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2 ADMISIBILIDADE DA REPARAÇÃO MORAL APLICADO À HIPOTESE DO

2.3 Aplicabilidade dos pressupostos da responsabilidade civil e das características

Havendo violação dos direitos da personalidade, inclusive no direito de família, não se pode negar ao ofendido a possibilidade de reparação do dano moral. Essa é a ideia defendida por Bernardo Castelo Branco que também cita Roberto Senise Lisboa ao ensinar que:

[...] a criança e o adolescente são sujeitos de uma proteção especial, na qual se incluiu de forma específica aquela conferida aos direitos da personalidade compreendidos, em todas as suas dimensões, estejam eles ligados aos aspectos de seu desenvolvimento moral, físico e social, resultando daí a tutela à sua integridade física, psíquica e moral, no âmbito da qual se insere também, entre outros instrumentos, o direito à reparação pelo dano extrapatrimonial. (BRANCO, 2006, p.117).

Ante todo o exposto, no que tange ao pressuposto conduta do agente, conclui-se que em relação ao abandono afetivo dos filhos, a ação ou omissão faz-se presente no comportamento e conduta adotados pelos pais que deliberadamente deixam por descumprir os deveres inerentes ao exercício do poder familiar, seja pela negligência na criação, educação e formação dos mesmos, seja por descumprimento ao direito-dever da convivência familiar.

Nesse contexto, o abandono afetivo dos filhos pode ocorrer em diversas relações familiares como em casos de pais separados, pais presentes e pais desconhecidos. Sendo assim, mister salientar que somente em alguns casos existirá o dever de reparação, devendo ser feita uma análise minuciosa de cada caso concreto.

A primeira delas, e a mais comum, é o caso de pais separados ou divorciados – ou até mesmo aqueles que nunca chegaram a se casar ou ter um relacionamento concreto –, na qual um deles, que não possui a guarda, deixa de assistir moralmente o filho. Alguns dos fatores que contribuem para o abandono são: o intuito de evitar contato com o ex-cônjuge e, em muitas situações, a constituição de um novo relacionamento amoroso e familiar.

Esses fatores, no entanto, não podem ser usados como desculpas, pois, como já visto, a convivência é um dever dos pais e deve ser buscado o melhor interesse da criança. Apesar de no ordenamento brasileiro não existir sanção expressa para o descumprimento de visita, há construção doutrinária pela configuração do crime de desobediência.

Por outro lado, existem casos em que o genitor não guardião pode se afastar para não colocar em risco a sua prole, como em casos de ser detentor de doença infectocontagiosa, alcoolismo, entre outras hipóteses.

Outrossim, existem casos em que o filho e o guardião passam a residir em local distante, impossibilitando a aproximação e contato do genitor desprovido de dinheiro para se locomover com frequência (HIRONAKA, 2007a).

Essas são situações que exemplificam a importância dos pressupostos da responsabilidade civil serem analisados em conjunto, em cada caso concreto. Se ficar constatado a impossibilidade de aproximação, após tentativas do genitor ausente, mesmo o dano estando presente, estariam os pais eximidos de culpa.

A segunda hipótese de abandono é a de pais presentes fisicamente embora não desempenhem de forma satisfatória suas funções e obrigações. É possível a sua ocorrência pois morar sob o mesmo teto não significa conviver. Como vimos no primeiro capítulo, são diversos os deveres de um pai e residir juntos muitas vezes não significa a atenção, o cuidado, o afeto e a educação que deveriam ser despendidos. Contudo, este é o de mais difícil constatação e comprovação, até mesmo porque é difícil conceber que um filho busque indenização por abandono se depende financeiramente do genitor e ainda resida no mesmo local que ele (HIRONAKA, 2007a).

A terceira situação, por fim, é a de pai que desconhece a prole. Ora, se a pessoa não sabe da sua condição de ascendente como poderia ter prestado afeto ao filho? Logo, nesse contexto não há falar em indenização, até mesmo porque não houve ruptura do vínculo afetivo que, na verdade, nunca se concretizou (HIRONAKA, 2007a).

