes, especialistas e toda a população para os perigos das mudanças climáticas, os impactos do modelo neoliberal desenvolvimentista brasileiro, o desmatamento das florestas, a poluição, entre outros.

Destacam-se, no cenário, lideranças como o cacique Raoni (Kaiapó) encabeçando a luta dos povos que sofrerão os impactos da construção de Belo Monte; o xamã Davi Kopenawa Yanomami, cujo pensamento foi sistematizado, em parceria com o antropólogo Bruce Albert, e publicado no livro “A queda do céu” – uma obra prima do pensamento e cosmologia dos Yanomami.

197 que incluiu valorizar a humanidade, as terras e territórios, além da negociação espiritual, que resultou em um sincretismo religioso (Idem, 2013: 99). Nesse sentido, o que há por trás da diplomacia indígena é:

“una clara conciencia y un vivo recuerdo de negociaciones de larga duración (plasmada de distintas maneras: tratados, acuerdos, concesiones, títulos virreinales, etcétera) con los representantes de los poderes coloniales o con los gobiernos poscoloniales que los sustituyeron” (Cisneros, 2013:

200).

É possível encontrar na documentação, ao longo dos últimos cinco séculos, reflexos dessa consciência. No século XIX, conhecedores dos seus direitos, os índios, no Brasil, mediante distintas estratégias (apontadas por Gustavo Torres Cisneros), estabeleceram acordos, tratados, consolidaram alianças variadas, negociando com autoridades centrais – honrarias, ‘brindes’ (presentes). Por outro lado, caminharam (na maioria dos casos a pé) até o centro do poder, na cidade do Rio de Janeiro, para exigirem uma audiência pública com o governo central. Diante dos monarcas, na Sala do Trono, beijando a mão d’El Rey, os índios expuseram suas queixas, registrando suas presenças mediante a entrega de requerimentos. Com palavras e letras, os índios exigiram, oficialmente, respostas e resoluções rápidas para seus embates. Alguns foram atendidos, outros enganados, mas sempre andando e lutando, exigiram seus direitos.

Como fizeram o chefe Iroquês Cayuga Deskaheh, a liderança Maori T. W.

Ratana, que se deslocaram de seus territórios até a sede de instituições precursoras das Nações Unidas (Nova York ou Genebra), João Marcelino Gueguê, João de Souza Benício e os índios da Serra de Ibiapaba, os Índios de Mecejana, Manoel Felippe de Lima, José Martins Rodrigues e Benedicto José Ignacio (índios de Baturité), Índios Kiriri, Manoel Joaquim dos Santos e Jacinto Pereira da Silva (índios da aldeia da Escada), Francisco Martins Machado e José Inocêncio Machado – todos, lideranças indígenas que estiveram em tempos e momentos diferentes na Corte, Rio de Janeiro, denunciando os processos de esbulhos de seus territórios, as violências sofridas, o descaso das autoridades.

198 É preciso dizer que em âmbito regional116, as mulheres indígenas também se destacaram como mediadores políticas culturais. Vale a pena lembrar, por exemplo, das líderes: Clara Felipa Camarão (d. Clara Camarão); Theodora Maria da Conceição – índia da aldeia de Mecejana (Ceará) que em 1855 enviou (com Luis José de Paiva, Manoel da Penha de Assumpçaõ e Anna Bernardina de Paiva) um ofício ao Ministério dos Negócios do Império contrários às ações da Tesouraria da Fazenda do Ceará (Valle:

2009). Por último, Damiana da Cunha117, líder Kayapó, famosa por promover descimentos e aldear índios considerados hostis (Mattos, 2006: 143). Hábil mediadora, Damiana da Cunha tinha uma postura bastante diferente dos agentes que promoviam os descimentos de índios. Em seu olhar, os indígenas (mesmo considerados hostis por diferentes autoridades) eram “nossos irmãos filhos do Brasil”, cabendo “despertar o amor do bem” e, de modo algum, deveriam “perturbar a sua liberdade, pois que eles são livres, como tais sempre serão tratados”. Ledo engano! Seu discurso, aqui epigrafado, é carregado de sentido, exemplo de protagonismo e diplomacia indígena.

Por último, não menos importante, gostaria de chamar a atenção, com apoio na documentação encontrada nos arquivos, para os líderes e representantes indígenas que estiveram na Corte, aparentemente, para reforçar suas alianças. Foram eles: Inocêncio Gonçalves de Abreu Maxakali, Guido Pokrane (Botocudo), Capitão Gabriel Augusto Guanitá, Francisco Rodrigues do Prado Kinikinau, Antônio Prudente Kaingang, Capitão Bandeira Kaingang. Todos, índios e índias, são, aqui, nessa tese, dotados de falas, agências, atuantes. São diplomatas indígenas, cujas trajetórias de vida coincidem com a história da diplomacia indígena no Brasil. É o que defendo nessa pesquisa. Nessa narrativa histórica que busca delinear algumas linhas sobre a temática, Itapucu, Caripira, Manẽ, Patua, Guarajú, Japuaí, os Potiguara (Potĩ, Antônio Paraubapa e Gaspar Paraupaba), especialmente o diplomata Itapucu, parece que inauguraram os primeiros capítulos dessa história, foram os precursores da diplomacia indígena no Brasil.