Em relação à culpa, por sua vez, importante verificar se o abandono afetivo se deu por culpa exclusiva do genitor que está sendo acusado. Como já exemplificado, pode acontecer de o genitor detentor da guarda passar a residir com

a criança em estado distante ou até mesmo em outro país. Em uma circunstância como essa, evidente que o genitor não guardião, e não possuidor de muitos recursos, teria dificuldades de entrar em contato e se fazer presente constantemente na vida do filho. Ademais, temos o fenômeno da alienação parental28, de forma que o

genitor não pode ser condenado por abandono afetivo se este foi acarretado pelo outro responsável, em detrimento da vontade e esforços da mãe ou pai ausente.

Nesse sentido, expõe a jurispsicanalista Giselle Câmara Groeninga:

[...] não é suficiente a falta de figura paterna para caracterizar o pedido de danos morais por abandono afetivo. É necessária a caracterização do abandono, da rejeição e dos danos à personalidade. As perícias devem levantar, por meio de metodologia própria, a extensão dos danos sofridos em função da falta da figura paterna (2005, p. 416).

Relativamente a este trabalho, o nexo causal seria, então, a relação entre o abandono, o dano sofrido pelo filho e a atitude causadora do genitor. Deve-se restar clara essa relação.

Uma ação de indenização por abandono interessante ocorreu no Rio Grande do Sul. No caso, a autora alegou abalo emocional pela ausência da mãe. Entretanto, a ação foi movida em face da tia, visto que foi criada por ela, quem constava indevidamente como mãe na certidão de nascimento. Na decisão, já em apelação cível, restou assinalado:

No caso em exame está bem claro, pela própria narrativa dos constantes na peça exordial, a ré não praticou a violação a direito algum da parte autora. E a eventual falta de atenção da mãe em relação à filha, que foi referida na exordial, decorreu claramente do fato de não ser a recorrida a sua mãe biológica, mas apenas tia, conforme restou cabalmente comprovado através do exame de DNA [...].

E se a autora sofreu com o abandono noticiado, é preciso ter em mira que, quem a abandonou, foi a sua própria mãe, que a entregou para que outra pessoa a criasse, e não a recorrida, que é sua tia e que indevidamente constou comoo sua mãe na certidão de nascimento, pois não foi ela quem procedeu o registro. (Apelação Civel n. 70035087097, de Caxias do Sul – RS. Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. J. em 14.09.2011).

28 Alienação parental, Segundo Maria Berenice Dias (2009, p. 418), é “uma ‘lavagem cerebral’ feita

pelo genitor alienador no filho, de modo a denegrir a imagem do outro genitor, narrando maliciosamente fatos que não ocorreram ou que não aconteceram conforme a descrição dada pelo alienador. Assim, o infante passa aos poucos a se convencer da versão que lhe foi implantada, gerando à nítida sensação de que essas lembranças de fato aconteceram. Isso gera contradição de sentimentos ee destruição do vínculo entre o genitor e o filho. Restando órfão do genitor alienado, acaba se identificando com o genitor patológico, passando a aceitar como verdadeiro tudo que lhe é informado”.

Sendo assim, este é um exemplo de ação que não prosperou tendo em vista não preencher o requisito do nexo causal, pois o dano sofrido pela vítima não foi ocasionado pelo abandono perpetrado pela tia. Embora os princípios da solidariedade, da afetividade familiar e da dignidade da pessoa humana pudessem abarcar também a responsabilidade da tia pela criação da menina, o legislador colocou o cuidado, a educação e a convivência como dever dos pais e, portanto, os magistrados entenderam que não ocorreu ato ilícito.

Quanto à comprovação do dano à luz do abandono afetivo, pode ser aferido por laudos psicológicos e psiquiátricos, na medida em que determinará o tamanho do comprometimento psicológico e físico da criança e do adolescente causado pela ausência de um dos genitores.

No seu artigo sobre abandono afetivo no Brasil e na Argentina, Ionete de Magalhães Souza (2011) aborda que:

As sequelas são provadas por laudos periciais de especialistas: psicólogos, assistentes sociais, entre outros; prova documental, como boletins escolares e fotografias; depoimentos de testemunhas, além de interrogatório minucioso do juiz competente.

Contudo, há os que defendam a desnecessidade de prova pericial para constatar o dano moral por poder ser auferido por bom-senso geral, como já salientado por Cavalieri Filho em sessão anterior.

A privação de um dos pais acarreta privação da própria história, de sua cultura e de seus valores. Ademais, segundo Rizzardo, gera uma grande carga de carências e frustrações de ordem emotiva, sentimental e afetiva:

É direito dos filhos, e impõem-se por reclamo da natureza humana, a convivência com o pai e a mãe. Não interessa a separação destes últimos, ou a completa incompatibilidade de um em relação ao outro. O pai ou a mãe que não forma a entidade familiar com os filhos está obrigado a buscar a convivência regular em datas previamente combinadas, de modo a manter alguma participação na vida dos mesmos, acompanhando seu desenvolvimento, participando das necessidades que lhes são inerentes, e dispensando a afetividade, o carinho, o desvelo, a amizade e a autoridade que tanto necessitam para o sadio e normal crescimento (2011p. 688).

Ainda, segundo o autor, o direito à reparação por abandono pode ser comparado ao direito de um filho de ser reparado, face à sensação de ausência, pela morte de um pai:

Realmente, a ausência de um dos pais resulta em tristeza, insatisfação, angústia, sentimento de falta, insegurança, e mesmo complexo de inferioridade em relação aos conhecidos e amigos. Quase sempre se fazem sentir efeitos de ordem psíquica, como a depressão, a ansiedade, traumas

de medo e outras afecções. Se a morte de um dos progenitores, em face da sensação de ausência, enseja o direito à reparação por dano moral, o que se tornou um consenso universal, não é diferente no caso do irredutível afastamento voluntário do pai ou da mãe, até porque encontra repulsa pela consciência comum e ofende os mais comezinhos princípios de humanidade (2011, p. 688).

O último pressuposto a ser analisado é a lesão a um bem juridicamente protegido e tal restou comprovado no primeiro capítulo deste trabalho. Tanto a Constituição Federal, como o Código Civil, o Estatuto da Criança e do Adolescente e demais convenções e leis esparsas garantem direitos aos filhos menores de idade, dentre os quais inclui-se a convivência familiar, o afeto, o direito a educação, entre tantos outros já abordados.

Ainda, Claudia Maria da Silva, ao analisar o artigo 98, parágrafo II, do ECA29, conclui que quando um ato comissivo do pai ou responsável causa danos ao

desenvolvimento do filho; ou uma omissão, negligente, viola dever legal, inexecuta comportamento exigido pelo legislador para o bem-estar do filho; ou ainda um abuso de direito propriamente dito ocorre, deve-se aplicar medidas de proteção à criança e ao adolescente.

No que tange ao caráter do dano moral estudado na seção anterior – punitivo, educativo e ressarcitório -, Bernardo Castelo Branco defende a ideia de que a indenização por danos morais em relação à filiação, como fator de proteção à dignidade da pessoa, não visa ao enriquecimento, mas ao elemento educativo e preventivo, não funcionando por fim como elemento capaz de promover a desestruturação da instituição familiar:

A reparação, embora expressa em pecúnia, não busca, messe caso, qualquer vantagem patrimonial e, benefício da vítima, revelando-se na verdade como forma de compensação diante da ofensa recebida, que em sua essência é de fato irreparável, atuando ao mesmo tempo em seu sentido educativo, na medida em que representa uma sanção aplicada ao ofensor, irradiando daí seu efeito preventivo. (BRANCO, 2006, p.116)

No mesmo sentido, dissertando sobre a indenização dos danos morais na investigatória de paternidade, assinala Rolf Madaleno que:

a punição pecuniária pelo dano imaterial tem um caráter nitidamente propedêutico e, portanto, não objetiva propriamente satisfazer a vítima da

29 Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos

reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados: II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;

ofensa, mas, sim, castigar o culpado pelo agravo moral e, inclusive, estimular aos demais integrantes da comunidade [...] a cumprirem os deveres éticos impostos pelas relações familiares.