Como na música popular, o “pau” realmente “comeu”, mas não por causa dos apitos. Eles, de fato, nunca estiveram entre as reivindicações dos indígenas, a não ser se

116 Na documentação analisada, não encontrei nenhuma evidencia da presença de mulheres atuando diplomaticamente no Rio de Janeiro. As índias, no entanto, acompanhavam seus maridos nas viagens à Corte.

117 A história dessa liderança indígena Kayapó é bastante singular na história dos povos indígenas no Brasil e, segue pouco divulgada. O viajante francês Saint-Hilaire ficou tão impressionado com trajetória de vida dessa mulher, que viajou até o seu aldeamento, especialmente, para conhecê-la.

199 entendemos metaforicamente o apito como a possibilidade de ter o destino nas mãos, de traçar seu destino, como a régua e o compasso que a Bahia deu a Gilberto Gil. Nesse sentido, a ação diplomática permitia aos índios “apitar”. O apito dos índios foi a diplomacia.

4.2.Audiências reais, os índios diante dos reis

No século XIX, com o objetivo de terem suas reclamações ouvidas e suas demandas atendidas, lideranças ou representantes indígenas, pertencentes a distintos povos e falantes de diferentes línguas, estiveram na sede do poder colonial e imperial do Brasil por variadas razões. Sozinhos ou em comitivas, pessoalmente e/ou através de documentos escritos (requerimentos, cartas, bilhetes, representações, ofícios, entre outros), ou seja, através da ‘virtualidade’, esses indígenas vinham em nome de suas comunidades, povos ou por interesses pessoais, em busca de uma audiência real. A cidade do Rio de Janeiro, nesse sentido, pode ser entendida como um campo diplomático, uma fronteira, na qual os indígenas fazendo uso da diplomacia (e outras estratégias) buscavam dialogar com autoridades centrais, especialmente na Côrte, a mais importante ‘arena’ política da época.

Nessas reuniões com chefes de Estado, se assim posso dizer, recuperar a totalidade das falas, os bastidores das negociações é uma tarefa quase impossível, pois muito foi dito, mas pouco foi registrado. Um dos caminhos de acesso às palavras e aos bastidores das reuniões protagonizadas por chefes e representantes indígenas é a documentação histórica, recolhida e transcrita por funcionários governamentais e, em alguns casos, pela via escrita de textos redigidos por índios, aliada aos documentos oficiais de várias autoridades, além dos jornais de época. As fontes me ajudam a compor o cenário das audiências reais, apontaram pistas, rastros da presença dessas lideranças na Côrte, suas capacidades de mobilização e articulação, de negociação com o Estado. Trata-se, portanto, de informações dispersas em vários arquivos, coleções, fundos, códices. No Arquivo Nacional, por exemplo, encontramos dados nos fundos do Vice-Reino, Secretaria de Estado dos Negócios do Brasil, Conselho do Estado, entre outros. Diferentes pesquisadores têm explorado os acervos dos Arquivos Públicos dos estados brasileiros, destacando uma rica e variada documentação sobre os índios, que inclui: requerimentos, petições, bilhetes, escritos direta ou indiretamente por indígenas,

200 endereçados às autoridades. Não se pode esquecer, ainda, os relatos de viajantes e naturalistas, que apesar dos olhares distorcidos e equivocados, deixaram inúmeros registros sobre diversificados aspectos dos índios no Brasil.

A cerimônia do beija-mão era um costume antigo das monarquias europeias, revivida pelos Bragança após a ascensão ao trono de d. João VI118 (1792), e pode ser entendida como uma aproximação entre monarcas e seus súditos, nobres ou camponeses, ricos ou pobres (Carvalho, 2012). Nessas audiências públicas, o monarca recebia seus vassalos no Paço, que por sua vez, apresentavam-lhe as devidas reverências e suplicavam mercês, nem sempre concedidas (AN, s/d), além de expor suas queixas, como fizeram os índios, recepcionados por d. João VI, Pedro I e Pedro II. Como toda

“sociedade de corte”, esses cerimoniais possuíam “valor de prestígio” (Elias, 2001:

102), por isso, eram marcados por regras de etiqueta, cuja “função simbólica (tinha) grande importância na estrutura dessa sociedade e dessa forma de governo”, conforme salientou Norbert Elias (2001: 102). No beija-mão, os súditos deveriam executar uma

102), por isso, eram marcados por regras de etiqueta, cuja “função simbólica (tinha) grande importância na estrutura dessa sociedade e dessa forma de governo”, conforme salientou Norbert Elias (2001: 102). No beija-mão, os súditos deveriam executar uma

No documento Ana Paula da Silva (páginas 192-200)

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