Quer-se a recomposição dos danos causados pelos distúrbios de ordem psicológica causados a um indivíduo que não se desenvolveu plenamente por decisão voluntária de seu genitor, que ao se furtar do seu dever institucional no bojo de uma entidade familiar, encontrava-se consciente de que estava deixando de contribuir para a formação e educação do seu filho.

A doutrina contrária à indenização por abandono afetivo argumenta que não se pode dar preço ao amor. Acerca do assunto, Claudia Maria da Silva rebate:

Não se trata, pois, de ‘dar preço ao amor’- como defendem os que resistem ao tema em foco -, tampouco de ‘compensar a dor’ propriamente dita. Talvez o aspecto mais relevante seja alcançar a função punitiva e dissuasória da reparação dos danos, conscientizando o pai do gravame causado ao filho e sinalizando para ele, e outros, que sua conduta deve ser cessada e evitada, por ser reprovável e grave (2004, p.141).

Em relação às críticas acaloradas feitas a este tema, no que concerne a monetarização do afeto, Bernardo Castelo Branco (2006, p.120) assevera que:

Não se propugna a aplicação da responsabilidade civil a tais relações, como uma fonte para obtenção de vantagens econômicas por parte do lesado, o que somente contribuiria para a efetiva desagregação da família, porquanto seria inconcebível que a instituição familiar ficasse resumida a vínculos puramente patrimoniais. O que se busca, ao contrário, é uma análise mais profunda, a partir da ordem normativa já existente, relativamente aos mecanismos capazes de coibir os abusos ordinariamente praticados por aqueles que, cientes da falta de qualquer sanção, violam sistematicamente os direitos fundamentais de pessoas que, muitas vezes, deles deveriam receber a devida proteção.

De acordo com o art. 944 do Código Civil, a fixação da indenização deve ser de acordo com a extensão do dano. Portanto, deve-se utilizar os seguintes critérios: as condições socioeconômicas do genitor causador do dano; a gravidade do dano; e a condição do filho. O grande problema apontado pela jurisprudência funda-se na impossibilidade de basear-se na intensidade ou qualidade da dor

A matéria ainda é nova e somente nos últimos anos começaram a aparecer demandas judiciais dessa natureza. Em um primeiro momento os julgados posicionavam-se contrários, quase que na totalidade. Entretanto, nos últimos anos passaram a surgir entendimentos divergentes, desta vez favoráveis à tese de reparação por abandono afetivo, os quais vêm se firmando.

3 EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL SOBRE A REPARAÇÃO DOS DANOS MORAIS PELO ABANDONO AFETIVO: PROPOSIÇÕES PARA O FUTURO DA PARENTALIDADE

Este capítulo tratará, primeiramente, da análise de jurisprudências de diversos tribunais do Brasil, acerca do abandono afetivo.

Ressalta-se que a grande maioria de decisões a respeito filia-se à corrente contrária à possibilidade de indenização, ou por entender que não há ato ilícito, ou por entender que a medida adequada a ser adota é a destituição familiar, ou ainda, pela impossibilidade de obrigar alguém a amar e de valorar esse amor.

Contudo, esse posicionamento vem mudando. Em 2012 tivemos o primeiro julgado favorável pelo Superior Tribunal de Justiça e é crescente o número de filhos que já tiveram reconhecidos seus direitos à indenização por abandono materno-paterno em instâncias inferiores.

Destarte, buscou-se selecionar julgados favoráveis, pelo menos em parte, dos principais tribunais do país, com a finalidade de exemplificar a discussão sobre o assunto.

Nas seções seguintes tratar-se-á de dois projetos de lei, um proposto na Câmera e outro no Senado, ambos visando legislar sobre o abandono afetivo e em fases de aprovação.

Dessa forma, acredita-se que em um futuro próximo a questão restará consolidada e a dúvida acerca da possibilidade de indenização ater-se-á às peculiaridades de cada caso concreto, não mais podendo-se falar em impossibilidade de dano moral nas questões de filiação.

3.1 Posicionamento do Superior Tribunal de Justiça acerca da possibilidade de